Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Psicanálise e Literatura
María Lucía Homem

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Ttercer capítulo do livro
"No limiar do silêncio e da letra. Traços de autoría em Clarice Lispector"

A incompatibilidade etre desejo e palavra é um dos nomes do real.
Jacques Lacan

A fim de situar mais precisamente questões relativas à interface entre teoria literária e teoria psicanalítica que bordejam os romances em foco, dedicaremos este capítulo ao detalhamento das nuances dessa confluência.

Graças à psicanálise, uma das noções que contribuíram para outra perspectiva analítica do fenômeno literário é a de inconsciente, conceito, se não inventado ou descoberto, ao menos formalizado por Freud e, a partir daí, colocado numa deter- minada posição epistemológica. Através da psicanálise, surge uma nova concepção de sujeito, para além do sujeito cartesiano moderno. Nesse sentido, o presente estudo, ao enfocar mecanismos de ruptura com formas representativas tradicionais, deve levar em conta a gênese dessa virada conceitual, abordando o duplo movi- mento de construção da subjetividade moderna e sua crise.

De maneira geral, a noção de subjetividade privada – embasada na distinção moderna entre o público e o privado – foi forjada nos últimos quatro séculos, na passagem do Renascimento para a modernidade. O sujeito moderno constitui-se nessa passagem devido à própria magnitude da crise nas estruturas vigentes: o Renascimento, com sua inevitável ampliação de horizontes, propicia a sensação de perda de referências, anteriormente calcadas na estruturação hierarquizada e divinizada da realidade. O surgimento da categoria de indivíduo no século XVII– que embasa tanto o cogito cartesiano instaurador da ciência moderna como a noção de autor que se atrelará à produção da arte, da literatura e dos sistemas de pensamento – é fruto de uma série de transformações no campo das ideias e das relações sociais que já estavam em curso e se consolidaram historicamente nesse período. O amplo movimento que ficou conhecido como humanismo renascentista começa por instaurar as bases de mais amplas valorização e confiança no homem, a partir de então menos submetido às forças transcendentais, aos deuses e ao destino e, portanto, mais livre para construir sua história. Aflora a ideia de um mundo interno prenhe de possibilidades, conflitos e profundidade, en- fim, uma subjetividade mais alargada (1). Assim, como vimos no capítulo anterior, a partir do século XVI representam-se figuras que demonstram esse alargamento subjetivo, como Hamlet ou Quixote. Na via literária, tal construção se dá numa dupla direção: as narrativas individualizadas nomeiam a riqueza interna possível do humano, ao mesmo tempo que contribuem para a construção de uma vida interiorizada dos leitores.

Como precursores fundamentais da noção de sujeito moderno, podemos destacar, no campo das ideias, Maquiavel (1469-1527), teórico da noção de indivíduo político; Lutero (1483-1546), introdutor da ideia do humano em relação direta com Deus; e Shakespeare (1564-1616), importante cartógrafo do homem tal como o conhecemos hoje, imerso na complexidade de uma maior densidade psíquica, prenhe de conflitos, criações e afetos, enfim, um universo propriamente humano. Na via da ciência, o racionalismo de Descartes (1596-1650) e o empirismo de Bacon (1561-1626), enlaçados ao novo paradigma científico fundado sobre as proposições de Galileu (1564-1642), reforçam a ideia de um sujeito individual e propõem as possibilidades de ação dessa nova subjetividade.

O desenvolvimento da categoria de sujeito na filosofia, notadamente com Des- cartes, possibilitou a consolidação da categoria histórica e social do indivíduo e vice-versa, estabelecendo-se a inevitável dialética entre conceito e práxis (2). Ocorre assim, no século XVII e XVIII, a formação do contratualismo, majoritariamente com Hobbes, Locke e Rousseau; através do contrato, os indivíduos se juntam e formam a sociedade e o Estado. Em decorrência dessas novas concepções, em última instância iluministas, opera-se no fim do XVIII uma dupla revolução, tecnocientífica e sociopolítica: a Revolução Industrial e as revoluções burguesas. A Revolução Norte-Americana e a Revolução Francesa, com sua Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cida- dão, destaca, de forma indubitável, o papel do indivíduo e legitima a ideia da soberania popular inalienável. A revolução almeja consolidar o indivíduo na posição de sujeito da história, dotado de direitos “naturais” e poderes de atuação como indivíduo e cidadão. Na história literária, podemos situar o romance Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe, como emblemático da figura do herói que se coloca como indivíduo autônomo. Nessa medida, o protagonista de Defoe contrapõe-se ao primeiro Fausto (3), lenda germânica baseada na vida de Johann Faust (que viveu provavelmente entre 1480 e 1540), e ao Dom Quixote, figura, em última instância, desadaptada no incipiente mundo moderno, símbolo da crise do sistema feudal. Diferentemente, Robinson Crusoé simboliza de maneira mais bem acabada o indivíduo moderno, capaz de utilizar sua racionalidade para enfrentar as intempéries do destino (4).

No entanto, o sujeito da modernidade, centrado e soberano, já se vê questiona- do de certo modo desde sua constituição. Como prenuncia o pensamento de Montaigne e Erasmo, desenhase uma corrente crítica que ganha força no século XVIII com o pensamento de Hume e se manifesta no campo da estética, por exemplo, quando os românticos do fim do século XVIII põem em cena os desconhecidos subterrâneos, ou quando Turner cria suas enevoadas telas no início do século XIX. Ou seja, perpassa um longo período desde o estabelecimento de uma subjetividade centrada e coesa até sua crise, que viria a mostrar toda a sua força na virada do século XIX para o XX (5).

Não é por acaso que justamente aí surge a ideia de um sujeito descentrado. É o momento da conceitualização de outra concepção de aparelho psíquico com Freud, que irá operar uma subversão do tópos subjetivo, calcado na tríade eu/consciência/racionalidade. A virada freudiana ancora-se em dois conceitos inovadores e, desde sempre, polêmicos, embora incontornáveis: inconsciente e pulsão. Não há mais como se agarrar a um eu consciente que poderia ser plenamente sujeito de suas escolhas e de seu destino. O inconsciente me habita, a pulsão me move. Como diz Lacan, no tocante à pulsão, é questão de uma subjetivação sem sujeito (6). Trata-se de outra forma de conceber a categoria de sujeito, não plenamente ancorado em uma res cogitans, coisa racionalista que lhe daria fundamento, e não totalmente envolvido pelo paradigma de identidade, no sentido de não idêntico a si mesmo. Das identidades mais fixas e estáveis do Iluminismo, ele se desloca para a beira do abismo, como diria Nietzsche. Estamos na espiral das identidades fragmentárias que dialogam dialeticamente com a opacidade que cobre o indivíduo na modernidade tardia. Esboça-se, assim, a ideia de um sujeito sem contornos fixos ou fechados, estrutura significante a deslizar e a se constituir em contínuo processo, tendo na mirada um objeto igualmente marcado pela quebra de um paradigma de identidade e transparência.

O objeto estético, em última instância, opera no contorno dessa irredutibilidade, buscando nomear a opacidade. A literatura mergulha nesse vórtice. Clarice Lispector não está fora de um conjunto de escritores que trabalham o tema da representação, questionando seu campo e seus limites. A crítica (7) já tem observado esse movimento, cuja história vem se delineando através dos séculos, ganhando força no XIX e revelando-se de forma mais explícita contemporaneamente. A indagação sobre os contornos e impasses da representação no âmbito da linguagem atrela-se a um questionamento mais amplo da própria noção de sujeito como ser racional e detentor de um conhecimento “claro e distinto” sobre o mundo, passível de transmissão para uma alteridade. Tal questão estabeleceu-se notadamente na modernidade, ligada ao empirismo e ao desenvolvimento da ciência moderna mecanicista: a busca da representação supõe um mundo ordenado e passível de ser representado, assim como um sujeito “racional” que realizaria esse trabalho e uma linguagem-ferramenta disponível para tal finalidade. Em sua “arqueologia das ciências humanas”, Foucault sublinha que na era clássica, a partir do XVII, a linguagem “entrou num período de transparência e neutralidade” (8).

[O que tornou possíveis] fenômenos superficiais como o racionalismo e o mecanicismo foi uma redução da linguagem a um veículo transparente para as ideias ou para o discurso, mediante o qual um sujeito poderia representar o mundo. Evidentemente, é no modernismo que esse pressuposto básico “desaparece”, na era do retorno da linguagem, em que a literatura atinge os limites da experiência subjetiva, um contradiscurso, uma nova loucura. (9)

No âmbito da arte, surgem novas formas de colocar em xeque as representações anteriormente estáveis, forjando um alargamento nas próprias maneiras de poder ver esse sujeito. Como dissemos no capítulo anterior, na virada do século XIX para o XX, todo o Zeitgeist apontava para a queda da visão do homem como centro do universo e ser racional no domínio do mundo, evidenciando o elemento “irracional” que dominava os movimentos artísticos mais expressivos do período, como as correntes impressionistas e simbolistas, numa conjunção do decadentismo fin-de-siècle.

A transformação de paradigma formal instaurada pelo simbolismo contou com a mudança da própria concepção de sujeito na virada do século: não mais o ser uno, indiviso e coeso que sustentara o romance tradicional até então, mas um sujeito múltiplo e fragmentado, ponto de fuga de inúmeras (e por vezes contraditórias) sensações e percepções, que abrigava em seu próprio cerne algo desconhecido de si. Não é sem razão que, nessa mesma época, surge a psicanálise, com a formalização de um sujeito dividido, não mais plenamente “senhor de si” (10), mas para sempre se- parado de algo fundamental em seu íntimo (11), presa de um psiquismo por definição calcado na polarização entre consciente e inconsciente. Não podemos deixar de notar ainda a aproximação do registro humano das categorias do “irracional” e do “animal”, propiciada pelas teorias evolucionistas de Darwin, outro teórico importante para a mudança de concepção de sujeito gestada ao longo de todo o século XIX. Na esteira dessa concepção, Thomas Mann sublinha o fato de Freud estar em conexão com as novas correntes de pensamento que despontam nesse século. Nesse sentido, estamos diante de uma segunda revolução (pós-copernicana) na história do pensa- mento, que deve muito às contribuições de Freud, um dos introdutores do corte epistemológico que rompe com os paradigmas do sujeito racionalista, retirando-o do centro de sua transparência.

A letra e o inconsciente

Há algo no ser que ele próprio desconhece, para sempre estrangeiro em si: gestos, palavras, associações, lapsos, sonhos e até mesmo sintomas constituem o campo possível de emergência do inconsciente, manifestado por meio de formações que se revelam além do domínio do sujeito de uma consciência puramente autorreflexiva. Há um impulso no ser que ele próprio não domina e que, no entanto, habita seu cerne e o faz oscilar no eterno pêndulo entre as forças agregadoras e desagregadoras, vida e morte em comunhão.

Seguindo a trilha de Freud, e incorporando as contribuições de seu tempo, Lacan explicita inter-relações entre a descoberta freudiana e teorias da linguística, da lógica e da filosofia contemporâneas, importantes operadores de leitura do inconsciente e sua estrutura de funcionamento. Para tanto, vai buscar a ideia de significante de Saussure e os paradigmas de Jakobson a fim de repensar a posição do sujeito em relação à cadeia de significantes. Saussure fornece uma importante pedra basal para o pensamento lacaniano ao apontar, entre outras coisas, que o  sujeito não é autor pleno de seus próprios enunciados: a língua é um sistema simbólico social, e não individual (12). Dessa maneira, a linguagem antecedeu e transcenderá cada sujeito; sujeito que, além disso, não terá a possibilidade nem de criar os significados das palavras na teia da língua nem de inventar suas normas, tendo de se submeter tanto aos primeiros quanto às segundas para se fazer minimamente compreender. No campo da lógica, Lacan parte da lógica modal de Aristóteles e alcança o conceito de função em Frege para sistematizar diversos operadores da psicanálise, tais como os divisores da sexuação, a lógica fálica e o próprio desenrolar do processo analítico. O falo e as posições em relação à fronteira da falta, masculino/feminino, além das vozes do discurso analítico (ativa, passiva, reflexiva, modal), são alguns dos nós trançados por Lacan com o apoio de tais categorias lógicas. Ele faz uso ainda de inúmeras contribuições filosóficas, de Platão a Hegel, e estabelece igualmente um diálogo constante com seus contemporâneos, entre eles Barthes e Foucault, que, assim como ele, são marcos importantes da teorização do sujeito na segunda metade do século XX.

Dessa maneira, o sistema lacaniano alimenta as (e se alimenta das) teorizações do pensamento nesse momento, radicalizando a ideia de descentramento do sujeito cartesiano e operando em conjunção com a categoria – paradoxal já em sua origem – de um sujeito do inconsciente. A partir daí, o eu adquire, em Lacan, um duplo estatuto conceitual, na esteira de sua leitura da teorização freudiana: catego- ria de linguagem (o je) e agrupamento das construções imaginárias que polarizam as identificações do sujeito (o moi). Já o sujeito surge nos interstícios da própria linguagem, no intervalo possível de sua fala, evanescente por excelência.

E aqui retomamos a ideia central da aproximação, discutida no capítulo anterior, entre as teorias contemporâneas sobre o sujeito (fadado a aparições pontuais) e o autor (construção datada na história das trocas simbólicas, econômicas e políticas entre os homens), à qual somam-se o campo do inconsciente e a conexão com a literatura:

O inconsciente é o fato de sermos condenados a repetir um passado que não recordamos e a ter como lembranças o que jamais se repetirá na sua forma primeira. A literatura é o conjunto dos escritos explicitamente agrupados sob o signo da ficção que reelaboram esse passado pulsante de secreta verdade e que se encontram de maneira direta submetidos à lei de seu desconhecimento. (13)

Ou seja, uma das grandes contribuições da subversão freudiana e da posterior formalização lacaniana foi, além de delimitar o campo do inconsciente, revelar sua estrutura – de linguagem –, que afeta de múltiplas formas a fala e o fazer humanos. Dessa maneira, o inconsciente torna-se algo acessível à interpretação (14). A via central para que esse trabalho se realize ocorre por meio do discurso do paciente em seu divã. Tem-se aí a dupla basal da metodologia psicanalítica: o analisante fala (descompromissado com o sentido, numa associação dita livre) e o analista incide sobre esse discurso através das pontuações, interpretações e construções que opera sobre ele, não em qualquer momento, mas nos interstícios da fala nos quais algo do inconsciente aflora, nos momentos de “abertura” nos quais o que estava oculto se revela por meio de lapsos, atos falhos, repetições etc., no fluxo incessante da linguagem.

Na literatura também se trata de associação entre palavras e interpretação. As escrituras claricianas, dada sua própria forma, revelam essas linhas de força e constroem um jogo interpretativo em diversas camadas. José Américo M. Pessanha aponta uma analogia entre a organização discursiva de Água viva e a “associação livre” de uma sessão de análise. Podemos observar esse modo de operar no seguinte trecho:

No inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas até a aldeia a farejar presa. Todos os habitantes se trancavam atentos em casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e cães e cabras, o calor humano e o calor animal – todos alertamente a ouvir o arranhar das garras dos lobos nas portas cerradas. A escutar. A escutar. Estou melancólica. É de manhã. Mas conheço o segredo das manhãs puras. E descanso na melancolia.

Sei da história de uma rosa. Parece-te estranho falarem rosa quando estou me ocupando com bichos? (15)

E Clarice segue um encadeamento de sons e temas. Não estaria aí um outro modo de escrever da autora, uma forma diversa de indagar a literatura? Em carta a Clarice, o crítico assinala:

você se transcendia e se “resolvia” em termos de criação literária; agora a “literatura” desce a você e fica (ou aparece) como imanente em seu cotidiano; você é seu próprio tema – como num divã de psicanalista, em que se fala, fala, sem texto previamente ensaiado. (16)

E, nesse “divã via escrita” (mesmo que não via fala), o inconsciente também está em foco. Podemos, então, estabelecer um elo com as vertentes analítica e autoral, cabendo a pergunta que daria curso à analogia: quem seria o autor do “texto” numa sessão de psicanálise? O analisante? Mais precisamente: seu pensamento, seu inconsciente? Poderíamos dizer que aquele que fala, em análise, não é mais propriamente detentor absoluto de seu discurso, ao menos no nível consciente, mas o eu não se apaga totalmente. Ao longo do percurso analítico, um novo espaço é concedido ao ato falho na fala (para a psicanálise, aliás, um ato bem-sucedido) e novos sentidos vão sendo atribuídos a uma mesma frase ou sonho, que antes estavam ocultos para o ser falante. O sujeito do inconsciente vai se revelando e se constituindo, apesar de seu estatuto “evanescente” (17), presentificando-se de maneira apenas pontual. Partindo de tal enfoque, pode-se iluminar o lugar de “não domínio” absoluto que o autor ocupará nos textos claricianos, revelando-se como sujeito-autor em contínua formação, num processo de busca de seu próprio lugar e, assim, em diálogo constituinte com o narrador e sua personagem, tomando o próprio escrever como objeto a ser apreendido pela escrita. A literatura de Clarice não deixa de ser (como qualquer trabalho, fatura), no entanto, sempre “elaborada”, mesmo que perpassada pelo it inapreensível que lhe serve de motor.

Em Céu, inferno, determinadas considerações de Bosi, na esteira da crítica, podem sugerir que a interpretação da obra literária em parte aproxima-se da técnica psicanalítica. Diz ele que “cabe ao intérprete decifrar essa relação de abertura e fechamento, tantas vezes misteriosa, que a palavra escrita entretém com o não escrito” (18), ou seja, a interpretação literária se situaria precisamente no enigma de abertura e fechamento da junção da palavra com o além da palavra, que, de certa maneira, também a psicanálise almeja decifrar. A relação entre literatura e mundo é tanto mais arraigada quanto mais condensada a obra, pois quanto mais “denso e belo é o poema, tanto mais entranhado estará em seu corpo formal o ‘mundo’ que se abriu no evento e se fechou no claro-escuro dos signos” (19). O intérprete seria, assim, essencialmente um mediador, se retomarmos a etimologia do termo, que remete a interpres,  aquele que cumpria a função de “agente intermediário entre as partes em litígio”. O poeta é um mediador, como dizem T. S. Eliot e Pessoa. Mediador que, com o tempo, assumiu a função de “tradutor”, o que transmite análoga mensagem, porém de outro modo. A interpretação, portanto, “opera nessa consciência intervalar e ambiciona traduzir fielmente o mesmo, servindo-se dialeticamente do outro. O outro é o discurso próprio do hermeneuta” (20). Na análise de uma obra literária, tais alteridades permitem buscar o enigmático do texto: a teoria sobre a literatura e a teoria sobre o inconsciente seguem essa trilha, ambas calcadas na palavra, embora de formas diversas.

Numa sessão de análise, o discurso do analisante constitui-se pela palavra falada, encadeado na associação livre. Numa obra literária, o discurso se presentifica pela palavra escrita, texto. Aproximamos a associação livre – encadeamento particular da linguagem, a partir das falas próprias, com a história de cada sujeito, movimento sem diretrizes apriorísticas – do movimento clariciano de escrita destacado no corpus em questão, que também não se prende a fronteiras ou limites convencionais da narrativa. Notadamente Água viva e Um sopro de vida valem-se de tais recursos, em cuja estrutura poderíamos situar associações “livremente desenvolvidas” – embora “livre”, aqui, incida na maneira como o narrador lida com os ditames formais de sua época, subvertendo a narrativa clássica e desenhando outro lugar para o autor, e não “livre”, como no divã, onde se trata de um sujeito do inconsciente que é levado a percorrer as malhas do discurso. Nessa relação há, assim, analogias e diferenças. O narrador, em princípio, seria senhor de seu texto, tendo a prerrogativa de reescrevêlo, fato impossível àquele que faz associações em uma sessão de análise. A palavra dita (assim como a seta lançada) não pode ser apagada jamais.

Guardadas as devidas proporções e especificidades, sigamos um trecho da “livre associação” clariciana a fim de estabelecer mais detalhadamente a discussão. Propomos um fragmento de análise – que se fará sempre rente ao texto, buscando retomar os significantes centrais postos em jogo, assim como a forma da composição – e, desse modo, esclarecer nossa trajetória de leitura:

Mas esses dias de alto verão de danação sopram-me a necessidade de renúncia. Renuncio a ter um significado, e então o doce e doloroso quebranto me toma. Formas redondas e redondas se entrecruzam no ar. Faz calor de verão. Navego na minha galera que arrosta os ventos de um verão enfeitiçado. Folhas esmagadas me lembram o chão da infância. (21)

E, dessa maneira, segue-se o constante pensar/narrar/escrever da personagem, em que sugestões de associações sonoras e jogos semânticos (por exemplo, em torno do verão e seu quebranto) entrecruzam-se com jogos linguísticos – encadeandose significantes tais como verão, danação, chão... Tal forma narrativa se aproxima da escrita automática dos surrealistas, que é, pretensamente, poesia feita com “associação livre”. Eis a ars poetica como artefato e instrumento para abarcar o inefável do real, em sua trama múltipla. Observe-se como esse puro jogo significante – “a partir das” e “em direção às” palavras – ocorre também nas livres associações de Um sopro de vida:

“Vitrola”
No disco de vitrola as circunvoluções negras por um triz não se misturam com outros círculos mágicos: e daí sai a aura da música. Eu tenho aura musical. O disco eu o pego e perpasso de leve por pêlos de meu braço e os pêlos se arrepiam eriçados. É que sua aura toca a minha.

“Borboleta”
A mecânica da borboleta. Antes é o ovo. Depois se quebra e sai lagarto. (22)

O trabalho de escrita ocorre quase como se estivéssemos diante de um glossário: vitrola, disco, borboleta, lagarto... E o texto clariciano continua desse modo por várias páginas. Observando mais de perto o fio condutor que ordena o primeiro “verbete” – “vitrola” –, delimitamos uma dupla sequência metonímica: vitrola/ disco/circunvolução/círculo/aura (da música); disco/pêlos/arrepio/aura (da personagem). Partindo de “disco”, ambas chegam a uma interseção dos territórios do sujeito e do objeto que culmina com um encontro visceral: as auras da música e da narradora-personagem se misturam. Há uma relação de similaridade (metafórica) entre disco e aura que se constrói num jogo de contiguidades. E, ainda, as duas auras também revelam uma relação metafórica (aura da música = aura da personagem, que diz “minha aura é musical”). Elas “se tocam” num jogo de associações em que se estabelece, metonimicamente, um ponto de condensação, isto é, por meio desse deslocamento de contiguidades chega-se à metáfora e ao encontro das “auras”, que aponta para o ideal de junção do sujeito com o objeto – aspecto importante e recorrente na obra clariciana e, como sublinhamos anteriormente, um dos faróis a iluminar o mapeamento de uma corrente estética.

Essa união de sujeito e objeto remete-nos a uma espécie de sentimento oceânico, tal como abordado por Freud em seu O mal-estar na civilização, a partir de sua troca com o escritor Romain Rolland. Trata-se de uma sensação de eternidade, um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras: o desejo de “fazer um” com o outro. O sujeito se colocaria dessa forma, mesmo que momentaneamente, como um ser “aurático”, livre da delimitação de seus contornos a portar um véu de indistinção, alcançando assim um estado de união com o mundo e o outro – em outras palavras, com Deus. Estaríamos em um estado em que os contornos seriam indivisos e fluidos, o que forneceria ao ser um estatuto fálico, no sentido de propiciar-lhe uma completude imaginária (23). No entanto, para além do paradigma fálico, há a ideia de letra, tênue bordejamento entre o real que não cessa de não se deixar apreender, o simbólico, que não cessa de buscar a captura, e o imaginário, resistente desenhador da dualidade via imagem. Ou seja, o oceano ilusório de fato não dilui os contornos entre os seres nem se deixa captar pelo funil da letra. Daí a ideia de borda, que pretende dar contorno a um resto não representável – precipitado que resistirá à nomeação, como sabemos desde o “umbigo do sonho” freudiano, aquele incognoscível das formações psíquicas que não se deixam abarcar pela interpretação.
Enfim, diversas conexões podem ser estabelecidas entre o texto e os enfoques literário e psicanalítico. Destacam-se duas vias: a primeira concentra-se numa aproximação de processos (do encadeamento significante do texto clariciano e do encadeamento da fala sustentada pelo inconsciente); a segunda enfoca uma aproximação de ferramentas (uma teoria literária sobre a obra e uma teoria psicanalítica sobre a estrutura psíquica do sujeito e sua representação, que permitiria usar a psicanálise para refletir sobre o texto). Pode-se pensar que é a primeira situação que, além de ser uma ilustração, justifica a segunda ou, pelo menos, convida à segunda.

Quanto ao arsenal teórico da psicanálise, destacamos determinados conceitos centrais das obras freudiana e lacaniana, entre eles, Inconsciente, Desejo, Alie- nação, Significante e a relação destes com a polaridade entre Sujeito e Objeto. De Lacan, retomaremos ainda os três registros já mencionados (Real, Simbólico e Imaginário), assim como sua aproximação com a linguística e a lógica. A tríade sujeito/linguagem/inconsciente é fundamental – literalmente, fundamento de subjetividade em sua relação constituinte com o fio metonímico do desejo. O desejo perpassaria constantemente a linguagem, situando assim o lugar a priori vazio a partir do qual se dá a constituição do sentido e, de maneira análoga, do sujeito. Este nasce ligado de tal forma ao Outro (24) (que determina suas origens, seu nome próprio, sua história, sua cultura etc.) que a relação primeira com o Outro passa prioritariamente pelo viés da alienação – alienação no sentido estrito, de tornar “alheio” (de alius, outro) algo que seria próprio do sujeito, ou seja, manter no polo da alteridade aspectos que poderiam ou deveriam ser apropriados subjetivamente.

Uma vez que o sujeito vem ao mundo alienado no Outro – dada sua própria condição – é necessário que se opere uma separação. Deve ocorrer, portanto, um processo de constituição do sujeito – ainda que nunca totalmente moldado, delineado e concluído – que vai se “descolando” das falas e do corpo do Outro e fazendo a si mesmo, com seu estilo próprio e único. Essa lenta construção não se dá sem a mediação da linguagem e a apropriação, por parte do sujeito, de significantes que, no princípio, localizam-se do lado da alteridade e do simbólico como tesouro dos significantes. A fim de delimitar tal lugar de constituição do sujeito, utilizaremos ainda a tensão entre o sujeito do enunciado e o da enunciação – na qual essa formação é tematizada e refletida –, evidenciada pelo espelhamento entre o dito e o dizer, passando pelo “meio-dizer’ (25)  abordado por Lacan. Tais temas percorrem a obra clariciana de diversas formas e em momentos, como na tentativa da narradora de Água viva de captar o “x” ou o “é da coisa”, nas idas e vindas da história de Macabéa e sua alienação ou no delineamento da personagem Ângela pelo Autor.

Temos assim uma tensão quase contínua entre o real e o simbólico, que por vezes parece buscar parada no imaginário (26). O registro do Imaginário, para a psicanálise, circunda aquilo que é da ordem da identificação (que se dá primariamente com imagem), do narcisismo, e envolve uma relação especular e, portanto, dual (e, nesse sentido, sem fazer apelo a um terceiro elo lógico, mecanismo próprio do simbólico) e das construções da fantasia. Na análise literária, constituirá basicamente a fábula, o estofo da trama, com seu tempo, espaço e personagens imaginariamente criados. No entanto, cenas e imagens são veiculadas por palavras e levam ao Simbólico, que se liga, nessa acepção, à função da linguagem, em especial à do significante, que compõe o texto como tal. Já o Real, é justamente aquilo que não se diz, ou melhor, que não se pode dizer, para o qual há falta de significante (27). No jogo dos três registros, o simbólico opera justamente na tentativa de simbolizar o real, esse “inominável”.

A luta entre as palavras e as coisas, entre o simbólico e o real, revela sempre um “âmago silencioso”, resto que limita e impulsiona. É no enquadre desse conflito basal que se faz a obra clariciana, e isso se explicita especialmente em seus últimos romances. Neles transparece a busca constante de expressar algo de forma a “transcender” a palavra, a consciência e o pensamento: “Tenho de dar o mergulho de uma só vez, mergulho que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. E quem sou eu para ousar pensar? Devo é entregar-me. Como se faz? Sei porém que só andando é que se sabe andar e – milagre – se anda”.

Em A hora da estrela e Um sopro de vida também se manifesta o conflito entre o real e o simbólico, ou entre um “contato interior e inexplicável” e a palavra. Mesmo em uma obra em que há colorações imaginárias marcadas, com um enredo mais estruturado – a história da estrela Macabéa –, a oposição entre real e simbólico ganha a cena em diversos momentos ao longo do romance: “A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique” (28).

Os três registros foram entrelaçados por Lacan na figura topológica do nó bor- romeano, figura topológica cujos três elos se enlaçam de tal forma que, ao se rom- per um deles, os outros dois também se soltam. Nesse sentido, além do par real/ simbólico, há o imaginário que vem compor a estrutura, formando os três elos que se interconectam e pretendem “estabilizar” o sistema. Ou seja, por mais que na obra clariciana se releve a oposição entre real e simbólico, não há como o imaginário não estar presente nela. Além de ser o próprio estofo da literatura, a autora, na busca de significar o real, acaba tecendo quase uma imagem, com tentativas diversas de tradução da palavra (traço geométrico, música...), metáforas (similaridades) e me- tonímias (fala de qualidades que pertencem à coisa, na impossibilidade de falar da própria coisa). Seu texto carrega significativas elaborações imagéticas – pinceladas de fábula –, traços de trama jogados lá e aqui, à semelhança de uma pintura abstra- ta, segundo uma de suas metáforas recorrentes. Portanto, toca sempre o registro do imaginário, ainda que de forma por vezes diluída, não estruturada – o que nos leva a reencontrar o tríplice nó borromeano. Explorar as formas de conjunção dos três registros é uma das vertentes que procuraremos seguir, à medida que a escrita de Clarice assim demande, embora por vezes seu eixo básico se oriente notadamente pela inter-relação constante e quase exaustiva entre o simbólico e o real.

Recorreremos, ainda, a partir do entrelaçamento dos três registros e do circuito desejante, à noção de Objeto. Teorizando sobre um “objeto desde sempre perdi- do”, Freud o aproxima da Coisa, Das Ding (29), também focalizada por Lacan, como uma “realidade muda” (30). O conceito nos possibilita iluminar aspectos por vezes obscuros do universo clariciano, prenhes de silêncio e do que denominamos “não palavra”, próxima, por vezes, do arcaico, do primário, do “antes da palavra”, do caos mudo. Como diz Leyla Perrone-Moisés:

Enquanto escritora, Clarice não acreditava nem um pouco na capacidade da linguagem para dizer “a coisa”, para exprimir o ser, para coincidir com o real. O que ela queria – ou melhor, “devia”, já que escrever era, para ela, missão e condenação – era “pescar as entrelinhas” (31). O que ela buscava não era da ordem da representação ou da expressão. Ela operava emergências de real na linguagem, urgências de ver. Resta ao leitor receber suas mensagens em branco, e ouvir o que de essencial se diz em seus silêncios (32)

Não palavra que, no entanto, em conjunção com o espinho do silêncio, faz-se escrita, reveladora da vida. Clarice não deixa de estar sempre em luta ferrenha e expressa pela e através da palavra, aliás, instrumento fundamental de trabalho na fatura de um texto. Um trecho de A hora da estrela explicita esse projeto:

Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida (33)

Em suma, na tentativa de apreender pela escrita a “vida primária”, o it, o “é da coisa”, e captar o “instante-já”, Clarice também estaria envolta na incessante tarefa humana de, através dos veios simbólicos e imaginários, captar o real, inapreensível por excelência, que, no entanto, nos impulsiona paradoxalmente para o próprio ato da escrita. Água viva também explora essa questão:

Não sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. Só tive inicialmente uma visão lunar e lúcida, e então prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre (34)

História não te prometo aqui. Mas tem it. Quem suporta? It é mole e é ostra e é placenta. Não estou brincando pois não sou um sinônimo – sou próprio nome. Há uma linha de aço atravessando isto tudo que te escrevo (35)

Nesse movimento, o imaginário, presente em qualquer narrativa e forjando o próprio estofo da trama, por vezes se dilui, chegando a extremos, conforme se vê na citação. Aí, basicamente há um narrador que fala e refala, tecendo complexas considerações a respeito da existência e da escrita: “história não te prometo aqui”, ou seja, a ordem da fábula, do imaginário, volatiliza-se. O imaginário parece diluir-se até atingir um ponto de ausência, sempre sustentado pelo simbólico, pois estamos diante de um texto escrito, ainda que se sugira seu esvaecimento, seu silenciamento...

Logo, tal escrita, nos limites da fluidez, rodeia o real que não deixa de constituir o cerne pulsante em jogo nesse movimento. Todavia, há aí algo de paradoxal, uma vez que toda escrita é simbólica, isto é, há um impossível de representar que é, ao mesmo tempo, o que move as tentativas da linguagem de, entre outras coi- sas, apreender o objeto. Nesse sentido, reafirma-se continuamente a busca de uma forma, de um it, que, no entanto, não se perfaz. Como se o narrador soubesse bem não ser possível alcançar a Coisa, tarefa vã.
O que está em jogo de modo mais recorrente nos últimos romances de Clarice Lispector é justamente o questionamento dos limites da linguagem para expressar o mundo e a colocação em cena, no interior da obra, do lugar do autor enquanto cria- dor do texto literário que mobiliza tais impasses. A partir daí, lança em circulação um convite – por vezes um apelo – à implicação do leitor, contribuindo assim para tornar complexo tal movimento dialético entre identificação e distanciamento. Como se a obra não pudesse deixar de sustentar uma trama de questões fundamentais: quem fala, o que fala, para quem e para que fala. Em outras palavras, a obra evoca continua- mente uma indagação a respeito do que pode ser dito ou escrito – pela representação através da linguagem – e a respeito de quem fala por meio do texto, situando os meandros da enunciação. Ou, segundo Lacan, o que fala “dans celui qui parle” (naquele que fala). O Eu não é completamente senhor em sua própria morada, como dizia Freud. Lacan segue essa trilha quando pergunta o que ou quem fala através daquele que enuncia um discurso, explicitando o descompasso entre o ser de razão que orga- niza a fala – o Eu do discurso que pensa ser mestre de sua fala – e esse algo que fala no e através do sujeito, a despeito dele próprio. Desde seu primeiro seminário, Lacan se interroga sobre “o que fala no homem” (36). Num momento posterior de sua obra, retoma a pergunta, respondendo-lhe da seguinte forma:

Qual é essa parte, no sujeito, que fala? A psicanálise diz: é o inconsciente. Naturalmente, para que a pergunta tenha sentido, é necessário ter admitido que o inconsciente é algo que fala no sujeito, mais além do sujeito, e inclusive quando o sujeito não sabe disso, e que diz mais do que se supõe (37)

No escopo deste trabalho, a questão coloca-se em relação ao texto: “O que fala em mim que escrevo?”. O processo de forja da escrita pode, assim, revelar o não domínio pleno sobre aquilo que brota em sua montagem criativa, acentuando que tanto ao sujeito falta controle total sobre o processo de representação quanto à palavra não é dado tudo dizer. Reconhecendo tais limites, inerentes ao próprio estatuto da linguagem, o autor poderia se deslocar da onipotência autoral para outros lugares, podendo haver inclusive uma explicitação de seu papel na narrativa. Ao fazer da escrita o espaço para a indagação sobre o ato de escrever, ao revelar a fragilidade de seu processo, ele desestabiliza seu tópos autoral, porque duvidar da ação é inevitavelmente duvidar do agente que, até então, nela se fundava. Instala-se a dúvida, ao mesmo tempo que se ascende a uma outra curva da espiral do proces- so criativo, pois, ao saber algo da não estabilidade e transparência do tópos autoral (isto é, ao ser mais consciente de uma porção inconsciente), o sujeito não deixa de revelar um grau mais ampliado de consciência.

Enfim, o autor se complexifica e trabalha justamente com esses fios, tornandose, assim, personagem: passa a fazer parte da própria trama, configurando-se personagem-autor e ampliando o escopo da tarefa de criar e conduzir o narrar, transformando-o em matéria-prima, tal como amplamente explicitado nos romances que formam nosso corpus. Os encontros entre elementos da psicanálise e dos romances de Clarice parecem bastante frutíferos, solicitando leituras analíticas mais aprofundadas. Passemos a elas.

 Notas

1 Ver, entre  outros,  Harold  Bloom, Shakespeare: The Invention of the Human  (Nova York, Ri- verhead,  1999);  Charles  Taylor, As fontes do self: a construção da identidade  moderna, cit.; William R. Everdell, The First Moderns, cit.; Luís C. M. Figueiredo, A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação (São Paulo, Educ/Escuta, 1992).

2  Ver Louis Dumont, Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna (Rio de Janeiro, Rocco, 1993)  e William R. Everdell, The First Moderns, cit.

3 E diverso do “bom” herói eternizado  por Goethe três séculos depois, num poema dramático publicado em duas partes,  em 1808  e 1832  (5. ed., Belo Horizonte,  Itatiaia,  2002).  Ver Ian Watt,  Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote,  Dom Juan, Robinson Crusoé (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997).

4  Ver Ian Watt,  A ascensão do romance, cit., e Mitos do individualismo moderno, cit.

5  Afirma José Corrêa Leite, Ação política e emancipação humana no pensamento socialista, cit., ao enfocar a grande ruptura  que se deu na virada do século: “temos nas artes, de um lado, a mudança  radical representada pelo nascimento  das formas de cultura  de massa (como,  por exemplo,  o surgimento  do cinema, a difusão da fotografia e do fonógrafo, a constituição  dos gêneros  musicais ‘populares’);  de  outro, ‘as avant-gardes  dos últimos  anos pré-1914, que marcam uma ruptura  fundamental das artes eruditas  desde o Renascimento’. Nas ciências, a física quântica subverte as bases do modelo newtoniano,  positivista, materialista, determinista, possibilitando previsibilidade, baseado em simetrias e na repetibilidade dos fenômenos, iniciando o debate  moderno  da filosofia das ciências. A psicanálise subverte  a identificação  entre  ego, razão e consciência, base da visão tradicional do sujeito. Peirce e Saussure inauguram a análise da lógica do discurso e da linguagem. Surgem a fenomenologia e a filosofia analítica, em ibidem, p. 145. Mais adiante, ele sublinha a relação entre tal mudança de paradigma e um “abandono mais geral e dramático dos valores, verdades e maneiras estabelecidos e longamente aceitos de encarar o mundo  e estruturá-lo conceitualmente. Pode ser puro acaso, ou escolha arbitrária, que a teoria quântica  de Planck, a redescoberta de Mendel,  as Logische Untersuchnungen de Husserl, a Interpretação dos sonhos de Freud e a Natureza morta com cebolas de Cézanne pos- sam todos ser datados de 1900 [...] a coincidência de inovações dramáticas em diversas áreas não deixa de ser impressionante”, em ibidem, p. 356.

6 Ver Jacques Lacan, Le séminaire, livre XI: les quatre concepts fondamentaux  de la psychanalyse (ParisSeuil, 1973),  p. 167

7 Ver, entre outros, Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (3. ed., São Paulo, Perspectiva,  1994);  e Davi Arrigucci Jr., O escorpião encalacrado, cit.

8 Michel Foucault, Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines (Paris, Gallimard, 1966), p. 57[ed. bras.: As palavras e as coisas, 10. ed., São Paulo, Martins, 2007]. Nessa obra, o autor estabelece  ainda um elo entre a questão da representação e a consolidação de um tipo de discursividade específica, a partir da gramática de Port-Royal.

9   John Rajchman, Foucault: a liberdade da filosofia (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987), p. 28-9.

10 Ver Sigmund Freud, “Uma dificuldade no caminho da psicanálise” (1917), em Oevres completes (Paris, PUF, 1998).

11 O que Lacan denomina “êxtimo”, num jogo de palavras que traz à tona a exterioridade do que há de mais “íntimo” no sujeito.

12 Ver Ferdinand  de Saussure, Cours de linguistique générale (Paris, Payot, 1995).

13 Jean Bellemin-Noël,  Psychanalyse et littérature (Paris, PUF, 1978),  p. 121.

14 Na esteira  de Freud  e Lacan, que trabalham  com essa questão,  temos  ainda Julia Kristeva, Pierre Glaudes,  Pierre Bayard, Jean Bellemin-Noël,  Malcom Bowie etc.

15 Clarice Lispector, Água viva, cit., p. 61.

16 Nádia Gotlib,  Clarice: uma vida que se conta, cit., p. 406.

17 Essa forma de apresentação  se dá pela própria estrutura do sujeito: dividido pela linguagem, cindido em seu desejo e detentor de um aparelho psíquico composto  a priori de diversas ins- tâncias: consciente,  pré-consciente e inconsciente.  Ver Sigmund Freud,  em especial o artigo sobre a “Metapsicologia” (1915), em Oevres complètes, cit., e Jacques Lacan, Le séminaire, livre XI, cit.,(Paris,  Seuil, 1973),  capítulos XV a XIX.

18 Alfredo Bosi, Céu, inferno, cit.

19  Ibidem, p. 286.

20 Ibidem, p. 277.

21 Clarice Lispector, Água viva, cit., p. 30.

22  Idem, Um sopro de vida (3. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira,  1978),  p. 115.

23  No tocante à noção de “aura”, ver as proposições de Lacan sobre o conceito de belo – véu diante da castração – no seminário sobre a ética da psicanálise, aula 18, “A função do belo”, dada em 18 de maio de 1960.  Para uma análise mais detalhada  da relação de união e separação entre os polos sujeito e objeto e o ideal de uma “não delimitação”,  ver os capítulos de análise, em particular sobre Água viva. Neste momento, apresentamos somente um primeiro voo analítico a fim de explicitar algo de nosso modo de operar a leitura textual  a partir  da interface  entre literatura  e psicanálise.

24  O Outro  como o lugar simbólico que enredará e assim determinará o sujeito, que sempre lhe será posterior.  A linguagem, o significante e a lei antecedem o sujeito que, ao nascer, acabará por se mesclar a essas marcas e será tatuado  por essa trama de múltiplas significações.

25 No original francês, “mi-dire”; expressão que traz à tona o movimento  sempre dialético e ina- cabado do dizer, em sua tentativa  de captar o ser: ao mesmo tempo  que diz A, o sujeito deixa de dizer a totalidade  de A, pela própria impossibilidade de a linguagem abarcar o mundo,  de modo que o sujeito diz, na verdade,  B. O enunciado  não corresponde  à intenção  primeira  da enunciação, pois, no momento mesmo que dizemos algo ou nomeamos algo, deixamos de dizê-lo ou captá-lo: algo está perdido para sempre,  tornando  assim a enunciação sempre incompleta. Em suma, sempre que dizemos, dizemos pela metade,  é um meio-dizer; sempre que buscamos definir o ser, falhamos.

26 Real, Simbólico e Imaginário são os três registros que compõem o universo em que se movimenta o ser falante (R.S.I., como nomeados em um dos últimos seminários de Lacan). O Imaginário congrega as imagens formadoras,  em última instância, dos contornos  que dão consistência ao Eu; o Simbólico é o “tesouro dos significantes”, o lugar da linguagem e do discurso; o Real é da ordem do impossível, do que não pode ser dito ou transformado em representação. Lacan revisita as tópicas estruturadas por Freud, retrabalhando os registros que abordarão o psiquismo. Freud havia elaborado as denominadas  primeira e segunda tópicas do aparelho psíquico. A primeira data do início de sua obra (A interpretação dos sonhos, 1900),  consistindo na estruturação do psiquismo  como Consciente, Pré-Consciente e Inconsciente. Sem a abandonar,  Freud  afina seu aparato teórico e constrói uma segunda hipótese  de trabalho,  levando em consideração o tópos psíquico: Id, Eu e Supereu  (ver “O Eu e o Id”, 1923). A partir de tais elaborações, Lacan desenvolve sua “trilogia”, os três registros do psiquismo ou as dimensões  do espaço habitado pelos seres falantes.

27  O conceito  de Real equivaleria aqui ao resto,  ao que retorna  sempre,  a algo que “não cessa de não se escrever”, como se houvesse sempre  algo por trás da palavra que a impulsionasse e, simultaneamente, buscasse se inscrever/escrever, mas, não tendo  sucesso nessa operação, seria para sempre não inscrito, não escrito. Essa frase situa-se num momento preciso da obra lacaniana, em que eram feitas conjunções entre possíveis metáforas do inconsciente e o campo da linguagem, seja pelo ato da escrita, seja pelo rigor da letra. Nesse sentido, haveria algo que nunca seria passível de uma escrita plena e última,  completa:  esse algo – ou it, ou cerne, ou osso, para usar terminologias de Clarice e de Lacan – seria assim um propulsor  da linguagem (“aquilo que não cessa”) ao mesmo tempo  que um testemunho do contínuo  fracasso de uma pura transparência  (“de não se escrever”).  Cabe aqui recuperar  Foucault,  num paralelo com a afirmação de Lacan. No esforço de manifestar  o impronunciável,  surge outro ciclo: o de um autor que, nesse embate  com a linguagem, tenta  jogar com seu próprio lugar, sua “presença”, inscrevendo-se  no papel de personagem e, ainda assim, “não cessa de desaparecer”,  como diz Foucault. Note-se  ainda que Lacan estava presente  na conferência  de Foucault sobre “O que é um autor?” quando tal a expressão foi usada.

28  Clarice Lispector, A hora da estrela, cit., p. 15.

29  Entende-se “desejo” como uma falta inscrita na própria fala e como efeito da marca da lingua- gem sobre o ser falante, instaurando  assim um vazio estrutural que levaria o sujeito a buscar preenchê-lo  com uma série de “objetos” diversos. O Objeto, no entanto,  não aparece como tal no universo humano,  mas sim enquanto  objeto da pulsão, objeto de amor, objeto do desejo, objeto de identificação...  Em contraposição  com o conceito  de Objeto,  tem-se  a Coisa (Das Ding), que seria da ordem do absoluto, o objeto perdido correlato de uma satisfação mítica e definitiva (logo, impossível).

30 Jacques Lacan, Le séminaire, livre VII: l’éthique de la psychanalyse (Paris, Seuil, 1986), p. 72.

31 Clarice Lispector, A descoberta do mundo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,  1984),  p. 605.

32 Leyla Perrone-Moisés, Flores da escrivaninha (São Paulo, Companhia das Letras, 1990), p. 177.

33 Clarice Lispector, A hora da estrela, cit., p. 17-8.

34  Idem, Água viva, cit., p. 27.

35 Ibidem, p. 45.

36  Jacques Lacan, Le séminaire, livre I: les écrits techniques de Freud (Paris, Seuil, 1975),  p. 159.

37  Idem, Le séminaire, livre III: les psychoses (Paris, Seuil, 1981),  p. 34.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
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