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O mito de Édipo, hoje lembrado na cultura particularmente pelo que serviu a psicanálise como espécie de mito fundador da neurose nos traz a enigmática e monstruosa figura da Esfinge. Esta imagem do ser com corpo híbrido (parte animal, parte humano) nos remete ao onírico, ao universo do fantástico tão presente nas construções totêmicas, máscaras, estátuas, objetos sagrados adorados e temidos. Parente da esfinge que nos legou a tradição grega é a conhecida e gigantesca estátua egípcia, que se diferencia da primeira pela ausência das asas de águia, preservando somente a cabeça de mulher (adornada) e o corpo de leão. As figuras híbridas são, aliás, a base do panteão egípcio e a lendária Tebas de Édipo, narrada pelo grego Sófocles, localiza-se a bem da verdade no país dos faraós.
Em Totem e Tabu, estudo sobre as bases da civilização, Freud elabora o seu mito fundador da cultura humana, demonstrando no princípio totêmico esta passagem da condição bestial (animal) para uma condição humana pela constituição de uma sacralização do Pai Primevo, ou pai da horda primitiva (Urhorde) (FREUD, 1912). Desta forma, existe a necessidade de um terceiro, não-humano, não-animal, excluído destes conjuntos para que possa fazer tal corte. No ideário da religiões monoteístas hoje dominantes estes seres híbridos acabam por se tornar as figuras demoníacas a serem temidas e evitadas.
Excluídos, banidos do ideário religioso que deve apontar ao incorpóreo celestial, a cultura seguiu presentificando estes entes em suas manifestações menos eruditas e sacralizadas, reputadas pela igreja e pela cultura oficial como menores e vulgares tais como os teatros amadores de praças públicas, os fantoches e estatuetas artesanais, os folguedos folclóricos, os causos contados nas rodas de fogo, nas cantigas. Este será o lugar para tratar do grotesco e do cômico/burlesco, como alías tende-se a caracterizar os folguedos e espetáculos populares no ocidente (AMARAL, 2005 p.18)
Por falar em grotesco, sobre a questão do estranho / estrangeiro (Fremd- xenos) e do familiar, Freud dedica uma ampla discussão em seu artigo Das Unheimliche que poderíamos traduzir por A Inquietante Estranheza, ainda que com isso se perca do significante o morfema heim (lar). Perder-se-ia aí também o prefixo de negação un , que Lacan assinala como a marca do recalque. O estranhamento familiar, outra possibilidade de tradução, é o que nos demonstra a emergência do desconhecimento de si, algo que tem consonância com o que Freud chamará também de a "terra estrangeira interior".
Mas esse Heim, componente do Unheimlich, que de modo abrangente designaria lar, como o home em inglês, é o mesmo de Heimat, a "terra natal" ou "terra mãe", além de advir como sufixo em inúmeros nomes de cidades tais como Bornheim, Hofheim, Rüsselsheim. Designar a cidade como o nosso lar é uma metáfora interessante. Algo aí conta muito para os mitos de origem de um sujeito, para a sua inclusão entre os iguais e para a exclusão do xénos, do diferente.
O conceito próprio de pólis traz em si a ética do burgo murado e protegido da ameaça estrangeira. Tal como de nosso lar, só cedemos a chave ao estranho quando se mostra familiar e digno o suficiente. Assim é feito ainda em cidades européias, quando o burgomestre-prefeito entrega ao estrangeiro a chave da cidade em caráter simbólico.
Isso nos é bastante familiar desde a apropriação pela Psicanálise do mito de Édipo. Este, que ignora ter em Tebas sua terra-mãe chega a ela, ou melhor, a ela retorna acreditando estar-se exilando para não cumprir o oráculo parricida, ou seja, para não ter que matar quem acredita ser seu genitor, rei de sua pátria (Vaterland / Terra-Pai). Acreditando estar fugindo de casa quando chega a Tebas, o lar do qual ignora ter sido expulso ao nascer, após a consumação inadvertidada da profecia, depara-se com a Esfinge, o monstro que sentencia: "Decifra-me ou te devoro". Édipo não sabe que porta a chave deste enigma, o saber in-sabido, mas, ao decifrá-la, não só livra Tebas da Esfinge, quanto é aceito como cidadão-emérito e vem ocupar o lugar do rei por ele assassinado.
Mais tarde, porém, quando Édipo cumpre o restante da profecia desposando sua mãe e com ela gerando filhos-irmãos, uma praga cai sobre a Tebas que ele outrora "salvara". Na busca implacável pelo responsável, vem saber por Tirésias, vidente-cego hermafrodita, excluído da partilha dos sexos, que é ele o culpado. Diante disso, o castigo: ele também se cega e condena-se ao desterro. Édipo, o rei dos pés feridos, está condenado a vagar sem lar pelo mundo.
Vemos aí o quanto a esfinge representa o próprio enigma do zoon politikon, o animal da pólis. A esfinge-cidade se apresenta monstruosa, sinistra (unheimlich), com seu corps-morcélé (corpo esfacelado). Tal qual numa montagem onírica ou surrealista, como Lacan compara à própria montagem pulsional (LACAN, 1999), a esfinge se apresenta como um híbrido: com corpo leonino, asas de águia, cabeça (e boca) de mulher. Essa impressão da cidade comparável à esfinge ficou registrada pelo próprio Freud, em carta a sua fiancée Martha, quando da chegada á Paris de Charcot:
De Paris tenho agora uma impressão completa e poderia me tornar muito poético: compará-la, por exemplo, a uma gigantesca esfinge enfeitada que devora os estrangeiros que não conseguem decifrar seus enigmas... A cidade e as pessoas eu as sinto estranhas, parecem de um tipo absolutamente diferente do nosso; acho que são todos possuídos por mil demônios (RICCI, 2005 p. 64).
E Florianópolis, que enigmas teria ela? Tomo aqui a liberdade de narrar um episódio surgido na preparação do folder e cartaz de divulgação de um evento internacional de Psicanálise. Pareceu-nos, aos organizadores, á época interessante utilizar as gravuras do ilustre historiador e folclorista Franklin Cascaes. O reconhecimento de sua importância no resgate das lendas locais, envolvendo as bruxas e benzedeiras, que colaboraram para o título turístico de Florianópolis como Ilha-da-Magia, vem hoje com a homenagem ao darmos à principal fundação cultural de Florianópolis o seu nome.
A gravura que ilustraria o folder seria uma muito semelhante à que serve de logomarca para a própria Fundação Franklin Cascaes: uma bernunça, algo muito familiar e heimlich para qualquer florianopolitano. Trata-se de um dos entes-personagens do folguedo boi-de-mamão, o mais representativo de nosso folclore. Trata-se de uma tradição onde membros da comunidade celebram a morte e ressurreição do boi. As personagens "vestem" por assim dizer espécies de "bonecos-máscara" na terminologia de Beltrame (2007 p. 162) numa espécie peculiar de espetáculo com elementos de teatro de animação, dança e canto. O boi é o personagem principal, estando no topo da hierarquia para o ator-dançarino (idem, 169.)
A bernunça, nossa esfinge, apresenta, porém, uma particularidade. É um corpo coletivo. Lembrando o dragão chinês, ela foi incorporada posteriormente ao folguedo (SOARES, 2002). Este boneco-máscara é formado por um longo corpo de pano colorido sob os quais ficam seus atores-manipuladores. A sua frente fica p responsável por abrir e fechar assustadoramente a sua bocarra. Tal como a esfinge é também um corpo-montagem; tem boca de jacaré, corpo de cobra e, por que não dizer, pés humanos. Esta aparência bizarra impregna o imaginário de qualquer um que a veja, sobretudo que a pode ver enquanto criança.
Outro dia, ainda tive oportunidade de ouvir um registro de áudio que meu pai fez de mim e minhas irmãs: ali, já entoava a música da bernunça:
A bernunça é bicho brabo
engoliu Mané João
come tudo, tudo, tudo
o que lhe dão.E realmente os que conhecem a brincadeira sabem que é o que ela faz: come gente! Abre sua bocarra e engole as pessoas inteiras. Mas que surpresa a nossa, organizadores do evento que levaria sua imagem nos folders e cartazes. Pois esse monstro, já domado no nosso imaginário, causou enorme mal-estar nos primeiros estrangeiros que viram o cartaz com a boca insaciável da bernunça. E a isso somo algo bastante pessoal: quão ferido não ficou meu narcisismo ao termos que renunciar a esse símbolo. Não que eu não possa entender o assombro dos outros. Lembro com intensa nitidez, o horror e o desespero que me causava a bernunça.
Pois bem, Florianópolis e seus moradores possuem uma maneira curiosa de lidar com seus enigmas. Isso se reflete inclusive com a maneira de se deixar representar por um nome ou título. Portamos ou tentamos suportar o nome do terrível padrasto Floriano Peixoto, cuja odienta homenagem foi feita após ter liquidado os mais ilustres filhos desta terra. Há até hoje os que preferem preencher seus cheques e livros de visitas a museus usando o nome antigo da cidade: Desterro. Cogitou-se, inclusive, retomar esse nome que ironicamente evoca mais o exílio do que o pertencimento.
Pergunto-me se haveria nome mais apropriado a uma cidade como essa, que desde sua origem só faz irrefreadamente acolher mais e mais, auto-exilados de outras paragens: dos Açores, da Grécia, da África como outrora, ou de outros estados e países vizinhos como hoje em dia. Donaldo Schüler, que com freqüência nos brinda em Florianópolis com suas conferências, chegou até a comentar o quanto o turismo que move, abastece e emprega a cidade de Florianópolis parece não ser muito bem-vindo por seus cidadãos. Com isso, não faz mais que repetir uma triste realidade dessa cidade de tão bela geografia: uma nem sempre sutil xenofobia.
Para sentir-se mais igual que os outros desterrados, os nativos da cidade proclamam-se: os ilhéus. Ainda que a geografia da cidade, que avança no continente, não se confunda com a ilha, a fuga para o geográfico é uma boa maneira de excluir da polis o diferente sem a necessidade das muralhas tradicionais. Ficamos ilhados, isolados. Mas cabe aqui também a contrapartida: a designação mané-da-liha. Originalmente pejorativa, a expressão vem sofrendo, por tentativa da mídia e das fundações governamentais, uma tentativa de transposição para uma conotação positiva.
O termo mané, apelido dos Manuéis de origem açoriana, originalmente trazendo a designação de bobo, ignorante, provinciano, vem se buscando transformá-lo em motivo de orgulho e pertencimento à terra em radical transformação pela chegada dos forasteiros que dão mais pés e maior proporção a assombrosa bernunça. A cidade, esse monstro, no que nos de-monstra de nós, nos engole, mas é com nossos pés (feridos?) que ela caminha, que ela erra. Porém, não esqueçamos que a Bernunça regurgita o que ela devora, como bem nos lembra o poema de Cláudio Santoro:
O berro da Bernunça
batiza, anuncia
Abre caminho abre
a bocarranca
tudo do lugar
engole gole a gole
e devolve num só golpe
não mais o que engolira
mas algo novo
fruto da renúncia
Abrenuntio Dominum.Entendemos melhor o que é dito quando conhecemos a origem etimológica desse nome curioso. Bernunça vem do ab renuntio dos batizados feitos em latim. Aquilo que, na estranha língua estrangeira dos padres queria dizer que renunciamos a satanás e aceitamos a lei do senhor, é o que vem nomear esse estranho símbolo da transformação.
Parece-me impossível aqui não lembrar da divertida metáfora de Lacan no Seminário 17: "Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão.- a mãe é isso." (...) "Há um rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da bocarra, e isso retém, isso emperra. Isso se chama falo. É o rolo que os põe a salvo se, de repente, aquilo se fecha" (1992, p.105). A terra, portanto, a nossa terra é a mãe que nos engole gole a gole, mas a lei paterna e pétrea como as tábuas do decálogo, essa é sempre estrangeira.
Freud nos ensina que a língua que falamos nos é sempre estrangeira (1919). E isso, no movimento errático da psicanálise na cultura é demonstrado. Podemos ai entender como o que foi escrito em alemão, só foi compreendido em francês, e o que foi dito em francês é hoje e aqui predominantemente escutado em espanhol e português. A psicanálise nos mostra, desde a Psicopatologia da Vida Cotidiana e do livro dos Chistes o quanto Errar é humano, e como erramos pela língua. Isso, tanto no que diz respeito ao equívoco versus acerto, quanto à nossa condição errática de descentramento, como atesta o golpe freudiano: " Não somos senhores em nossa própria morada".
Aprendamos, portanto, a decifrar o enigma da bernunça que nos regurgita de um gole só fazendo-nos comuns, para não sermos por ela devorados. Ouçamos a diferença para certificarmo-nos de que os manés e os forasteiros, somos sempre nós mesmos, errando mundo adentro e mundo afora, pelas bordas do litoral-literal.
Referências:
AMARAL, Ana Maria. O Inverso das Coisas. In Móin-Móin Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Ano 1. Número 1. Jaraguá do Sual SCAR/UDESC, 2005
BELTRAME, Valmor. O Ator no Boi-de-Mamão; reflexões sobre tradição e técnica. In Móin-Móin Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Ano 3. Número 3. Jaraguá do Sual SCAR/UDESC, 2007.
FREUD, Sigmund. Das Unheimliche, in Gesammelte Werke Chronologisch geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1919 / 1999.
FREUD, Sigmund. Totem und Tabu in Gesammelte Werke Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1912/1999.
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1964/1999.
LACAN, Jacques. O Seminário Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1992
RICCI, Giancarlo. As cidades de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005
SOARES, Doralécio. Folclore Catarinense. Florianópolis: EdUfsc, 2002
SÓFOCLES. Édipo Rei. Porto Alegre: L&PM, 1996.