Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O não-todo da "profissão" psicanalítica
Sara Elena Hassan

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"...mas as coisas que realmente importam – as possibilidades na psicanálise de desenvolvimento interno,
- jamais poderão ser afetadas por regulamentos e proibições
."
S. Freud

Na introdução a " A questão da psicanálise leiga", Freud põe em destaque as restrições de uma lei austríaca do seu tempo que "proíbe ao não médico tratar doentes", sem por isso perder de vista as leis equivalentes de outros paises, muito menos restritivas em relação à pergunta que nesse momento lhe interessa: quem exerce a psicanálise?

Freud salienta, então, a relatividade dessa lei. Passa logo a questionar, por meio de sua interpretação, a condição universal de sua aplicação, deixando entrever, ainda que sem explicitá-lo, os meandros de uma ética que abre caminho às particularidades e dá lugar à contradição: "É isso, e por sua vez não é isso, e também não pode se reduzir a isso":

"Talvez venha acontecer que nesse caso os pacientes não sejam como outros, que os leigos não sejam realmente leigos, e que os médicos não tenham exatamente as mesmas qualidades que se teria o direito de esperar deles e nos quais suas alegações devem basear- se".

E se a psicanálise fosse uma profissão não como as outras? Um psicanalista vive em formação permanente e, ainda que a disponibilidade de sua parte seja necessária, é o analisando quem faz o psicanalista, no sentido de confirmar ou não em seu lugar aquele que se oferece e consegue se sustentar como tal. Ou seja, no "après-coup" de uma práxis na qual vale o "só depois". Muito diferente do acúmulo de informação e saberes antecipados e garantidos, próprios do reinado da ciência e do capitalismo.

Pode ser que seja menos problemático, menos atravessado por conotações de fé religiosa, ainda que sem escapar completamente a elas, referir-se à psicanálise como um ofício (do latim opus = obra; facere: fazer), vizinho pelas conotações deste termo, a uma aprendizagem e a um savoir faire artesanal, transmitido de um por um.

Desde que na psicanálise se faz necessário invocar a dimensão ética mais além da terapêutica, que é a que a vezes "se propaga às profissões que habitualmente a recobrem", é por efeito da novidade que aquela (ainda!) traz: uma ordem discursiva diferente que favorece a emergência da singularidade do sujeito.

Lemos Freud, tentando explicitar este ponto, no prólogo de um livro de Aichhorn: "Anteriormente fiz meu o chiste sobre los três ofícios impossíveis – que son: educar, curar, governar-, ainda que tenha me empenhado sumamente na segunda dessas tarefas". A menção no parágrafo anterior do "chiste dos três ofícios", por parte de Freud, não deixa de evocar, pelo menos para mim, a "terceira pessoa", instância que sanciona o chiste como tal.

Freud repete, em 1937: "Y hasta pareciera que analizar seria la tercera de aquellas profesiones "imposibles" en que se puede dar anticipadamente por cierto la insuficiencia del resultado. Las otras dos, ya de antiguo consabidas son el educar y el gobernar.

Temos então a impossibilidade anunciada por Freud como marca do oficio de psicanalista, sem ele entrar em detalhes sobre o verdadeiro alcance dessa condição lógica.

A subversão freudiana arrancou a psicanálise das universalizações do pensamento/ conceito científico, ainda que não sendo sem ele. Por mais que não se queira, diferenças da lógica do inconsciente com as outras lógicas fazem da prática psicanalítica algo resistente às tentativas de harmonizá-la com o que regula e ordena socialmente outras práticas profissionais, tendendo então, por isso, a extrair sua regulação de dentro do seu próprio campo. É justamente como a psicanálise vai lidar com a impossibilidade, o que faz surgir uma outra dimensão, ética, mais além da terapêutica.

Tanto pelo lado da lógica quanto pelo lado da ética, Lacan vai produzir alguns aportes. O psicanalista francês chama a atenção sobre a fraqueza da proposição universal e, sobretudo, da ambiguidade que, desde Aristóteles, vem assumir o "alguns" da proposição particular.

Há todo um caminho em Lacan que o conduz "a jogar com a lógica clássica para subvertê-la em sua ambição de universalidade" . Aí onde Aristóteles toma partido pelo partitivo "alguns", imprimindo uma direção à lógica durante dois mil anos, é onde Lacan vai retomá-lo. O desenvolvimento de Aristóteles induz a proposição particular afirmativa ser pensada como una instância particular da proposição universal afirmativa. Diferentemente, para Lacan, a particular afirmativa faz objeção - e por sua vez fundamenta - a universal do mesmo tipo. Assim, uma existência questiona sempre o "conceito", como uma regularidade. Um novo passo faz da particular uma existência que faz objeção ao "conceito" ( universal), à regularidade. Uma existência de psicanalista funda então o "conceito" psicanálise.

Nessa questão, Lacan contraria a lógica aristotélica, "por razões que em parte vão mais além da questão da relação sexual". Segundo a leitura de G. Le Gaufey, no mesmo texto, há um percurso em Lacan desde a invenção do objeto "a" até o "não-todo" do lado mulher nas fórmulas chamadas da "sexuação", em que se expressaria o enigma da proposta de "uma existência sem essência" e não de duas essências contrapostas do tipo Ying e Yang.

Difícil posição então, aquela que o analista é chamado a tomar (semblante de objeto "a", causa de desejo), sem paralelo nos outros discursos (não psicanalíticos). É talvez a "cara de nada", carregada de vazio do mesmo objeto "a" que inspira a metáfora do "recobrimento" do ofício de psicanalista por outras facetas profissionais de rosto mais identificável?

A pessoa (para não dizer a figura) do psicanalista poderia ficar tomada neste jogo de semblantes, e socavar assim sua responsabilidade maior como sujeito do ato psicanalítico que, como tal, resiste à coletivização, à profissionalização, ou ainda à especialização, o "para-todos". Pela mesma razão, o coletivo institucional psicanalítico em seu desdobramento imaginário, se prestaria aí para outros tipos de recobrimentos. E até para profissões de fé.

Isto sem contar com que, ao menos um impossível ronda a questão ética da felicidade pensada desde a psicanálise: como impossível de atingir e, por sua vez, como problemática inevitável de elidir.

Não se trata de que a psicanálise fique à margem de regulamentações e proibições, mas de que estas possam se pôr em relação com seu próprio "desenvolvimento interno". A propósito, a psicanálise salienta o lado pacificador e o lado perturbador de toda lei.

Constatamos que o interlocutor de Freud, em "Psicanálise leiga" é, além de um imaginário juiz imparcial, alguém de "benévolas intenções".

Se Freud soubesse o que Lacan ia dizer sobre a benevolência!. Terra arrasada, campo minado de um ofício onde o paciente, segundo Freud, "diz mais do que sabe", e o analista, "por definição, não sabe o que faz"

Movimentando-se no gume da contradição, numa prática em que está em jogo um juízo dos protagonistas sobre suas ações de onde sua intervenção se modula, o apelo a um juiz, por mais imparcial que fosse, não pode deixar de se colocar como um desdobramento do juízo próprio de Freud em sua famosa defesa de Theodor Reike, segundo meu entendimento, da própria psicanálise. Assim como o é para cada um dos que nos comprometemos nesta prática.

Mas, é suficiente este juízo íntimo? Freud argumenta que "a lei não se aplique sem modificações ao presente caso". O que não quer dizer que não se aplique à pessoa do psicanalista como cidadão.

Este lado da psicanálise é o que contamina desde sua condição particular, uma profissão "não como as outras", um oficio "não-todo", para parafrasear o "não-todo" da mulher, às outras profissões para, por sua vez, "se recobrir"com elas. A controvertida "profissão" de psicanalista seria então atingida pela modalidade da impossibilidade, pela lógica do não-todo, e pelos paradoxos éticos.

Notas

1 Freud, S: ¿"Pueden los legos ejercer el psicoanálisis"?. (1925), pag. 234, Vol 20, Obras Completas. Amorrortu Editores.

2 Freud, : Pág 171, OC, Vol 20, 1996, 5ª ed. Amorrortu Ed..

3 Ibid. En este caso, las de Alemania y EEUU.

4 Ibid. "Algunas complicaciones que la ley no considera", pag. 172.

5 Ibid. pág 172

6 U oficio, de preferencia, como veremos en seguida.

7 El "desarrollo interno"de la citación que precede este texto.

8 Hay también oficios religios y oficios en derecho.

9 Convocatória de Acheronta 26.

10 De Aichhorn, "Juventud descarriada"(1925).

11 Freud, "Analisis terminable e interminable". 1937, Cap VII . Vol. 23 de Amorrortu. P 249.

12 La "profession" por antonomasia, en inglés, y/o en itálica entre comillas, en las versiones en español de las Obras Completas, es escrita de ese modo por Freud para referirse a la profesión médica. Encontramos en Lacan – pag. 234 de la verión en portugués del seminario VII, mención al ejercicio "profesional" del joven que se instala en su función de analista. Aqui las comillas son nuestras, como en el título de este trabajo.

13 Le Gaufey, Guy: "El no-todo de Lacan", Cuenco de Plata, 2008.

14 Ibid. pág. 116-117.

15 Ver citación de Freud, arriba.

16 Lacan, J. Sem VII: "La ética del psicoanálisis"

17.Para Lacan, la benevolencia remite a una vieja cuestión. "Um denominado Mêncio" – nos diz que ela e julga da seguinte maneira – a benevolência está na origem natural do homem, ela é como uma montanha coberta de árvores. só que habitantes das redondezas c omeçam a cortar as árvores. O benefício da noite consiste em trazer uma nova abundância de brotos, ma, pela manhã, vêm os rebanhos que os devoram, e finalmente, a montanha é uma superfície calva, sobre a qual nada cresce". Lacan, J Seminário VII, pag 375 , de la versión en portugués.

18 Lacan , em"Dirección de la cura’, y nuevamente en en seminario VII, "Las paradojas de la ética".

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 26 - Octubre 2010
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