Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Obesidade
Do pedido de ajuda à demanda de análise

Cristiane Marques

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O interesse dos estudos a respeito do tratamento da obesidade vem crescendo em todo o mundo tal qual o número de pessoas atingidas por esse problema. Numa perspectiva histórica estes estudos tiveram seu ponto inaugural no momento em que a obesidade foi alçada da categoria de problema moral e relançada no panorama médico positivista no campo da doença. Na década de 70, com Hilde Bruch, os transtornos do comportamento alimentar, principalmente a anorexia e a bulimia, passaram a ser situados no campo da psiquiatria, sendo assim objeto de um novo campo científico ainda em formação. Essa passagem, bem como a inicial conceituação da doença mental, trouxeram algumas conseqüências sócio-culturais, das quais somos testemunhas atentas.

A obesidade reconhecida como entidade clínica traz como conseqüência uma nova posição do sujeito obeso, uma posição de passividade em relação a o Outro que detém o saber sobre sua doença. Essa vitimização a que os obesos vem se submetendo mais recentemente, aliado a um crescimento assustador do número de pessoas com excesso de peso e a notória inabilidade do profissional de saúde em encaminhar um pedido de ajuda feito pelos pacientes são os ingredientes necessários para um tratamento malogrado.

Na esteira do desenvolvimento cientifico, três grandes áreas de conhecimento, a saber, medicina, nutrição e psicologia – vem se relacionando em torno de um objetivo comum: traçar orientações básicas que balizem o tratamento da obesidade. Tendo em vista que a obesidade ganhou status de epidemia mundial também os teóricos de saúde pública vem trazendo grandes contribuições a essa discussão, lançando mão não só de dados estatísticos e epidemiológicos, mas contando também com a contribuição de sociólogos, antropólogos e historiadores reforçando o contingente de profissionais voltados a entender como e porque a idéia de excesso de peso vem ganhando cada vez mais espaço no cotidiano íntimo das pessoas.

A afirmação diária da obesidade como doença em paralelo à cultura do corpo magro abrem espaço para a inscrição de todo tipo de sofrimento a que o sujeito contemporâneo vem se defrontando atualmente. O sujeito em sofrimento com as exigências sócio-culturais que se traduzem em saúde e beleza inicia sua peregrinação em busca da "pílula mágica" que trará o alívio para sua angústia e preenchimento para seu vazio. É assim que o sujeito obeso chega aos consultórios dos profissionais de saúde: do endocrinologista ao acumpunturista, do psiquiatra ao psicanalista ele se apresenta como um problema a ser resolvido por um outro em que suponha um saber. Ou seja, não há um pedido de ajuda delineado num primeiro momento, mas um pedido de cura.

Portanto, o que nos permite resituar a questão do tratamento das desordens do comportamento alimentar é essa passagem de um referencial biomédico para um novo paradigma. Essa passagem deve se dar a partir da concepção de um homem des-subjetivado, em que o corpo é objeto sobre o qual se pode intervir, para um novo referencial onde ele passa a ser situado num contexto familiar, histórico e sócio-cultural, dotado de um corpo denso de significado, um "corpo desejante".

Puxando a fila das soluções oferecidas pelos psicoterapeutas localizamos as terapias cognitivas com todo um aparato teórico-técnico voltado para esse sofrimento. Sim, pois nenhuma outra linha teórica se dedica tanto a desvendar a lógica do comportamento alimentar quanto os cognitivistas, entendendo esse comportamento como resultante de um amarramento entre crenças disfuncionais, pensamentos automáticos, déficit de habilidades cognitivas, sentimentos desconhecidos e muita desinformação. Assim sendo, os componentes centrais das intervenções cognitivo-comportamentais visam a identificação de padrões disfuncionais e sua retificação, além da disseminação de informações corretas (psicoeducação) a respeito da obesidade, visando também a desconstrução de conceitos errôneos arraigados em uma cultura lipofóbica.

A destituição dessa importância dada ao corpo magro que aprisiona e impede de alcançar qualquer objetivo que não seja o "corpo ideal" é essencial nesse novo paradigma de tratamento da obesidade, direcionando os objetivos no sentido da saúde e bem-estar a longo prazo. Essa clínica exige questionamentos constantes e o que mais surpreende é que, mesmo um tratamento multidisciplinar afinado e de qualidade, o percentual de pessoas que voltam a engordar é assustador, evidenciando que há algo para além da falta de percepção das necessidades ou da falta de controle. É nesse ponto que a teoria deve avançar.

O desafio, enfim, vai além. Além de promover a circulação de novas informações a respeito da obesidade, cabe ao profissional de saúde que vai receber esse sujeito angustiado por não saber o que fazer com o seu "problema" fazer surgir um comprometimento consigo mesmo que coloque em evidência, não mais a figura do médico, mas, o próprio sujeito. Qualquer possibilidade de mudança reside aí: o manejo bem feito que não tampone a emergência de um sujeito que sofre, que se questiona dessa dor e convida o profissional a ajudá-lo nessa tarefa de desvendar os meandros da sua relação com a comida. Sim, pois a comida assume nesses casos status de um outro com o qual o sujeito obeso se relaciona.

Se a psicanálise aceita o desafio de acolher o pedido de ajuda o faz apostando que a construção de uma demanda passa por reconhecer o sofrimento que o sujeito entrega ao analista sob a forma de uma pergunta. Mas e quando por traz dessa entrega não se localiza um sujeito que deseje, que busque um saber sobre seu sofrimento? E se esse sujeito está de tal forma alienado ao seu sintoma que não se apresenta? E o que fazer se quando se apresenta não recebe em troca a abertura de um espaço de simbolização, mas antes uma medicação que mais uma vez cumpre a função de mantê-lo quieto, calado, alienado?

A psicanálise se constitui como teoria a partir da experiência de Freud com as histéricas. No intuito de ilustrar essa passagem do pedido à demanda, introduzo aqui um recorte clínico. Trata-se de uma mulher de 56 anos com sobrepeso que veio a procura de um tratamento cognitivo para emagrecer, respondendo à oferta de um grupo de terapia para pessoas obesas. Logo de saída V. avisa: "Fui abusada na infância, sei que tem a ver e vou querer falar disso!" . Sua história é repleta de temas marcantes, desde uma infância marcada pela exclusão, passando pelas marcas indeléveis da ditadura militar, de uma ascensão profissional meteórica seguida de um declínio que a leva a uma depressão grave, quase culminando num suicídio. Sua queixa principal sempre foi a compulsão, pano de fundo para falar de sua dor, "uma velha conhecida" . Dentro do grupo algumas falas puderam emergir, principalmente a partir do depoimento de outras participantes . V. sempre se solidarizou às outras mulheres e apontava com grande clareza os momentos em que elas foram abandonadas. Foi a partir do testemunho de que uma das participantes fora abandonada pelo marido numa depressão pós-parto e a conseqüente ira despertada pela descoberta, que V. pode dar início a uma série de questionamentos quanto ao seu próprio abandono e como essas situações se repetiam ao longo de sua própria vida.

Frente a essa primeira emergência de uma pergunta relativa ao seu sofrimento, foi oferecido um atendimento individual que corria, inicialmente, em paralelo ao grupo. Nessas sessões V. pode resgatar lembranças de infância em que sentia-se sempre excluída dos grupos infantis que frequentava. Era uma garota "estranha", brincava muito sozinha, construindo e destruindo seu mundo de fantasia. Numa conversa com sua mãe soube que quando bebê era deixada no berço chorando, dentro da casa toda fechada, até que adormecesse, enquanto a mãe trabalhava. A partir dessa constatação do abandono real em relação a mãe, V. iniciou seu percurso de análise, revisitando, assim, sua própria história há muito tempo esquecida ou depositada em outras tantas terapias e análises a que havia se submetido – era preciso submeter-se a algo para viver.

Das perdas vividas por V. elejo duas delas por sua vinculação à emergência da angústia que a leva a comer e a auto medicar-se: a perda de seu primeiro filho dois dias após o nascimento; e a falência de sua empresa, onde perdeu o status e a confiança de como profissional. Ao longo de anos fazia uma incessante busca de qualquer novo medicamento que trouxesse um alívio para sua dor "velha conhecida", tamponando, assim, a emergência de alguns significantes primordiais, a saber, abandono, perda e dinheiro. Foi a partir da abertura de um espaço de associação que V. pode começar a articular esses significantes e a apostar numa nova análise. Não sem resistências ou recaídas em que descobre um remédio que ainda não tomou ou um novo médico que curou uma amiga, quiçá uma nova doença que nomeie sua angústia e sua dor.

O que quero destacar a partir desse recorte é justamente o ponto em que a mudança da analista permitiu remeter à própria análise suas lembranças, sonhos e associações, sem que se desse um esvaziamento da fala que uma técnica comportamental introduzida nesse momento poderia promover.

A respeito do caso Dora, em que Freud atesta a transferência e seus efeitos, Lacan, em "Intervenções sobre a transferência", analisa as inversões dialéticas a que Freud submete a análise de Dora e a intervenção que, por faltar, leva ao abandono prematuro do tratamento. Na primeira inversão dialética Freud toma a partir do discurso de Dora sua verdade, na qual figura como objeto de uma troca odiosa – para que o pai de Dora tenha a Sra. K como amante, Dora era oferecida ao Sr. K – e a pergunta "Qual é sua própria parte na desordem de que você se queixa?" . Na segunda inversão dialética, Lacan destaca que a intervenção de Freud desloca Dora de uma posição na qual se identifica ao pai para daí questionar que não se trata do ciúme de Dora em relação ao pai, mas de um interesse pelo sujeito-rival, seu fascínio pela Sra. K, que a leva a uma devoção de tal grandeza que faz de Dora sua cúmplice. A passagem dessa pergunta que desvendaria o segredo da relação entre essas duas mulheres e a terceira inversão dialética que colocaria em evidência o valor de objeto que a Sra. K assume para Dora não ocorre, e leva Freud a inserir no final da obra uma nota na qual afirma acreditar que seu erro técnico tenha sido não descobrir a tempo que a mais forte corrente inconsciente dizia respeito à relação de Dora com a Sra. K.

Talvez um dos maiores problema enfrentados pelos profissionais de saúde que tratam a obesidade resida na dificuldade de fazer falar um sintoma que fala por si só: a evidência do corpo gordo traduz sem palavras o excesso que está completamente deslocado do campo da fala, remetido ao real do corpo. Assim como em V. e em Dora, tudo acontece como se num grande espetáculo do qual todos somos espectadores críticos o corpo passasse assumir as palavras do sujeito, um espetáculo mudo, seco no qual da dor que dói no corpo não se pode dizer e vice-versa.

Em Freud vemos claramente que a linha mestra do tratamento do sofrimento psíquico, sobretudo nos casos de histeria, se trata de restituir ao sujeito o acesso primeiramente à fala, para então tomar o inconsciente que se apresenta aí mesmo nessa superfície dos significantes. O que está em jogo no tratamento está em jogo sob transferência, exigindo assim um posicionamento permanente do analista no sentido de permitir o acesso ao inconsciente, não obturando sua pulsação que produz os sintomas, atos-falhos, sonhos e principalmente um pedido de ajuda. Ter como horizonte último que em todo pedido o que se pede é uma outra coisa é apostar na perspectiva de que há um sujeito a ser escutado que pode emergir para além de um discurso da amputação do sofrimento a todo custo.

Em tempo, numa equipe multidisciplinar é preciso fazer circular informações que permitam a outros profissionais reconhecer que muitas vezes a ajuda negada pode reverter esse efeito de esvaziamento da subjetividade que se apresenta na sociedade contemporânea. É preciso criar movimentos de resistência a essa redução da vida a simples corpos vivos que se submetem a qualquer ajuda, oferecendo uma escuta mais do que calando. Que se promova o pedido de ajuda a uma demanda de análise.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 23 - Octubre 2006
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