Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Ver-Nando Pessoas
Interpretação, Verdade e Sinthome na Poética Pessoana
Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares

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"A palavra é, em uma só unidade, três cousas distintas:
o sentido que tem, os que evoca, e o ritmo
que envolve este sentido e esses sentidos."
Fernando Pessoa,
Da palavra

"Desconheço-me, Embrenha-me, futuro,
Nas veredas sombrias do que sonho
E no ócio em que diverso me suponho,
Vejo-me errante, demorado e obscuro."
Fernando Pessoa,
Eu

Em seu vigésimo terceiro seminário, Jacques Lacan propõe uma inovação em sua teoria sobre o fim de análise, uma nova versão para este fim. Paralelamente, ao longo de suas exposições, de suas mostrações (como as chamou), o estatuto da palavra e da interpretação é também revolucionado pelo recurso às palavras-valise, recurso que deve sua inspiração a James Joyce. "No seu artificiar Joyce rompe a máscara do sentido para, então, suturar e costurar, fiar e tecer, talhar e esculpir, diríamos, com fios borromeos, pedaços do real feitos de alingua que a ele se lhe impôs."(GARCIA, 2001, p.108) As palavras-valises, são aquelas palavras que se formam da fusão de significantes que se rompem, dando margem a diversas leituras. No próprio título do Seminário Le Sinthome, por exemplo, podemos ler além de sintoma (symptôme), também santo-homem (saint-homme) e quase, como será sugerido, São Tomás de Aquino (Saint Thomas d’Aquin).

Um santo é evocado para tratar da heresia (RSI / hérerie) joyciana com a qual o psicanalista se identifica (LACAN, 1975). É evocado aqui, neste trabalho pois, ao tratar do fim de análise, estaremos enfer / en faire comme Lacan (1) em sua escritura. Trata-se de um trabalho En "ver-" (2).

A heresia analítica é aquela que busca um savoir-faire ali, com seu sintoma, uma via diversa para a "verdade revelada" como é o caso da claritas de São Tomás. Isto implica em "ser herege de uma boa maneira, aquela que por haver reconhecido bem a natureza do sintoma, não se priva de usá-lo logicamente, quer dizer, até alcançar seu real ao cabo do qual não há mais avidez" (LACAN, 1975). Como, parafraseando o Freud da Traumdeutung, geralmente a cultura, com seus ditos populares expressam muito maior sabedoria que a mais exata das ciências, trata-se, de certa forma, de tomar os limões e fazer, saber fazer com eles, uma limonada. Tomar o sintoma paralisante e angustiante e transforma-lo num fazer singular e mobilizador.

O sintoma, este avanço do simbólico sobre o real (LACAN, 1974), não se pode afastá-lo com hermenêutica, impondo-lhe mais sentidos do que aqueles que ele em si já traz em excesso. Não, a operação parte do real, ao qual o simbólico poderá de rearranjar pela quebra ou torção de sentidos que as palaras-valise tão bem mostram. Mas o real, como articulá-lo pela fala, sendo esta essencialmente simbólica? Heretisando-a, indo contra a doutrina do simbólico, rompendo com suas leis, remontando à alingua, à fala primeira, despida das significações inertes e pretensamente inequívocas.

Como Lacan estará continuamente remetendo a seu mestre vienense, faz-se mister ir procurar os germes desta operação em sua obra.

O saber psicanalítico tem como pedra angular a Deutung freudiana. Como falar desta edificação, sem o conhecimento de suas fundações. Afinal, trata-se de uma interpretação (de sonho), de sua explicação, sua significação? Pois, o verbo deuten, tem raiz comum com o adjetivo deutsch na língua que assim também se denomina: o alemão (Deutsch), a língua dos teutos, sendo teuto o povo ou representante deste povo. Ocorrera ao psicanalista tal incursão etimológica? Provavelmente não, mas talvez o que muito vem a colaborar para o entendimento da Psicanálise é sua leitura a partir de outra língua.

Para falar do sentido ou significação, Lacan recorre às palavras-valise que, aglutinando termos numa palavra, ou recorrendo a línguas estrangeiras, estabelecem tal qual no chiste ou no ato-falho, o pas-de-sens.(3) Ai retornamos ao deuten, que poderíamos traduzir por fazer entendível, trazer ao povo (deutsch), antes de "interpretar", evitando a contaminação que este termo sofre, de uma idéia de hermenêutica, busca do "real significado" (Bedeutung). Realmente o anseio de se fazer entender em Freud não parece ser o mesmo que em Lacan. Este segundo é, sobretudo no meio acadêmico, acusado de uma ininteligibilidade, principalmente no que toca os seus neologismos e a recorrência às línguas estrangeiras. E por que Freud não faz o mesmo? Como afirma Paulo César Souza (1999, p. 68), um ginasial alemão, não teria grandes dificuldades em ler a Fenomenologia do Espírito, no entanto, torna-se difícil traduzi-la para qualquer língua neolatina preservando a sua deutlichkeit (inteligibilidade/clareza) e coerência.

Mais do que ao gênio hegeliano, poderíamos atribuir tal faculdade a recursos da língua alemã tais como a vasta gama de afixações e das Komposita ou justaposição ilimitada de morfemas. As Komposita são as junções de dois termos corriqueiros da língua que, unidos, formam um terceiro, sem que isso se torne estranho à língua. Se parlêtre (falasser) no francês só se forma a custa de uma subversão da língua, no alemão poderíamos dizer Sprachwesen, sem com isso causar qualquer estranhamento ao mais conservador dos germanófonos. Entretanto o efeito transgressivo ou herético causado provavelmente não seria o mesmo.

É a partir deste recurso que observamos a versatilidade da escrita freudiana em suas formulações tais como Fehlleistung (ato falho), Deckerinnerung (lembrança emobridora) ou Gegenbesetzung (contra-catexia). Mas, além do recurso da combinação de termos, sobretudo no caso dos substantivos, há também o da prefixação tão corrente nos verbos. Tal como no português com o verbo pôr, que deriva para propor, antepor, contrapor, supor etc., ocorre no alemão com a quase totalidade dos verbos, esta matização com uma quantidade muito maior de prefixos. A título de exemplo poderíamos tomar o verbo stellen, muito próximo de "pôr". Deste verbo teríamos abstellen, anstellen, aufstellen, ausstellen, bestellen, darstellen, durchstellen, einstellen, entstellen e erstellen, sem chegar a sexta letra do alfabeto nas prefixações.

Porém o verbo deuten, que é passível destas matizações não as teve na Traumdeutung. Do enunciado que define o sonho, objeto da Deutung, porém, dois verbos no particípio são portadores do mesmo prefixo, a saber: Ver-: Der Traum ist die (verkleidete) Erfüllung eines (unterdrückten, verdrängten) Wunsches (O sonho é a realização [disfarçada] de um desejo [surpimido, recalcado]) (FREUD, 1900, p.166, grifos meus).

As desinências provocadas pela incorporação do prefixo ver- não foram assinaladas por Freud, na Traumdeutung, mais cabe lembrar seu livro subseqüente, Zur Psychopathologie des Alltagslebens [A psicopatologia da vida cotidiana] (1901) cujas denominações dos capítulos são sobretudo feitas por verbos, ações, que tem em comum este prefixo:

Todos estes verbos marcam os Fehlleistungen, os atos falhos, que preferiria chamar de equívocos. Equi-vocos, enunciação ambígua, pois ao mesmo tempo que o prefixo ver- marca um erro, um engano, ele também serve para designar,

Completude, exaustão:

Transformação:

Amontoamento, conciliação:

Daí, podemos entender como os dois primeiros e melhor pormenorizados mecanismos da formação onírica levam o mesmo prefixo. (FREUD, 1900) A Verdichtung [condensação] e a Verschiebung [deslocamento] que receberam no português prefixos de significação diametralmente oposta: co(m)- e des-.

Lacan, em seu retorno a Freud, lançando mão da teoria lingüística de Ferdinand de Saussure, ao afirmar que o "inconsciente é estruturado como uma linguagem", compara os mecanismos da condensação e do deslocamento com as figuras de linguagem: respectivamente, a metáfora e a metonímia. Isso se torna interessante uma vez que é aqui também a língua na sua textualidade o nosso material de análise.

"A Verdichtung, condensação, é a estrutura de superposição dos significantes em que ganha campo a metáfora, e cujo nome, por condensar em si mesmo a Dichtung, indica a conaturalidade desse mecanismo com a poesia" (LACAN, 1957, p.515).

Cabe aqui lembrar que o termo Dichtung denota também versificar, algo próprio dos Dichter, poetas ou escritores imaginativos. Estes especialistas no uso da metáfora, do significante que se sobrepõe, ou que abre seu sentido para outros. Já a Verschiebung ou deslocamento é mais próxima do termo alemão, o transporte da significação que a metonímia demonstra e que, desde seu aparecimento em Freud, é apresentado como o meio mais adequado do inconsciente para despistar a censura (LACAN, 1957, p.515).

É interessante observar novamente a prefixação. Pois o prefixo de origem grega met(a)- de metáfora e metonímia terá a função do ver- no sentido da transformação, transposição, mudança por substituição (metáfora) ou contigüidade (metonímia). Os termos postos no enunciado, verkleidet e verdrängt, denotam também a mudança sofrida no desejo e sua realização.

O desejo, é recalcado ou suprimido, verdrängt ou unterdrückt? Neste momento Freud parece não se preocupar com uma diferenciação. Mas o termo Verdrängt teria como melhor tradução talvez desalojar ou deslocar. Como uma pessoa que com um empurrão tira, desaloja [verdrängt] uma outra de sua posição. Ou como um grande navio que desloca [verdrängt] a água a sua frente. O desejo de que Freud fala é o desejo desalojado. Desalojado da esfera consciente do Eu.

Sua realização é portanto verkleidet, disfarçada, ou melhor trans-vestida (4), muda sua roupagem, sua apresentação. Isso pode explicar porque uma realização de um desejo inconsciente pode se dar num pesadelo provocador de tanta angústia consciente. Como o prazer (Lust) inconsciente pode acarretar em desprazer consciente (FREUD, 1920); num sujeito dividido.

A Deutung freudiana ganha, sobretudo a partir do estatuto interpretativo desenvolvido por Lacan, um caráter de Verdeutung. O sentido é torcido, desalojado, partido. Aí poderíamos encontrar uma espécie de "-dade" hedeggeriana (5) do prefixo ver-. O sinthome seria o alcance desta ver-dade no fazer, no como fazer. Como fazer? Lacan (1975) dit comment (Que se mente) / qu’on ment (que nós mentimos). Não há diferença entre o eu falo e o eu minto.

A questão paradoxal da contigüidade entre a verdade e a mentira no discurso encontrou em nossa língua um intérprete privilegiado. Alguém que soube fazer com seu sofrimento, sua divisão interna, Fernando Pessoa. Basta para isso lembrarmos seus versos mais célebres.

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Ao passo que, ao fazer sua Autopsicografia não utiliza a primeira pessoa, no poema contemporâneo intitulado Isto, se justifica agora como "eu":

Dizem que minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto com a imaginação.
Não uso o coração

Torna-se impressionante a um leitor lacaniano a apreensão da ex-istência feita nestes versos complementares. Mas o mais complexo grau de manejo desta ex-istência se encontra certamente no recurso de seus heterônimos, as pessoas que se lhe impõem na escrita. Questionado acerca deles, confidenciou em correspondência pessoal:

"Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histérico neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registro de seus sintomas. Seja como for, a origem mental de meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação."(p.16)

"Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer deles idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler."(p.14)

Não nos interessa saber sobre a acuidade de seu "auto-diagnóstico", no entanto é digno de nota que ele atribui ao seu sofrimento psíquico à origem de seu fazer sublime. Soube romper com a divisão entre a poesia e a dramaturgia para dar voz e assinatura às personas. Faz da ficção desde a fonte, o lugar de enunciação de verdades que no " seu eu" não teriam voz. Transformando o sintoma em sinthome, faz de si uma persona-valise, donde as contrariedades terão diferentes evocações e exorcismos possíveis. Assimila a si diferentes ver-dades, faire-nando pessoas.

Notas:

1 Inferno/A fazer como Lacan.

2 "Sobre ‘Ver-‘", prefixo alemão homófono a faire no francês.

3 Termo ambíguo que pode se traduzir por passo de sentido ou não-sentido/sem sentido.

4 Usando o prefixo latino trans- como correlato ao grego met(a)- e ao alemão ver-, em junção com (ge)kleidet, vestido em alemão.

5 Trata-se do sufixo –heit que Martin Heidegger usa em Sein und Zeit (1927) ao tratar da noção de essência. Como exemplo ele utiliza a Tischkeit des Tischs, ou "a mesidade da mesa", aquilo que a faz ser o que é.

 

Referências

FREUD, Sigmund (1900/1999) – Die Traumdeutung in Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main; Fischer Ver lag

FREUD, Sigmund (1901/1999) – Zur Psychopathologie des Alltagslebens, in Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main; Fischer Verlag

FREUD, Sigmund (1920a/1999) – Jenseits des Lustprinzips in Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt am Main; Fischer Verlag

GARCIA ROZA, Luiz Alfredo (1990) – Palavra e Verdade na filosofia antiga e na psicanálise, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro

GARCIA, Ivanir B. (2001) – Inconsciente Linguagem Palavras-Valise in Clinamen, Revista Psicanalítica No. 1, Florianópolis: Maiêutica Florianópolis Isntituição Psicanalítica

LACAN, Jacques (1957/1995) – A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud in Escritos, Jorge Zaher Editor, Rio de Janeiro

LACAN, Jacques (1974) – Seminário 22 "R.S.I.", (inédito)

LACAN, Jacques (1975) – Seminário 23 "Le Sinthome", (inédito)

PESSOA, Fernando (1975) – Ficções do Interlúdio 1 – Poemas completos de Alberto Caeiro, Rio de Janeiro, Nova Aguilar

PESSOA, Fernando (1980) – O Eu Profundo e Outros Eus, São Paulo, Nova Fronteira

SOUZA, Paulo César de (1999) – As Palavras de Freud, São Paulo Ática

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Número 21 - Julio 2005
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