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Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Um psicanalista no divã
Juan David Nasio
Tradução de André Telles
Leandro Alves Rodrigues dos Santos

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"- E quanto ao senhor, qual é seu Deus?"

"- O Deus dos psicanalistas! Se porventura ele existisse, teria o nome de inconsciente, uma vez que é ele que determina nosso pensamentos, dita nossas escolhas e desperta nossas paixões. O que é o inconsciente senão a força que nos leva a ser aquele que devemos ser? (p. 149)"

Ao ler esse diálogo, podemos deduzir que se trata de um fragmento de uma entrevista, de algo até certo ponto corriqueiro: psicanalistas sendo entrevistados por estudantes de psicologia, quase sempre para fins acadêmicos, como parte integrante de trabalhos destinados a disciplinas específicas de seu curso. Mas, como nos mostra esse fragmento, poderíamos imaginar o que pode ocorrer quando há um encontro entre um estudante talentoso, perspicaz e um psicanalista que tem como marca principal uma disposição a tentar o novo?

Certamente uma entrevista interessante, uma possibilidade singular para que o psicanalista possa falar de si, de suas questões, enfim, algo que difere de sua prática habitual, na qual, por meio de seu silêncio, impulsiona o outro falar, dizer de si e, principalmente, se implicar em seus ditos.

Aqui neste caso, temos como produto final dessa inversão de papéis um livro, a mais nova obra de Juan David Nasio, psicanalista argentino radicado na França desde os anos 60, docente da Universidade de Paris VII-Sorbonne por mais de três décadas e, principalmente, responsável por uma produção teórica fecunda, com trabalhos clássicos como: Cinco lições sobre a teoria de Jacques Lacan, Como trabalha um psicanalista? e O prazer de ler Freud, entre outros, editados em nosso país pela Zahar Editores.

Segundo o próprio autor, logo nas primeiras páginas, a idéia desse livro nasceu após "(...) uma série de entrevistas concedidas a um jovem estudante de psicologia, Xavier Diaz. Devo agradecer pela qualidade de suas perguntas (p.07)". São essas perguntas, surpreendentemente imparciais e com uma perspicácia ímpar, que tornaram possível o fluir das idéias de Nasio, um psicanalista acostumado a tratar de temas áridos sem perder a capacidade de falar fácil, sem baratear ou tornar simplórios os conceitos.

Falar de psicanálise não é fácil, especialmente da psicanálise de corte lacaniana, usualmente tomada pelas pessoas como algo denso, exageradamente complicada e, quase sempre, enigmática. Isso se deve, em parte, ao estilo peculiar de Jacques Lacan, pensador que revolucionou a psicanálise francesa, quando propôs um ousado retorno a Freud, já nos idos das décadas de 50 e 60, momento em que imperavam uma quase hegemonia kleiniana na psicanálise. Lacan, durante seu percurso, manteve um fio condutor em seus escritos, um certo rigor na apreensão dos conceitos freudianos e, de forma original, desdobrando-os na questão da linguagem, do significante e dos discursos, aspecto peculiar da condição humana, presente nos laços sociais.

Nasio é contemporâneo de Lacan, estudou com ele, foi seu tradutor dos escritos na língua espanhola, proferiu seminários nos célebres eventos articulados nas universidades parisienses, enfim, uma relação que poderíamos qualificar como próxima de algo entre um mestre e seu discípulo.

Mas, a despeito disso, Nasio alçou vôo próprio, como mostram seus escritos, suas posições originais sobre a psicanálise, especialmente na prática clínica, terreno no qual o psicanalista põe à prova seu desejo e, principalmente, as marcas de seu estilo.

Nesse livro, o estilo de Nasio transparece de forma cristalina, pois a maneira como a entrevista foi estruturada, em alguns capítulos, possibilitam uma passagem sobre temáticas variadas, iniciando pela descrição de como trabalha um psicanalista, descrevendo desde o mobiliário do consultório, até particularidades de seu modo de atuação, muitas vezes surpreendentemente distinto do típico psicanalista lacaniano, tão presente no imaginário dos pacientes, muitas vezes injustamente criticado por seu silêncio implacável, sua suposta frieza e distanciamento excessivo.

O que chama a atenção no discurso de Nasio – e não só nesse livro – é sua capacidade de articulação com as palavras, de como as escolhe e, principalmente, de como as agrupa de uma forma peculiar, desvelando aspectos da sua relação com a psicanálise como, por exemplo, quando indagado por Xavier sobre como escolher o melhor analista, responde que "(...) o melhor critério é simplesmente ir consultar o analista que lhe foi recomendado e –o que é capital – avaliar sobre si os efeitos desse primeiríssimo encontro (p. 34)". Alguma linha mais à frente, continua: "Resumindo, o melhor critério para encontrar seu psicanalista é sentir desde o primeiro contato o desejo confiante de renascer ". Ora, de que renascimento pode estar falando Nasio neste momento, senão o da retificação subjetiva, passo primordial frente ao próprio sofrimento e, em última instância, frente à própria vida. É disso que trata uma análise e, parafraseando Lacan, num final de análise o sujeito precisa sentir, antes de tudo, felicidade por viver, estar de bem com o desenrolar do cotidiano e com que a vida lhe reserva, desde os pequenos detalhes até o imponderável.

E justamente por não desfrutar da vida de acordo com suas possibilidades, é que o neurótico busca por ajuda e, segundo Nasio, isso já favorece seu "potencial de analisibilidade", pois pode "(...) sofrer, interrogar-se sobre seu sofrimento, e tentar responder a isso, eis as condições indispensáveis para se engajar numa análise (p.36)". A questão que cabe nesse momento seria; por quê algumas pessoas aparentemente não se interrogam? Que dizer de um momento na cultura que parece privilegiar somente as relações de gozo com os objetos de consumo, incluindo-se aí as pessoas e os relacionamentos? É um exercício interessante pensar como isso influencia ou atravessa a subjetividade das pessoas, e, de alguma forma, como isso afeta a demanda por psicanálise.

Para Nasio, as questões de nossa época não diferenciam tanto daquelas explicitadas por Freud e os iniciantes da psicanálise, "(...) limitam-se aos principais capítulos da existência: os distúrbios sexuais, os conflitos familiares e os problemas relacionais no âmbito do trabalho. Se considerarmos os sintomas pelos quais somos solicitados, encontramos antes de tudo os medos dos pacientes fóbicos, o desencorajamento dos deprimidos, as ligações passionais e atormentadas das histéricas e, enfim, os pensamentos torturantes do obsessivo (p. 51)". Ou seja, ao menos fenomênicamente, as coisas não parecem ter mudado de forma tão significativa, com exceção de um ponto, aquilo que Nasio chama de "mal estar social desse início de século, (...) a questão preocupante da identidade masculina (p.51)",

Afinal, mais do que nunca, a figura da mulher ocupa um lugar proeminente, tanto na mídia quanto no imaginário, por vezes com um semblante fálico, mas por vezes também beirando a auto-suficiência, numa re-edição moderna da inveja do pênis, numa mistura de mãe completa, profissional ambiciosa e de mulher que não encontra um parceiro à altura. É só uma olhadela rápida em uma banca de jornal para que observemos a profusão de revistas que abarcam essas temáticas. Mas, ao homem, resta um papel ainda mal definido senão de provedor, mas de um companheiro capaz de dividir tarefas, responsabilidades e, supostamente, um poder que ainda é falicizado pela cultura, e talvez aí resida às novas modalidades sintomáticas que chegam aos consultórios, travestidas como síndrome do pânico, depressões nas mais variadas formas e impotências, não só na esfera sexual, mas principalmente psíquicas.

Freud, então, estaria obsoleto? Nasio é contundente nesse ponto: "Em suma, o prazer de ler Freud é o prazer de se sentir inteligente e mais lúcido a respeito de si mesmo. É nisto que Freud é atual, porque vibra em nós e nos torna vivos. Precisamente, a arte de nos fazer ter acesso a nós mesmos, essa vitalidade que Freud insufla em nós pela pertinência e o requinte de seu pensamento – tudo isso faz dele um autor absolutamente moderno. O dia em que essa centelha se extinguir, os textos freudianos se tornarão obsoletos e não passarão de uma espécie de bíblia sagrada e morta (p.134)".

Esse talvez seja um ponto forte deste livro, tratar de assuntos atuais á partir do que ocorre dentro de um consultório, dos pensamentos e questionamentos de um psicanalista que, a seu modo, captura a atenção do leitor e insufla algo de seu desejo. Isso não é pouco!

Portanto, finalizando, todo aquele que se sentir apaixonado pelo inconsciente, como diria Lacan, e desejar praticar a arte e o ofício da psicanálise, leia este livro e atente especialmente para o último parágrafo, no qual Nasio – após afirmar em bom tom: Batalhem! – lança uma sugestão: "Não existe obra senão o ato em vias de se realizar, mesmo o mais comum. Eis, portanto, a máxima que poderia guiar o jovem tomado por seu projeto: fazer com paixão, e, ao fazer, se fazer! (p.150)".

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 21 - Julio 2005
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