Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Primeiro quadro da teoría lacaniana do imaginario: Os complexos familiares
Léa Silveira Sales

Imprimir página

Resumo: No texto "A família" de 1938, Lacan investiga a formação do psiquismo e a concomitante constituição dos objetos da realidade desenvolvendo a noção de estágio do espelho e formatando uma configuração inicial de sua teoria do imaginário na qual a sociologia é apontada como uma espécie de disciplina reguladora da psicologia, capaz de lhe garantir uma necessária objetividade não reducionista. Esse artigo pretende acompanhar as definições de família, imago e complexo e as configurações atribuídas aos complexos de desmame, intrusão e édipo; analisar essa formulação inicial do estágio do espelho e indicar os princípios em jogo na teoria lacaniana desse período.

Palavras-chave: Psicanálise – Lacan – Imaginário

 

 

É possível perceber entre a tese de doutorado de Lacan – Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade (1932) – e o texto acerca dos complexos familiares (1938) uma continuidade direta que se traduz em termos das respostas que o segundo trabalho procura dar às questões herdadas do primeiro. Essas questões configuram-se em torno de duas diretrizes paralelas e interdependentes: investigar o "obscuro estágio do narcisismo" e perguntar-se pelo processo de constituição do sujeito considerado como um ser essencialmente social. Isso seria, segundo Ogilvie, uma espécie de resto que a tese de doutorado teria legado às investigações teóricas posteriores do psicanalista: Terminada sua tese, podemos supor que Lacan empreende o cumprimento do programa que traçou para si: elucidar este obscuro narcisismo primário, precisar sua articulação com a situação social que o circunda. (2) (1987/1991, p. 101)

Porém, ao lado da continuidade da questão, existe também, de acordo com esse autor, um movimento de distanciamento que se manifesta em dois principais aspectos: 1- enquanto na tese havia a idéia de desenvolvimento por imitação, o que implicava a conservação de uma exterioridade a ser abolida pela estipulação de um paralelismo entre psíquico e social, no texto sobre a família essa idéia é trocada – com o recurso ao aparato da teoria psicanalítica – por uma teoria da constituição do sujeito que tem a identificação como principal operador conceitual. Isso elimina a necessidade de um confronto entre interior e exterior porquanto significa que o acesso a uma identidade própria só ocorre a partir de uma outra, noutras palavras, o outro é quem assume o papel principal na constituição do mesmo. 2- se na tese a referência filosófica mais importante era Espinosa, agora ela passa a ser Kojève com sua leitura da Fenomenologia do Espírito. Certamente, as duas mais evidentes inflexões do ensino de Kojève no texto sobre a família e na teoria do imaginário como um todo serão a onipresença da idéia de negatividade e a concepção do desenvolvimento psíquico como um processo dialético que, como tal, envolve inclusões do negativo e operações de superação.

A continuidade entre a tese de doutorado e o artigo sobre a família passa necessariamente por um dos raros trabalhos publicados por Lacan nesse intervalo(3). No final de Para além do ‘princípio de realidade’, artigo publicado em Évolution psychiatrique no ano de 1936, ele se pergunta: (...) através das imagens, objetos do interesse, como se constitui essa realidade em que se concilia universalmente o conhecimento do homem? Através das identificações típicas do sujeito, como se constitui o eu, onde é que ele se reconhece? (1936/1966, p. 92) Promete para um nova contribuição à mesma revista, examinar pesquisas relativas à realidade da imagem e às formas do conhecimento que convergem para "a nova ciência psicológica." Apesar de não ter se concretizado, esse artigo em projeto aponta o direcionamento que Lacan dará a seus estudos com as futuras pesquisas acerca dos complexos familiares e do estágio do espelho. Tudo se passa como se seus trabalhos desse período procurassem responder àquelas questões. Com efeito, muitas das idéias aí desenvolvidas encontram-se esboçadas em Para além do ‘princípio de realidade’, idéias que, por um lado ainda remetem à tese de doutorado e, por outro, já antecipam o que será trabalhado no texto de 1938. É o caso, por exemplo, da ênfase no conceito freudiano de identificação, da tese da "fecundidade psíquica de toda insuficiência vital", da idéia de que o comportamento individual exprime sempre os traços das relações psíquicas primitivas as quais, por sua vez, são determinadas por uma estrutura social específica, e da indicação do complexo como o operador conceitual capaz de, em oposição ao instinto, teorizar de forma objetiva e concreta a respeito da realidade humana: É por intermédio do complexo que se instauram no psiquismo as imagens que informam as unidades mais vastas do comportamento: imagens com que o sujeito se identifica alternadamente para encenar, ator único, o drama de seus conflitos. (Lacan, 1936/1966, p. 90)

Em De nossos antecedentes, Lacan explica que a primeira divulgação do estágio do espelho – pivô de nossa intervenção na teoria psicanalítica (1966, p. 67) – deu-se no XIV Congresso Internacional de Psicanálise, em Marienbad (31 de julho de 1936). O congresso foi realizado sob a presidência de Ernest Jones que teria impedido a continuidade do pronunciamento de Lacan (4). Resultado foi que se perdeu o texto referente a essa apresentação, pois seu autor "esqueceu-se" de entregá-lo para as atas do congresso. Dele só restam o título em francês – Le stade du miroir. Théorie d’un moment structurant et génétique de la constitution de la réalité, conçu en relation avec l’expérience et la doctrine psychanalytique – seu regitro, em inglês, no International Journal of Psycho-AnalysisThe looking-glass phase – e, segundo Ogilvie, as duas questões indicadas, mas não desenvolvidas, em Para além do ‘princípio de realidade’. A forma textual mais conhecida do estágio do espelho é a que foi apresentada em 1949 no Congresso Internacional de Psicanálise de Zurique e que consta nos Écrits sob o título de O estágio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. Mas sua primeira ocorrência disponível encontra-se no artigo sobre a família de 1938.

Trata-se de um texto escrito para a Encyclopédie Française a pedido de Henri Wallon. Em seu tomo VIII, a enciclopédia consagra-se ao tema da "vida mental" e Lacan foi incumbido de para ele contribuir, especificamente na seção A, A família, segunda parte, Circunstâncias e objetos da atividade psíquica. O título completo sob o qual se concretizou a republicação dessa contribuição foi Os complexos familiares na formação do indivíduo – ensaio de análise de uma função em psicologia.

Nesse trabalho – o qual, segundo Macey (5), firmou seu reconhecimento junto ao meio psicanalítico – Lacan procura pensar, grosso modo, o desenvolvimento psíquico do sujeito a partir de duas noções principais: imago e complexo. A relação entre os dois supõe o advento de uma crise geradora de angústia cuja saída é designada como a sublimação/superação da imago. O artigo tenta investigar, por meio da dinâmica dos complexos e das imagos, a construção do psiquismo na família e a concomitante constituição dos objetos da realidade. É esse processo que ele descreve e analisa, refletindo sobre suas possíveis conseqüências, especialmente no campo da psicopatologia.

É interessante sublinhar uma observação temporã na qual Lacan defende a atualidade desse artigo. No Seminário 11, de 1964, afirma a seu respeito: Esse artigo será recolhido na edição que tento fazer de um certo número de meus textos (6), e vocês poderão, penso, julgar se ele perdeu sua atualidade. Eu creio tanto menos nisto quanto todas as questões que ali levanto são as mesmas que agito diante de vocês, e que são presentificadas pelo fato de que estou aqui, na postura que é a minha, para sempre introduzir esta mesma questão – o que é a psicanálise? (p. 11) Se, de maneira geral podem ser identificadas algumas questões comuns a 38 e 64, as tentativas de resposta passam por caminhos e referências extremamente diferentes e, fundamentalmente, a atenção prestada em 38 à psicologia encontrar-se-á suprimida de seu posterior questionamento quanto aos fundamentos da psicanálise.

1.1. A família

Antes de se deter nos complexos, Lacan empenha-se em fornecer uma introdução voltada para a própria noção de família. A partir de que pressupostos ela será pensada? Trata-se de tomá-la como um dado natural ou de, pelo oposto, contribuir para sua desnaturalização? Além de definir sua posição quanto a essas perguntas, a introdução aponta algumas linhas gerais que estruturam seu pensamento nesse momento. Aliás, em seu título mesmo – A instituição familiar – já é possível encontrar uma pista do que vem a seguir. Enquanto o surgimento da família de uma forma geral é pensado como o fato natural da união de indivíduos em virtude de relações biológicas (geração e adaptação às condições do meio) e enquanto nos animais essas relações biológicas estão ligadas a comportamentos instintivos, no homem, em função de sua "natureza" cultural, ocorre uma subversão da dimensão da realidade que implica uma determinação diferente não só da organização familiar como de qualquer fenômeno social. Lacan ressalta, desde já, a importância do desenvolvimento da capacidade comunicativa para essa diferenciação da humanidade em paralelo ao que ele chama de "economia paradoxal dos instintos": A espécie humana caracteriza-se por um desenvolvimento singular das relações sociais, que sustenta capacidades excepcionais de comunicação mental e, correlativamente, por uma economia paradoxal dos instintos que aí se mostram essencialmente suscetíveis de conversão e de inversão e não possuem mais efeito isolável a não ser de maneira esporádica. (7) (Lacan, 1938b, p. 8’40-3)

Essa necessidade de estabelecer uma ruptura radical entre natureza e cultura aqui viabilizada por uma teoria do complexo será reiterada sob as condições do projeto estruturalista. Simanke explica que o destaque conferido à cultura em detrimento da natureza no âmbito do humano pode ser pensado como a primazia do imaginário sobre o real, configuração teórica que caracteriza, em termos gerais, o cerne da primeira teoria do imaginário (8). Aqui, é esse o registro requisitado para fundamentar o elemento chave do corte entre natureza e cultura que propicia o processo de humanização. A partir de 53 essa função será deslocada para o registro simbólico.

Para que se tenha acesso a todos os traços da instituição familiar, Lacan entende ser necessário contar não apenas com o método da psicologia concreta (9), mas também com dados de disciplinas como etnografia, história, direito e estatística que, coordenados pelo método sociológico, (...) estabelecem que a família humana é uma instituição. (Lacan, 1938b, p. 8’40-3) Essa instituição possui valor central para o que se quer estudar – a construção psíquica do sujeito – por sua função na transmissão da cultura. É ela quem promove o desenvolvimento psíquico por meio de três principais tarefas: educação, repressão dos instintos e promoção da aquisição da língua. Assim, proporciona a organização das emoções do sujeito segundo um condicionamento que recebeu, por sua vez, da sociedade. Enfim, a família (...) transmite estruturas de comportamento e de representação cujo jogo ultrapassa os limites da consciência. (Lacan, 1938b, p. 8’40-3)

Lacan esforça-se por defini-la longe de qualquer biologismo. Explica que a continuidade de traços psicológicos que se pode observar entre diferentes gerações deve-se à transmissão de disposições psíquicas e não a uma hereditariedade biológica. É o estudo dos complexos que vai permitir descrever a forma dessa transmissão. Ele destaca a dificuldade que o psicólogo sente em não referir a hereditariedade psicológica à biologia e insiste em que essa aproximação deva ser descartada para os objetivos de uma pesquisa sobre a família. Vê na coincidência numérica entre os membros da família ocidental (pai, mãe, filhos) e os da família biológica, outro pretexto para que se afirme a determinação biológica do grupo familiar humano, mas argumenta que isso não pode significar muito já que não é possível encontrar essa mesma coincidência nas famílias primitivas cujas formas de agrupamento não se restringiam à consangüinidade.

Se a biologia, ainda assim, ocupa um espaço nesse estudo, ele só pode ser o da acentuação de seu papel negativo. A elaboração de Lacan passa pelo seguinte: existe um dado natural no homem – seu nascimento prematuro que o torna totalmente dependente dos cuidados de outrem e incapaz de sobreviver se abandonado à própria sorte – que constitui a origem mesma de sua ultrapassagem da natureza; essa carência biológica natural, acompanhada do extraordinário desenvolvimento das faculdades comunicativas, faz com que a cultura, ao invés da natureza, seja o fator de especificação da humanidade e também que a ineficiência dos instintos receba como suplemento a injunção psíquica dos complexos.

Essa idéia do nascimento prematuro do homem – herdada de Louis Bolk, anatomista e embriologista holandês – é um dos principais eixos da teoria do imaginário. Com ela, a noção de complexo opõe-se diametralmente à de instinto; a primeira, ao substituir a segunda, é a única capaz de determinar o específico da ordem humana, de fazer surgir um sujeito.

Por isso, só é justo pensar o complexo sob a grade da cultura. Isso conduz o ser humano para longe da estereotipia dos instintos e do vínculo de co-naturalidade que o organismo animal demonstra agenciar com seu meio ambiente. Ogilvie sublinha o lugar negativo da biologia no homem: (...) o caráter social do ser humano não vem se acrescentar, de maneira essencial, a um conjunto de determinações próprias ao reino dos seres vivos em geral, mas vem ocupar o lugar de uma carência, de uma ausência caracterizada e específica. (1987/1991, p. 92) O sujeito é conduzido a ser social e a viver uma condição de descontinuidade com seu meio ambiente em virtude de uma deficiência que lhe é interna e inata e que lhe coloca numa situação de dependência vital com relação ao grupo. A insatisfação instintual ganha a sobredeterminação da construção de fantasias inconscientes.

Portanto, o que Lacan faz não é negar toda e qualquer afinidade do complexo com a biologia, mas sim dizer que o valor dessa disciplina para a compreensão da família humana e do psiquismo aí instaurado se expressa no sentido extremamente pontual de que a constituição do sujeito em relação ao grupo tem em vista sua superação, ou seja, é a negatividade frente à biologia que confere ao psiquismo sua dimensão própria. Diz o autor: Enquanto que o instinto tem um suporte orgânico e não é nada mais do que a regulação deste numa função vital, o complexo só ocasionalmente possui uma relação orgânica, quando ele supre uma insuficiência vital pela regulação de uma função social. (Lacan, 1938b, p. 8’40-7) (10)

Assim, a família humana deve ser compreendida no contexto das relações sociais. No início da primeira parte do estudo, a qual recebe o título de O complexo, fator concreto da psicologia familiar, Lacan insiste na caracterização cultural do complexo como subversão da fixidez instintiva.

Com isso, ele situa a sociologia como uma espécie de disciplina reguladora da psicologia, capaz de lhe garantir uma necessária objetividade não reducionista: a ordem de realidade do complexo é o objeto próprio da sociologia. Apesar de o tema propriamente sociológico ultrapassar o escopo de seu estudo acerca da família, é a consideração do fato social que deve conferir a dimensão concreta do fato psicológico apreendido através da observação do comportamento e da experiência da psicanálise. É no campo assim formatado que se situa o complexo, alvo específico de uma pesquisa sobre a família tomada como objeto e circunstância psíquica. (Lacan, 1938b, p. 8’40-5)

1.2. O complexo e a imago

O complexo é definido por Lacan por sua função de reprodução da realidade. Essa reprodução ocorre de duas maneiras: primeiro, a forma do complexo, em sua origem, reflete uma configuração da realidade específica de um determinado momento do desenvolvimento psíquico; segundo, a realidade que foi desse modo fixada é repetida pela atividade do complexo sempre que o sujeito se depara com situações que demandem uma "objetivação superior dessa realidade", ou seja, situações que exijam do sujeito o esforço de um trabalho psíquico (11) – é esse tipo de situação que condiciona o funcionamento do complexo.

Ele é então constituído por três aspectos que reforçam sua determinação cultural: requer a efetivação de uma "relação de conhecimento" pois seu conteúdo implica que objetos sejam nele representados (12); força uma "organização afetiva" pois sua forma exige do sujeito um processo de objetivação da realidade que envolve emoções e sentimentos; constitui uma "prova" pois, ao chocar-se com o real, o complexo torna explícita a situação de carência do sujeito diante de sua realidade. Esses três movimentos inerentes ao complexo definem-se, segundo Lacan, por uma referência ao objeto que carrega consigo propriedades de comunicação, ou seja, propriedades culturais.

O movimento de objetivação da realidade implicado pelo complexo em seu papel de organizador do desenvolvimento psíquico conhece sucessivas reiterações que se dispõem num processo dialético: o surgimento de uma nova forma do complexo é condicionado pelo que restou dos conflitos da forma precedente com a realidade; noutras palavras, o aparecimento de uma nova crise no quadro de um novo complexo implica a retomada da crise anterior ou de quantas já tiverem se passado.

É possível afirmar que essas duas funções – de objetivação da realidade e de organização do desenvolvimento psíquico – se situam nas extremidades de uma linha que vai da sociedade ao sujeito e é por isso que o complexo pode ser designado como uma instância intermediária entre as dimensões social e psíquica.

Lacan observa que essa sua definição do complexo abrange inclusive o fato de que o sujeito possa ter consciência de sua significação, advogando para si uma compreensão que seria mais ampla do que a de Freud, já que, para este, o complexo seria um fenômeno essencialmente inconsciente.

De acordo com Simanke, essa operação que consiste em "acomodar as idéias de Freud como um caso particular de suas próprias teses" representa uma atitude que Lacan irá repetir diversas vezes ao longo de sua obra, (...) o que vai permitir, num período posterior, reivindicar-se freudiano sem deixar de introduzir, à vontade, elementos que nunca sequer rondaram o pensamento do fundador da psicanálise. (1997, p. 220) Simanke argumenta então que a definição lacaniana de complexo distancia-se do que sobre ela se pode encontrar na obra de Freud. Nesta, o complexo é formado pelas fantasias que presidem as relações interpessoais da infância do sujeito e, embora determine as linhas de interação com os membros familiares, constitui uma configuração intrapsíquica – um conjunto mais ou menos fixo de cadeias associativas – e, como tal, possui origem endógena, o que leva Freud a se confrontar com o difícil problema da causalidade filogenética e das fantasias originárias e a transitar entre os campos psíquico e biológico.

Ora, se a premissa epistemológica essencial para Lacan no estudo sobre a família é justamente abdicar do recurso à biologia, é claro que sua definição de complexo terá que se afastar da de Freud e que uma origem endógena não poderá ser requisitada como fundamento (a não ser pela negatividade da carência instintual, como já explicamos); resultado disso é que ele passa a designar uma espécie de internalização das primeiras estruturas sociais nas quais o sujeito se acha inserido.

Além disso, Freud, ao longo de sua obra, expressou uma tendência a ser mais reservado com relação à valorização atribuída à noção de complexo. Embora seja bastante clara a centralidade conceitual, em sua doutrina, de expressões como "complexo de Édipo" e "complexo de castração" e embora ele por vezes se refira a termos como "complexo paterno" ou "complexo materno", a idéia de complexo como constructo teórico específico terminou por apresentar uma escassez de valor teórico e por sofrer um desvio psicologizante ao ser progressivamente correlacionada com inúmeros tipos psicológicos, ganhando, com isso, uma generalização abusiva que se distanciava de seu sentido original (13).

Mesmo assim, Lacan monta sua exposição de forma que lhe seja possível conviver com as definições freudianas. Dessa forma, malgrado poder possuir uma dimensão consciente, Lacan reconhece que o complexo não pode deixar de envolver a noção de representação inconsciente, pois põe em causa efeitos psíquicos como sonhos, sintomas e atos falhos que exigem a recorrência à dimensão inconsciente do funcionamento psíquico: Esses efeitos têm caracteres tão distintos e contingentes que forçam a admitir como elemento fundamental do complexo esta entidade paradoxal: uma representação inconsciente designada sob o nome de imago. (Lacan, 1938b, p. 8’40-5)

O fato de Lacan, na esteira da crítica politzeriana à metapsicologia (14), rejeitar o conceito de representação inconsciente por seu caráter paradoxal será, até o momento de sua virada lingüística, um dos empecilhos para a aceitação da própria noção freudiana de inconsciente. Durante esse período, ele chega a designar o inconsciente como uma noção inerte e impensável (Lacan, 1946-1950/1966, p. 182) Somente após seu encontro com Lévi-Strauss é que ele adotará os pressupostos para substituir representação por estrutura, pressupostos necessários, a seu ver, para a eleição do inconsciente como principal objeto de estudo.

Todavia, é possível encontrar, já aqui nesse texto de 1938, Lacan privilegiando o valor heurístico da idéia de estrutura quando, por exemplo, afirma que o defeito mais marcante da doutrina analítica foi negligenciar a estrutura em benefício do dinamismo (1938b, p. 8’40-13), afirmação que pode ser considerada um reflexo da ênfase que atribui ao social. Se obviamente esse termo, em sua obra inicial, não está de forma alguma aparentado à definição específica e original que receberá a partir da lingüística, não deixa de indicar uma certa tendência em seu pensamento que, ao se desenvolver na direção do privilégio da forma, terminará por expulsar de vez a idéia de representação.

No entanto, é preciso observar que, nas linhas de 38, o uso da palavra estrutura ocupa um lugar secundário pois, se pensarmos a partir de uma perspectiva estritamente estruturalista, podemos afirmar que, ao contrário do que acontecerá mais tarde, Lacan privilegia fatos sob um ponto de vista psicológico, procurando, por exemplo, prever o destino patológico ou saudável de um sujeito em função do que lhe ocorrera na infância. É comum encontrar nesse texto raciocínios do tipo: "se os acontecimentos forem estes (se a mãe for excessivamente terna, se o pai for demasiadamente ausente), o sujeito sofrerá tais e tais conseqüências" – modelo de pensamento coerente com sua visada psicológica.

De acordo com Evans, o que o termo estrutura manteria em comum entre os textos da década de 30 e os trabalhos ulteriores seria sua conotação de algo ao mesmo tempo intersubjetivo e intrasubjetivo. Esse autor defende que a estrutura como representação interna de relações interpessoais (p. 193) deve ser tomada como um ponto chave para a compreensão de todo o trabalho de Lacan. Todavia, não parece ser possível sustentar essa observação pois veremos adiante (capítulo 1 da II parte) que, a partir de 53, a estrutura jamais poderá ser entendida como instância interna de representação. Na verdade, o que permanece comum entre esses períodos da obra de Lacan com respeito à estrutura parece ser unicamente a fidelidade explicativa à dimensão social.

Uma das conseqüências do fato de Lacan ter posteriormente adotado a estrutura como operador conceitual na acepção própria ao estruturalismo (em oposição ao conceito de representação e ao substancialismo em que este pode incorrer) foi um afastamento radical de seu objetivo original de contribuir para a construção de uma psicologia concreta. O elemento determinante nesse movimento talvez tenha sido mesmo o impasse relativo à noção de inconsciente. Essa intenção quanto à psicologia é explicitamente colocada no texto de 38 no qual o sujeito é tratado como objeto dessa disciplina. Nesse momento, trata-se de procurar compreendê-lo principalmente a partir de suas formações imaginárias – atitude que Lacan abandonará. Na década de 50, ao redirecionar seu caminho teórico, ele passará a criticar os analistas que ignoram a estrutura em favor do imaginário. Enfim, se, com a teoria do imaginário (e também com a tese de 32), Lacan se coloca ao lado da psicologia, sendo o organicismo o inimigo a combater, com a era estruturalista, o aliado se torna adversário e críticas não serão economizadas ao que derive de uma perspectiva psicologista.

Após assumir en passant a necessidade da formulação de uma representação inconsciente, Lacan prontamente lhe sobrepõe o conceito de imago, o que lhe permite passar por cima do problema, visto que esse termo (...) não designa qualquer coisa semelhante a uma ‘imagem mental’ no sentido clássico, mas sim uma posição subjetiva com a qual o sujeito se identifica e a partir da qual ‘interpreta’ (...) a sua realidade imediata e constitui, assim, seu mundo próprio. (Simanke, 1997, p. 220)

O termo imago foi incorporado à teoria psicanalítica por Jung em 1911 e, à época desse trabalho de Lacan, já era de uso corrente no meio. Apesar de Jung ter pensado a imago como um protótipo universal a ser inscrito na vida psíquica de todas as pessoas, na teoria psicanalítica de forma mais geral, a mesma passou a significar um esquema inconsciente adquirido, construído desde as relações interpessoais primitivas com a família – sejam elas reais ou fantasísticas –, esquema que filtra a maneira pela qual o sujeito apreende o outro e o mundo. Imagos agem como estereótipos influenciando o modo como o sujeito se relaciona com as outras pessoas, que são percebidas através das lentes dessas várias imago. (Evans, 1996, p. 84) Nesse sentido, aproxima-se muito do próprio complexo, mas, enquanto este (...) designa o efeito sobre o sujeito da situação interpessoal no seu conjunto; a imago designa uma sobrevivência imaginária deste ou daquele participante dessa situação. (Laplanche e Pontalis, 1967/1992, p. 235) Assim é que, enquanto se fala de imagos materna, fraterna ou paterna, os termos usados para nomear os complexos – de desmame, de castração ou de Édipo, por exemplo – referem-se, não a pessoas, mas a situações cuja amplitude pode envolver mais de um personagem além da criança. É possível afirmar que a imago designa o processo de subjetivação dos complexos. Apesar de a palavra latina utilizada para nomear esse conceito estar diretamente ligada à idéia de imagem, ela designa antes o condicionamento subjetivo a que se submete a imagem, abarcando tanto sua representação visual quanto os sentimentos a ela relacionados (15).

O que Lacan escreve possui consonância com esse significado. Aí ele encontra a justificativa que garante o direcionamento de seu projeto rumo à psicologia pois é a imago, e não o complexo, que lhe permite falar de uma instância propriamente subjetiva. Em Formulações sobre a causalidade psíquica, texto do ano de 1946, ele designa a imago como o que pode conferir à psicologia sua cientificidade: Cremos então poder designar na imago o objeto próprio da psicologia, exatamente na mesma medida em que a noção galileana de ponto material inerte fundou a física (p. 188) e procura situá-la no contexto das relações sociais no qual exerce o papel de síntese de conflitos imaginários: (...) a imago esta forma definível no complexo espaço-temporal imaginário que tem por função realizar a identificação resolutiva de uma fase psíquica, ou, em outras palavras, uma metamorfose das relações do indivíduo com seu semelhante. (p. 188)

É através das identificações construídas no sentido confluente ou oposto ao das imagos que o sujeito adquire padrões de relacionamento com a realidade. Segundo feliz expressão de Merleau-Ponty (citado por Simanke, 1997, p. 220), a imago seria um "centro implícito da conduta". O caráter patológico ou saudável do comportamento subjetivo será definido em virtude do grau de consonância entre as identificações assim adquiridas e as exigências sociais objetivas.

Porém, para além do significado acima explicitado, Lacan procura realizar uma aproximação original entre a imago e a operação da sublimação – num sentido, aliás, já distante do que esta última possuía em Freud (16). Para Lacan, o desenvolvimento psíquico só pode seguir adiante na revelação de novos conflitos e complexos – essenciais para o "acabamento da personalidade" (17) – se a imago resultante de cada complexo for sublimada; se isso não ocorrer, a imago se converte em algo que oblitera o desenvolvimento saudável do psiquismo: A imago (...) deve ser sublimada para que novas relações se introduzam com o grupo social, para que novos complexos as integrem ao psiquismo. Na medida em que resiste a essas exigências novas que são as do progresso da personalidade, a imago, salutar na origem, torna-se fator de morte. (Lacan, 1938b, p. 8’40-7) Pode-se constatar com essa afirmação de Lacan o quanto o uso que faz da sublimação nesse momento está muito mais próximo de uma Aufhebung hegeliana psicologizada do que da sublimação freudiana.

Com efeito, Freud falava da sublimação como um dos possíveis destinos a que pode ser submetida a pulsão (18), uma derivação em que a energia sexual volta-se para objetivos não sexuais e atividades valorizadas socialmente. Em 1908, ele explica: [A pulsão sexual] coloca à disposição do trabalho cultural volumes de força extremamente grandes, e isto sem nenhuma dúvida se deve à peculiaridade, que ela apresenta com particular relevo, de poder deslocar sua meta sem sofrer uma diminuição essencial quanto à intensidade. A essa capacidade de trocar sua meta sexual original por outra, não mais sexual, mas psiquicamente aparentada com ela, chama-se a capacidade para a sublimação. (1908/1986, p. 168)

Que Lacan tenha sentido necessário, nesse momento, pôr outros olhos sobre a sublimação entende-se por dois principais motivos: como a sublimação decorre, em Freud, de sua teoria das pulsões, se Lacan não se afinava com a segunda por considerá-la extremamente comprometida com pressupostos biológicos, precisaria, para fazer uso da primeira, submetê-la a um desvio; o que funciona como elemento propulsor para esse desvio é o segundo motivo, ou seja, o fato de estar impregnado do ensino de Kojève e de, consequentemente, enxergar o desenvolvimento psíquico como um processo dialético, o que o faz debruçar sobre o conceito de sublimação uma grade coerente com tal perspectiva.

Outra observação decorre da leitura que Lacan faz da sublimação e ela diz respeito à teorização acerca da morte na psicanálise. Ele admira o fato de Freud ter reconhecido a irredutibilidade da tendência à morte no homem, mas – isso é mais uma conseqüência de seu mal-entendido quanto à teoria das pulsões – critica-lhe ter tornado essa descoberta presa ao mundo dos instintos: (...) o gênio mesmo, em Freud, cede ao preconceito do biólogo que exige que toda tendência se relacione a um instinto. (Lacan, 1938b, p. 8’40-8)

Lacan aponta o caráter contraditório e inaceitável da expressão "instinto de morte". Devido às evidências clínicas – ele o afirma –, precisa não somente confirmar a existência dessa tendência no psiquismo humano, mas também atribuir-lhe o estatuto de elemento especificador desse psiquismo. Porém, para sustentar tal posição, precisa conferir a essa tendência uma origem consoante à teoria que ora desenvolve, a qual é capaz, por tudo o que vimos, de eliminar o suposto parentesco com a biologia e, consequentemente, as supostas contradições. Assim, ela passa a ser explicada em função de dois pontos: 1- o psiquismo carregará sempre consigo a marca daquilo que, para se constituir, teve que superar – o mal-estar resultante da carência biológica original: (...) a tendência à morte, que especifica o psiquismo do homem, explica-se de modo satisfatório pela concepção que aqui desenvolvemos, a saber, que o complexo, unidade funcional desse psiquismo, não corresponde a funções vitais, mas à insuficiência congênita dessas funções (Lacan, 1938b, p. 8’40-8); 2- a sublimação necessariamente malsucedida da imago transforma a mesma em algo que reforça a presença da morte como objeto de uma aspiração. Em 1946, ao discorrer sobre a causalidade da loucura, Lacan retoma e sintetiza a tese exposta no artigo sobre a família: Essa tendência suicida que representa em nossa opinião o que Freud procurou situar em sua metapsicologia com o nome de instinto de morte, ou ainda de masoquismo primordial, decorre, para nós, do fato de que a morte do homem, muito antes de se refletir, aliás de maneira sempre ambígua, no pensamento, é por ele experimentada na fase de miséria original que ele vive, desde o trauma do nascimento até o fim dos primeiros seis meses de prematuração fisiológica, e que depois irá repercutir no trauma do desmame. (1946-1950/1966, p. 186/7)

Ao retomar, em suas funções estruturantes, o conceito de complexo – o qual, de acordo com Laplanche e Pontalis (1967/1992), vinha sendo objeto de desinteresse por parte dos psicanalistas (19) – juntamente com o de imago, Lacan entende que essa atitude possui enorme valor para o enriquecimento da psicologia na direção de uma ciência concreta, principalmente no tocante ao estudo da família que, como já tinha sido ressaltado, é a instância de manifestação dos complexos que mais incidem sobre a constituição psíquica.

É com o complexo e com a imago – duas noções utilizadas para pensar a ligação da criança com a família e com o meio social – que se torna possível transformar a família no objeto da análise concreta que Lacan pretende atualizar ao longo do texto e afirmar que a gênese do sujeito e o determinismo próprio à sua constituição podem ser explicados em função dos esquemas sociais acionados pelo modo de funcionamento do grupo familiar: Complexos, imagos, sentimentos e crenças [esses dois últimos sendo expressões conscientes não excluídas da presente definição de complexo] vão ser estudados em sua relação com a família e em função do desenvolvimento psíquico que organizam, desde a criança educada na família até o adulto que a reproduz. (Lacan, 1938b, p. 8’40-6)

Assim, aquela almejada regulação oriunda da sociologia, aquela necessidade de estabelecer para o sujeito uma determinação social, vê-se fundamentada por uma corrente explicativa que vai da sociedade ao complexo, do complexo à imago, da imago ao comportamento do sujeito.

Durante esse período, Lacan traduz Trieb por instinto e vê, na teoria freudiana das pulsões, um biologismo com o qual seu direcionamento teórico não pode concordar. Assim, se Freud chegou a descrever o desenvolvimento psíquico da criança em termos de fases da libido (oral, anal e fálica – às quais a fase genital se acrescenta com a chegada da puberdade) (20), Lacan, porque aí também enxerga a manifestação de uma tendência biologizante, desenvolve esse seu estudo como se tivesse o objetivo de substituí-las por algo que pudesse ser essencialmente caracterizado segundo um critério cultural (21).

Assim, três serão os complexos indicados como as mais importantes estruturas latentes que organizam os vetores da atividade subjetiva: o de desmame, o de intrusão e o de Édipo.

1.3. O desmame

O complexo de desmame é o mais primitivo, inaugura os sentimentos mais arcaicos que ligam o sujeito à sua família por intermédio da manifestação primordial da imago materna (22). Esses sentimentos serão também os mais estáveis e sofrerão contínuas retomadas e ressignificações ao longo da dialética dos outros complexos, ou seja, tanto o complexo da intrusão quanto o de Édipo serão ditos em função do complexo de desmame e as sucessivas perdas vividas pelo sujeito serão inscritas psiquicamente como reedições do mesmo. Ainda que seja o primeiro, ele já se mostra totalmente regulado por fatores culturais e, portanto, já se define a partir de uma ultrapassagem do instinto.

Todavia, sublinhada a diferença, Lacan demarca dois traços em comum entre o complexo de desmame e o instinto: tanto quanto o instinto é um traço geral do reino animal, o complexo de desmame apresenta-se de forma tão típica na humanidade que pode ser considerado uma sua generalidade e, embora não sofra uma determinação estrita de fatores naturais, cumpre a função de representar no psiquismo a função biológica da lactação.

É por causa dessa pseudo-relação com a biologia, e por ela ter sido entendida como um dado natural, que, segundo Lacan, o comportamento da mãe diante de seu filho é muitas vezes reputado ao famoso "instinto materno". Mas basta a observação de um único fato para que não se sustente esse pensamento: é que a tendência afetiva da mãe para com a criança não se dissipa com a ablactação, ao contrário do que ocorre no animal. Assim, Se a regulação que se observa na realidade não aparece como nitidamente contra a natureza (...), seria ceder a uma ilusão grosseira procurar na fisiologia a base instintiva dessas regras (...). (Lacan, 1938b, p. 8’40-6) A duração do sentimento materno no ser humano será explicada, adiante, também em função da permanência ativa da imago do seio no psiquismo da futura mãe.

De acordo com Lacan, o desmame muitas vezes deriva em trauma porque constitui uma crise vital que se desdobra numa crise psíquica: interrompe um vínculo biológico ao mesmo tempo que o deixa para sempre marcado no psiquismo. Essa interrupção da relação orgânica e sua subseqüente retomada psíquica é traduzida por Simanke da seguinte forma: O cerne da tese lacaniana é que o rompimento real do vínculo alimentício que une mãe e filho é costurado pelo surgimento de um vínculo imaginário, que funda uma outra forma de relação. (1997, p. 223)

A resolução dessa que é a primeira das crises com que o sujeito vai se deparar ao longo de seu percurso possui, tanto quanto as posteriores, uma estrutura dialética: pela primeira vez, parece, uma tensão vital se resolve em intenção mental (Lacan, 1938b, p. 8’40-6); isto é, o conflito que repousava originariamente numa dimensão biológica termina por exigir do sujeito – de maneira extremamente rudimentar pois ainda não existe um eu a quem possa ser atribuída a intencionalidade – uma reação diante do desmame que pode consistir em aceitá-lo ou recusá-lo. Ou melhor, aceitação e recusa não devem ser vistas como uma disjunção exclusiva. Antes, o sujeito incorpora uma representação que se situa entre essas duas atitudes e que carrega consigo o traço indelével da ambivalência. Nas palavras de Lacan: (...) a aceitação ou a recusa não podem ser concebidas como uma escolha, uma vez que, na ausência de um eu que afirma ou nega, elas não são contraditórias; mas pólos coexistentes e contrários, elas determinam uma atitude ambivalente por essência, ainda que uma delas prevaleça. (1938b, p. 8’40-6)

Sob a sucessão das crises por virem, essa primeira ambivalência determinará, desde um processo dialético de abrangência crescente, outras determinações psíquicas cada vez mais complexas e irreversíveis que definirão a grade através da qual o sujeito trava suas relações afetivas e intelectuais não só com a família mas com a realidade de uma forma geral.

Embora esse movimento não seja estritamente linear – Lacan observa que ele pode sofrer reversões, mudar de sentido; por exemplo: se a tendência prevalecente do sujeito é recusar o desmame, poderá haver circunstâncias em que a tendência oposta se sobressaia –; embora haja refluxos que complexificam ainda mais as variáveis envolvidas, será sempre possível constatar a presença daquilo que resultou do desenlace primordial da crise do desmame: A prevalência original aí mudará muitas vezes de sentido e poderá, por isso, sofrer os destinos mais diversos; ela aí se reencontrará, entretanto, no tempo e no tom, próprios a ela, que imporá a essas crises e às novas categorias com que cada um dotará a vivência. (Lacan, 1938b, p. 8’40-6)

A vida do recém-nascido é circunscrita por condições que possuem valor fundamental na construção do complexo de desmame. O conteúdo da imago do seio materno – imago da relação nutriente parasitária que esse complexo põe em jogo – é especificado e estruturado pelas sensações características dos primeiros meses de vida e pela organização mental dessas sensações.

Nesse período ainda não existe uma coordenação sobre as sensações que pudesse conduzir a criança a um reconhecimento de seu próprio corpo e, consequentemente, ela não é capaz de se diferenciar de uma exterioridade. Por conseguinte, não cabe falar aí nem da existência de um eu nem de seu correlato que é o objeto.

Tese central na teoria do imaginário é a concomitância na construção dessas duas instâncias – eu e objeto –; o advento do sujeito através dos sucessivos complexos é acompanhado do estabelecimento de uma relação de conhecimento com o mundo. A constituição da subjetividade e a operação de aquisição do conhecimento são explicadas pelo mesmo processo e possuem a mesma gênese. Esse paralelo é que fundamenta a tese fundamental da teoria do estágio do espelho, segundo a qual é por uma alienação no outro que se chega a dizer "eu", tese à qual Lacan gosta de ligar o verso de Rimbaud "eu é um outro".

Além disso, as primeiras sensações da criança possuem o caráter de um sofrimento que a dedicação dos cuidados maternos não é suficiente para dissolver. Ele é definido principalmente, segundo Lacan, pela angústia decorrente da asfixia do nascimento, pelo frio a que fica submetido seu corpo nu e pelo mal-estar labiríntico; todos conseqüências da brusca mudança de condições entre o ventre materno e o mundo exterior, da (...) insuficiente adaptação à ruptura das condições do ambiente e de nutrição que constituem o equilíbrio parasitário da vida intra-uterina. (Lacan, 1938b, p. 8’40-7)

Porém, apesar dessa falta de coordenação inicial, a criança consegue isolar, em sua percepção do exterior, alguns elementos dos objetos que constituem o alvo de seus primeiros interesses afetivos, como o demonstram suas reações diante do rosto humano. É essa capacidade que lhe permite reconhecer, de maneira extremamente precoce, a importância da função materna. Ela está ligada, portanto, à satisfação das primeiras necessidades à qual a criança não pode aceder sozinha devido ao seu nascimento prematuro, satisfação que (...) surge com os sinais da maior plenitude com que possa ser satisfeito o desejo humano (...). (Lacan, 1938b, p. 8’40-7) Está ligada também à ambivalência afetiva característica dessa situação.

Tal ambivalência das relações mentais primitivas possui origem, segundo Lacan, nas sensações proprioceptivas de sucção e preensão que promovem, em mais um movimento dialético, uma ação que é simultaneamente exercida e sofrida pelo sujeito: (...) o ser que absorve é inteiramente absorvido e o complexo arcaico lhe responde no abraço materno. (Lacan, 1938b, p. 8’40-7)

Lacan elege o termo "canibalismo" para falar dessa ligação de fusão ao mesmo tempo ativa e passiva entre mãe e filho, em detrimento de termos como auto-erotismo, narcisismo e erotismo oral, considerados inadequados – os dois primeiros porque nessa fase inicial da vida não existe nem eu nem imagem do eu, e o último porque o erotismo oral, para Lacan, está ligado a uma "nostalgia do seio nutriente" que não se explica pelo complexo de desmame isoladamente pois só se constitui quando este é remanejado dialeticamente pelo complexo de Édipo. A imago materna é, então, construída a partir da relação que a criança e a realidade são capazes de estabelecer entre si, e, nessa época primitiva, é o canibalismo com suas características de fusão e reciprocidade que fornece os moldes de tal relação (23).

Essa deficiência biológica dos primeiros meses de vida, especificada por atrasos generalizados na evolução de aparelhos e funções, faz a infância possuir uma longa duração e confere caráter excepcional ao desenvolvimento do psiquismo humano. Constituída a partir desse dado fundamental, a imago materna exercerá um papel de dominância não apenas na seqüência dos próximos complexos, mas durante toda a vida do sujeito.

De acordo com Lacan, existe apenas uma única circunstância em que a determinação da imago do seio materno pode encontrar uma saturação: a vivência da maternidade, durante a qual a mãe experiencia o lugar oposto àquele que ocupou nos primeiros momentos de sua vida – se outrora fora objeto dos cuidados maternos, agora é ela quem os vai prestar. Aí a ambivalência entre atividade e passividade resultante do complexo de desmame cede vez à manifestação mais plena dessa imago, o que acaba consistindo num importante fator de promoção da sobrevivência da espécie, pois é seu funcionamento no psiquismo que garante a tolerância às dores do parto e a atenção que deve ser dispensada à criança para que ela própria possa sobreviver. Diz Lacan: Apenas a imago que imprime no mais profundo do psiquismo o desmame congênito do homem pode explicar a potência, a riqueza e a duração do sentimento materno. A realização dessa imago na consciência assegura à mulher uma satisfação psíquica privilegiada, ao passo que seus efeitos na conduta da mãe preservam a criança do abandono que lhe seria fatal. (1938b, p. 8’40-7)

Com isso, o autor, além de mais uma vez voltar suas armas contra o instinto materno, oferece o arremate de seu argumento a respeito da predominância da cultura na humanidade em detrimento da natureza: não somente o desmame deixa de se referir a uma determinação positivamente biológica como também a própria sobrevivência da espécie humana – fenômeno geralmente tido como incontestavelmente biológico – acaba sendo reputada à causalidade dos complexos e, portanto, a uma determinação cultural (24).

No entanto, porque, ainda assim, o complexo de desmame é o que está mais próximo de um vínculo com a dimensão orgânica, a imago do seio materno é a que está mais arraigada às "profundezas do psiquismo", o que torna especialmente problemática sua sublimação.

Como Lacan liga uma dificuldade na sublimação da imago à sua inevitável transformação em fator de morte, é o desmame que faz as vezes de uma operação que registra originalmente no psiquismo humano sua característica tendência à morte cuja obscuridade pode ser reconhecida nas fantasias de assimilação da totalidade, harmonia universal e fusão afetiva; fantasias que aparecem como sobras dessa primeira perda que se configura no complexo de desmame.

1.4. A intrusão

Dando continuidade ao argumento principal de que a determinação cultural é o fator de especificação da humanidade, Lacan passa a analisar o complexo da intrusão. Complexo que ocupa nesse argumento uma posição especial pois é ele que explica as gêneses da sociabilidade e do conhecimento segundo o protótipo do surgimento do outro.

Nesse ponto do texto, Lacan disserta – pela primeira vez numa produção publicada – sobre o estágio do espelho, pilar central de sua teoria do imaginário. É aqui ainda que a influência kojèviana atinge seu ápice. De acordo com Simanke, em função dessa influência que, no momento, é a referência teórica mais importante para Lacan, o complexo da intrusão é que é considerado nuclear no desenvolvimento humano, constituindo aí um espaço para o exercício na luta pelo reconhecimento – diferente do que acontecia com Freud que privilegiava o complexo de Édipo em sua relação com a formação de um conflito neurótico. Se, como vimos acima, o problema central para Lacan nesse momento é aquele relativo à constituição do sujeito, o complexo que dá conta disso é o da intrusão e não o de Édipo e o tipo de psicopatologia que lhe corresponde é a psicose e não a neurose. Quando Lacan começar a teorizar a primazia do registro simbólico, o complexo de Édipo passará a ocupar um lugar central em seu pensamento. Por conseguinte, a partir daí, muito de seu esforço se voltará para reforçar a ênfase na função paterna. O início desse movimento pode ser identificado com o texto "O mito individual do neurótico" que tem como objeto principal de interesse a relação do complexo de Édipo com a análise estrutural de Lévi-Strauss e com o caso do Homem dos Ratos.

Todavia, passar a privilegiar o complexo de Édipo, ao tempo em que os termos "complexo de desmame" e "complexo da intrusão" desaparecem quase completamente de seu trabalho, não vai significar que, em sua produção teórica, a psicose ceda lugar para a neurose, mas sim que a teoria chamada a pensar a formação da psicose vai, ela mesma, receber seu fundamento a partir do simbólico, tudo passando a girar em torno da inscrição ou da não inscrição da função paterna e, portanto, do próprio complexo de Édipo.

O complexo da intrusão refere-se à chegada dos irmãos e à irrupção de ciúme que disso decorre. As condições que permeiam essa modulação dos conflitos psíquicos variam conforme dois principais fatores: o contexto cultural no qual se encontra o grupo familiar e a posição que o sujeito ocupa na seqüência dos nascimentos. Essa posição, segundo Lacan, pode lhe designar, para além do fato biológico do nascimento, o papel imaginário de "abastado" ou de "usurpador" com relação a seu(s) irmão(s).

Lacan pretende discorrer acerca do ciúme infantil – arquétipo dos sentimentos sociais, como ele o afirma em um dos subtítulos do artigo –, não nos termos de sua redução a um tema de retórica – como a seu ver acontece, por exemplo, na observação de Santo Agostinho que ele cita: Vi com meus olhos, diz Santo Agostinho, e bem observei uma criança pequena tomada de ciúme: ela ainda não falava e não podia, sem empalidecer, deter seu olhar sobre o espetáculo amargo de seu irmão de leite (1938b, p. 8’40-8) – mas enquanto submetido à observação experimental e à investigação psicanalítica, pilares metodológicos dessa sua pesquisa.

Interessa-lhe chegar, com base nos dados assim obtidos, ao reforço da tese de que o ciúme infantil não se justifica a partir do campo do vital, mas necessita, para ser compreendido, de uma recorrência ao procedimento da identificação. Dessa maneira, o que se poderia pensar ser uma simples disputa por alimento – hipótese mediocremente atrelada aos rejeitados pressupostos biológicos – passa para o domínio da requisitada determinação cultural. Nas palavras do autor: Digamos que o ponto crítico revelado por essas pesquisas é que o ciúme, em sua essência, representa não uma rivalidade vital, mas uma identificação mental. (1938b, p. 8’40-8) O que se torna importante considerar desde essa perspectiva não é o fato natural do nascimento do irmão, mas a forma como, a partir dele, serão configurados os complexos e as imagos. Esse movimento conduz, tanto quanto ocorria a propósito do complexo de desmame, para mais uma subjugação do real ao imaginário e a fantasia vem novamente se sobrepor a uma situação biológica.

Lacan situa a vigência desse complexo entre seis meses e dois anos de idade, faixa etária que coincide com a do estágio do espelho. Nesse tempo, a criança é capaz de começar a reconhecer como rival uma outra que não lhe esteja distante na idade. Já se existir uma diferença maior entre as idades das crianças, ao invés de rivalidade, haverá fenômenos como sedução, exibição e despotismo. Lacan trata de ressaltar que, tanto num caso quanto no outro, a situação se passa no nível do imaginário e não no da realidade: Vale dizer que a identificação, específica das condutas sociais, nesse estádio, se funda num sentimento do outro, que só pode ser mal conhecido sem uma concepção correta de seu valor inteiramente imaginário. (Lacan, 1938b, p. 8’40-9)

Isso significa que nessas cenas originárias, o que é eu e o que é outro não se distinguem muito bem para a criança – embora essa distinção vá ser, se tudo correr bem, o fruto mais ou menos estável do complexo da intrusão –; o sujeito se identifica com o outro, se confunde com ele. No encontro de duas crianças pequenas, não há necessariamente uma correspondência entre a atividade de uma e a passividade da outra. Seus papéis se misturam, não são facilmente definíveis. O que é percebido como alteridade pode inclusive ser uma parte da própria criança a qual produz, sozinha, a cena, permanecendo indiferente à outra presença. O importante é que exista alguma espécie de bipolaridade, que se formule um confronto entre partes que possa marcar o início de uma experiência de alteridade.

Da observação dessa não distinção inicial entre eu e outro como objeto e rival, Lacan retira a conclusão de que essas são duas instâncias intimamente correlacionadas, uma conduzindo à construção da outra. O fato de que a criança possa reconhecer o outro como rival implica que se inicie a constituição de seu próprio eu. Pensar a relação de rivalidade permite compreender a origem imaginária do outro; quanto à simultânea gênese do eu em contraposição a essa relação com o outro, é o estágio do espelho que lhe fornece a teoria.

No que toca à relação genética entre eu e outro, Lacan afirma: Depreende-se que a imago do outro está ligada à estrutura do corpo próprio, e mais especialmente de suas funções de relação, por uma certa similitude objetiva. (1938b, p. 8’40-9) Essa semelhança imaginária envolve a oposição afetiva entre o amor e a agressividade implicada no processo de identificação. Ou seja, a forma de raciocínio de Lacan nesse momento requer que sentimentos e atitudes subjetivas sejam decorrentes da dinâmica das imagos e dos complexos. Somente esse viés de causalidade pode ser coerente com sua necessidade de determinação cultural para os fatos psíquicos.

Na consideração da cena primordial entre irmãos, ele atualiza esse raciocínio, dando a ver a gênese da agressividade como decorrência da identificação à imago fraterna: (...) é especialmente na situação fraterna primitiva que a agressividade se demonstra secundária à identificação. (Lacan, 1938b, p. 8’40-9) Acrescenta a isso a observação de que, se o ciúme pode inclusive surgir em situações nas quais a criança mais velha não pode empreender com a recém-chegada uma competição vital pelo leite materno, isso só pode se explicar em função de uma identificação do sujeito com o irmão mais novo, identificação que é necessariamente anterior ao ciúme, causa dele.

Lacan critica o não reconhecimento dessa seqüência explicativa como uma falha da teoria psicanalítica. Porém, não deixa de destacar a importância de ela ter confirmado a prevalência da agressividade nessa fase da vida, bem como a ambivalência presente nesse sentimento entre atividade e passividade: De resto, a doutrina analítica, caracterizando como sadomasoquista a tendência típica da libido nesse mesmo estádio, ressalta sem dúvida que a agressividade domina, então, a economia afetiva, mas também que ela é simultaneamente sofrida e exercida, ou seja, sustentada por uma identificação ao outro, objeto da violência. (Lacan, 1938b, p. 8’40-9) A agressividade marca essencialmente a constituição do eu numa relação de oposição e identificação com o outro, pois esta é uma relação de confronto, de uma luta que se trava no nível do imaginário e não no de uma rivalidade vital.

Aqui, Lacan abre espaço para reformular mais um conceito freudiano. Dessa vez, trata-se do masoquismo primário.

Se, em Freud, o fato de o sujeito causar sofrimento a si mesmo era o fruto necessário da própria atividade pulsional (das pulsões sexuais como fenômeno secundário ao sadismo, com a primeira teoria das pulsões (25); ou da pulsão de morte como fenômeno primário, com a segunda (26)), Lacan, em razão de entender Trieb como instinto e dadas suas premissas de desbiologização da explicação do psiquismo, precisará redefinir a idéia de masoquismo (já entendido por ele como fenômeno primário).

Este fenômeno passa a ser visto como um resultado do movimento de identificação com o outro, pois o surgimento da agressividade, seja ela ativa, passiva ou reflexiva (forma em que o sujeito infringe sofrimento contra si mesmo), se dá a partir da dinâmica dos complexos e não da atividade pulsional.

Esse é um outro passo do caminho para suprimir o parentesco do que Lacan chama de "instinto de morte" com a biologia. Vimos que esse percurso teve início com a definição desse "instinto" a partir de dois pontos do desmame: a inscrição no psiquismo da interrupção da relação biológica e a sublimação malsucedida da imago materna. Agora, três outros pontos juntam-se a essa definição: 1- o instinto de morte, sob a forma do masoquismo primário, tem sua gênese explicada a partir do processo de identificação com o outro; 2- o complexo da intrusão carrega o poder dessa tendência à morte também porque aproxima o sujeito de uma inevitável sensação de despedaçamento corporal que acompanha a construção da noção de corpo próprio; 3- essa aproximação é ainda favorecida por mais um fator: o poder traumático desse complexo advém não somente desses seus próprios movimentos, mas também, e isso é fundamental, da retomada que opera de todos os conflitos mortíferos vividos a propósito do complexo de desmame: A imagem do irmão não desmamado só atrai uma agressão especial porque repete no sujeito a imago da situação materna e, com ela, o desejo de morte. (Lacan, 1938b, p. 8’40-9) Assim, o sujeito, ao observar seu irmão sendo amamentado e identificar-se com ele, revive seu próprio desmame, reeditando a tendência à morte que fora aí experimentada; tendência que, nesse momento, surge sob a forma da agressividade contra si mesmo e contra esse outro que agora ocupa um lugar que um dia foi seu.

Novamente é a grade kojèviana que serve a Lacan para fechar a reformulação do conceito de masoquismo primário: Se se quiser seguir a idéia que indicamos acima e designar conosco, no mal-estar do desmame humano, a fonte do desejo de morte, reconhecer-se-á no masoquismo primário o momento dialético em que o sujeito assume, por seus primeiros atos de jogo, a reprodução desse mesmo mal-estar e, com isso, o sublima e o ultrapassa. (Lacan, 1938b, p. 8’40-9)

É essa a releitura que Lacan realiza sobre o jogo do Fort-da.

Em Além do princípio do prazer, Freud apresenta sua observação dessa que é uma brincadeira infantil bastante peculiar. Em breves palavras: o menininho, autor da brincadeira, empenhava-se em atirar para detrás de cortinas um carretel de linha, de forma a fazê-lo desaparecer de seu campo de visão, ao mesmo tempo em que emitia o som "o-o-o-ó". Algumas (poucas) vezes, essa primeira ação era seguida de uma outra que consistia em puxar de volta o carretel, ação que, por sua vez, era alegremente acompanhada da pronúncia "da" (que, em alemão, significa "ali"). Freud imediatamente relaciona o "o-o-o-ó" da criança à palavra alemã "fort" (que se traduz por "embora", tal como na expressão "ir embora") e a brincadeira em si ao fato doloroso das intermitentes ausências maternas.

Lança, então, três possibilidades interpretativas antes de relacionar diretamente o jogo com a compulsão à repetição. São elas: 1- entender que a criança repetia, por intermédio de um substituto, o gesto que representava a partida da mãe como se isso fosse apenas um fato que necessariamente precedia seu retorno o qual seria, então, o verdadeiro fenômeno desejado; 2- ver, na execução do jogo, a realização de uma vingança contra a mãe que fazia o menino sofrer com suas ausências, como se com isso procurasse afirmar que não precisava mais dela e que ela devia mesmo ir embora; 3- perceber, na encenação do Fort-da, a atividade da pulsão de dominação que consistiria em procurar obter o domínio sobre uma situação à qual, na verdade, o pequeno estava submetido em sua impotência: Na vivência era passivo, era afetado por ela; agora se punha em um papel ativo repetindo-a como jogo, apesar de ter sido desprazerosa. Esse esforço poderia ser atribuído a uma pulsão de dominação que atuava independentemente de a lembrança em si mesma ser agradável ou não. (Freud, 1920/1986, p. 16)

Porém, malgrado ter aventado essas três possibilidades de compreensão da brincadeira, o real interesse de Freud é mostrar que ela deve ser compreendida, ao lado do fenômeno da repetição na transferência e da insistência dos sonhos traumáticos, como um exemplo da tese central que desenvolve nesse artigo, ou seja, revelar aí a atividade da compulsão à repetição, enfim remetendo a encenação do Fort-da ao exercício da pulsão de morte.

Pois bem, o que Lacan faz é, ao invés de se voltar para a pulsão como causa, deter-se parcialmente numa daquelas possibilidades interpretativas elencadas por Freud e dela retirar seu potencial dialético. Para ele, trata-se, nesse tipo de jogo, de reencenar a situação de perda para passar a exercer algum tipo de domínio sobre ela, ou seja, de reverter dialeticamente a condição de passividade em que anteriormente a criança se encontrava. Contudo, Lacan não se esquece de eliminar a relação que Freud estipulava entre essa interpretação e a existência de uma pulsão de dominação. Em suas palavras: [a repetição do jogo] (...) significa justamente que é o patético do desmame que o sujeito inflige de novo a si mesmo, tal como ele o sofreu, mas do qual ele triunfa, agora que é ativo em sua reprodução. (1938b, p. 8’40-9)

Com essa subversão dialética, o sujeito passa por um desdobramento de si mesmo no qual os pólos passivo e ativo convergem para uma ação reflexiva: fazer-se sofrer. Lacan afirma, então, que é a identificação com o irmão que vai permitir conduzir esse desdobramento a uma conclusão que tende a fixar uma das duas posições envolvidas no masoquismo primário. A operação de identificação implica a emergência de um sentimento de agressividade contra o irmão e requer a execução de violência contra ele. Nada disso se passa no nível de uma luta pela vida e o assassinato imaginário do irmão não deixa de ser uma violência contra si mesmo.

Nesse ponto do artigo, Lacan reserva um espaço para falar diretamente sobre o estágio do espelho, o qual será a herança mais importante e duradoura desse texto e da primeira teoria do imaginário como um todo para com sua obra posterior. Inicia a abordagem revelando que sua intenção é corrigir mais uma vez determinados pontos da teoria psicanalítica. Fala que a identificação foi aí especialmente relacionada ao complexo de Édipo e que seu importante papel no período precedente (correspondente ao período em que situa o complexo da intrusão) não havia sido bem investigado. O que o autor pretende ao trabalhar sobre o estágio do espelho é, então, analisar a origem da identificação e propor-lhe uma teoria: (...) o emprego desse termo [identificação afetiva] no estágio que estudamos [período do complexo fraterno] permanece mal definido na doutrina; foi o que tentamos suprir por uma teoria dessa identificação, cujo momento genético designamos com o termo estágio do espelho. (Lacan, 1938b, p. 8’40-9)

Lacan situa o início do estágio do espelho no final dos seis meses de vida, estabelecendo para ele uma correspondência com o término do desmame, ou seja, nos seis meses anteriores ao estágio do espelho o que predominou foi o mal-estar do atraso no desenvolvimento físico de funções e aparelhos, decorrente do nascimento prematuro característico da espécie humana. O reconhecimento da própria imagem no espelho possui uma dupla significação dentro do contexto do complexo da intrusão. Seu estudo revela as tendências libidinais presentes no psiquismo do sujeito durante a encenação desse complexo, tendências que se traduzem por tensões decorrentes da ruptura da humanidade com o nível do vital. A espécie humana teve que abdicar da adaptação imediata ao meio, da qual, por seu turno, o animal desfruta ao apresentar em si mesmo uma extensão da naturalidade do ambiente.

Assim, se o comportamento animal possui um sentido único que vai do instinto ao meio, da vivência de uma necessidade à execução da ação apropriada para supri-la, o comportamento da criança humana se submete, neste nível, à angústia dos conflitos resultantes do fato de que seu acesso aos componentes do meio ambiente necessários à sua sobrevivência física deve inevitavelmente passar pela intervenção de seus semelhantes. Sobre essa circunstância primordial é que se constitui seu funcionamento psíquico. A imagem especular constitui um símbolo da realidade subjetiva desse momento: símbolo do valor afetivo dessa realidade – que, segundo Lacan, é tão ilusório quanto a imagem – e símbolo da estrutura dessa realidade a qual reflete a forma humana. A realidade é, portanto, apreendida – ou melhor, constituída – através do crivo da forma humana que é a executora dessa apreensão.

Existem dois sinais emitidos pela criança que autorizam a dedução de que ela compreende ser a imagem do espelho a sua própria imagem: a execução de um gesto de referência ao próprio corpo e a emissão de expressões de júbilo que atestam a comemoração de sua descoberta triunfante. Lacan chama essa percepção da criança diante do espelho de "intuição iluminativa" que é conquistada após ensaios dirigidos por uma "inibição atenta". Subjacente a essa descoberta da imagem unificada do próprio corpo encontram-se sensações proprioceptivas que fornecem à criança uma informação oposta. Ao mesmo tempo em que vê o reflexo de uma imagem totalizada – uma Gestalt, Lacan dirá em breve –, sua vivência é a de um corpo despedaçado fruto daquela falta de coordenação inata (27).

Disso decorrem duas operações psíquicas: um empenho em vislumbrar a totalização do corpo vivido como fragmentado e, em paralelo, uma tentativa de apreender também a realidade de maneira coordenada seguindo o modelo de apreensão do corpo: (...) por um lado, o interesse psíquico se acha deslocado para tendências que visam a algum recolamento do corpo próprio; por outro, a realidade, submetida inicialmente a um despedaçamento perceptivo (...), se ordena refletindo as formas do corpo que fornecem de algum modo o modelo de todos os objetos. (Lacan, 1938b, p. 8’40-10)

Essa passagem reflete uma idéia sempre presente no pensamento de Lacan: a de que a realidade é apreendida pelo mesmo movimento em que se constitui, movimento que é também o mesmo que converge para a formação do eu. É aí que surge a "estrutura arcaica do mundo humano" denunciada pelo teor das fantasias encontradas na clínica, as quais remetem retroativamente àquele momento em que uma imagem unificada despertava no sujeito a experiência de um corpo fragmentado. Desmembramento, descolação e castração são suas imagens freqüentes.

A tendência para a afirmação de uma unidade própria determina o direcionamento do "progresso mental" do sujeito ditando seu comportamento e seus interesses. Segundo Lacan, nesse momento é possível constatar o predomínio da função visual, fato que converge para a designação da imagem especular como centro propulsor de uma operação psíquica original. Com base nesse argumento, o autor conclui que o reflexo da própria imagem no espelho é, dos fenômenos que sugerem a existência de uma unidade afetiva e corporal, o mais intuitivo. Esse reflexo especular domina uma fase psíquica que é, portanto, narcísica.

Mais do que retomar o sentido de investimento libidinal no próprio corpo – sentido de que esse termo se reveste com Freud (28) –, o que interessa a Lacan é referir-se mais diretamente ao mito de Narciso na medida em que isso lhe permite novamente conferir destaque àquele argumento que vem guiando a dialética de sua pesquisa. Trata-se de enfatizar, por meio da ênfase no sentido de morte que esse mito contém, a carência vital presente na origem do processo de humanização. Lacan chama de "intrusão narcísica" o papel desempenhado pela percepção da própria imagem sobre as tendências psíquicas do sujeito. Esse papel é ao mesmo tempo constitutivo e alienante porque é no momento em que se confunde com essa imagem que o eu conhece sua formação. O narcisismo fornece a imagem antecipada de uma coordenação corporal contra a qual se coloca a vivência traumatizante de despedaçamento oriunda do desmame. Diante dela o sujeito encontra os primeiros elementos norteadores do processo de identificação constitutivo do eu.

À situação especular bipolar sobrepõe-se, de maneira lógica mas não cronológica, uma composição ternária inaugurada pelo ciúme. Mediante um subtítulo explicitamente politzeriano – O drama do ciúme: o eu e o outro – Lacan dispõe o quadro psíquico do complexo da intrusão fraterna. O intruso surge como interferência na satisfação especular, definindo um terceiro objeto. Essa situação triangular interrompe o estado narcísico de confusão e mistura entre o sujeito e a imagem (29).

Dessa forma, Lacan parece distinguir dois tipos de intrusão. Primeiro uma intrusão chamada "narcísica" porque faz surgir o estado do narcisismo pela interferência da imagem especular (ou da imagem do irmão, que também pode servir de modelo) que aponta para a unidade corporal; é contra a percepção da imagem da forma humana que se constitui esse objeto do narcisismo que é o eu. Diz Lacan: "a imagem só faz acrescentar a intrusão temporária de uma tendência estrangeira. Chamemo-la intrusão narcísica: a unidade que ela introduz nas tendências contribuirá, entretanto, para a formação do eu. (1938b, p. 8’40-10) Segundo, a intrusão fraterna que exerce um papel de ruptura, de ameaça ao narcisismo, porque a intrusão traumatizante da forma humana do rival e a emergência de ciúme dela resultante geram novos níveis de angústia que conduzem à construção de outro complexo. No entanto, essas duas espécies de intrusão se sobrepõem porque, segundo a lógica do raciocínio desenvolvido na teoria do imaginário, não é possível falar de um eu anterior ao intruso nem de um intruso anterior ao eu: O eu se constitui ao mesmo tempo que o outro no drama do ciúme (Lacan, 1938b, p. 10), ou seja, a imagem do irmão funciona simultaneamente como modelo e como fator traumatizante (30).

Diante do ciúme, o sujeito se depara, segundo Lacan, com duas possibilidades: (...) ou ele reencontra o objeto materno e vai se agarrar à recusa do real e à destruição do outro; ou, levado a algum outro objeto, ele o recebe sob a forma característica do conhecimento humano, como objeto comunicável (...) (Lacan, 1938b, p. 8’40-11), pois a competição por um objeto exige que ele tenha sido reconhecido por ambos os adversários. Na verdade, não se trata propriamente de um re-conhecimento pois o objeto em questão na rivalidade não é exatamente encontrado, mas construído. O ciúme, por formar seu objeto ao invés de simplesmente apontar sua existência a priori na realidade, distancia-se do nível da rivalidade vital. Assim, o sujeito (...) encontra, ao mesmo tempo, o outro e o objeto socializado. (Lacan, 1938b, p. 8’40-11)

O objeto em questão – a mãe – só é desejado porque: 1- (passo kojèviano) é desejado pelo outro e somente nisso adquire seu valor para além do campo da necessidade vital, 2- (passo de Lacan) o sujeito identificou-se com esse outro na operação narcísica de constituição do seu eu.

Com essa forma de pensar, Lacan estabelece uma relação genética intrínseca entre eu, outro e objeto do conhecimento. A relação eu-outro desencadeia o processo de construção da realidade. Enquanto Freud fala do eu como instância que submete a realidade à percepção consciente, Lacan quer acrescentar a isso uma definição do eu como instância que projeta suas formas imaginárias na realidade, construindo-a : (...) é pelo semelhante que o objeto como o eu se realiza: quanto mais pode assimilar de seu parceiro, mais o sujeito conforta ao mesmo tempo sua personalidade e sua objetividade (...). (Lacan, 1938b, p. 8’40-11)

O fato de enxergá-los como correlatos de um mesmo processo revela alguns importantes direcionamentos de sua teorização: a idéia de que o eu é uma instância psíquica em essência alienada, o reforço da dimensão sócio-cultural (a ser mais tarde retrabalhada pelo destaque conferido à linguagem) como lugar de determinação dos eventos psíquicos e o posicionamento filosófico contra o realismo ingênuo do objeto.

Também devido a esse nascimento conjunto, a esse paralelo entre a constituição do eu e o conhecimento da realidade, Lacan postula que este encontra sua condição de possibilidade na insuficiência vital originária da humanidade, pois o objeto socializado, tanto quanto o eu, é um constructo resultante do desenvolvimento dos complexos que nesta insuficiência encontrou sua razão de ser.

As últimas observações de Lacan relacionadas ao complexo da intrusão dizem respeito às suas conexões com a paranóia, afecção cuja importância para o desenvolvimento das questões mais características de sua obra é revelada desde a defesa da tese de doutorado em 1932 baseada no estudo de um caso de paranóia de auto-punição (nomenclatura proposta pelo próprio autor) até o estabelecimento dos temas centrais da constituição do sujeito e da realidade. Ele afirma que, por um lado, a presença constante das temáticas da filiação, da usurpação e da expoliação apontam a determinação do complexo fraterno sobre a paranóia e, por outro, o quanto a estrutura narcísica desse complexo é denunciada em temas tipicamente paranóides como a intrusão, o duplo, os delírios de influência e de transformação do corpo.

Simanke indica que o ponto de referência clínico privilegiado por Lacan sempre foi a paranóia porque nela se acentua o processo de formação do eu a partir do outro e a produção da realidade como objetivação do eu: (...) o mecanismo – de início, estritamente patogênico – da projeção se converte numa espécie de construtor de mundos. (Simanke, 1997, p.234) Paranóia e conhecimento são temas sempre interligados e enfatizados em sua conjunção pela elaboração teórica de Lacan. Simanke explica ainda que, para além do interesse original de distanciar essa psicopatologia dos fenômenos de déficit orgânico, a teorização acerca do conhecimento paranóico (...) acabou tornando-se a chave para uma reinterpretação geral da relação cognitiva do homem com a realidade. (Simanke, 1997, p. 234)

1.5. O Édipo

Ao dissertar sobre o último complexo elencado, Lacan providenciará outras tentativas de crítica e mesmo de correção de algumas noções freudianas. Outras vezes fará novamente com que uma determinada tese de Freud se configure como um caso particular de suas próprias teses.

De saída, ele ressalta a conexão evidenciada por Freud entre a descoberta do complexo de Édipo e o estudo das neuroses – conexão que permitiu ao fundador da psicanálise formular o próprio conceito de complexo. Já sabemos que esse tipo de afecção não constitui alvo dos interesses centrais de Lacan e isso nos permite de fato deduzir por um deslocamento da importância conferida ao Édipo para o complexo da intrusão (31). O que pode, então, significar o fato de que o autor insista em sublinhar a importância do primeiro? Com efeito, ele afirma: O complexo de Édipo, exposto, tendo em vista o número de relações psíquicas que ele interessa em mais de um ponto desta obra, impõe-se aqui – tanto para nosso estudo, uma vez que ele define mais particularmente as relações psíquicas na família humana – quanto para nossa crítica, na medida em que Freud dá esse elemento psicológico como a forma específica da família humana e lhe subordina todas as variações sociais da família. (1938b, p. 8’40-11) Ou ainda: O complexo de Édipo marca todos os níveis do psiquismo (...). (1938b, p. 8’40-13)

No entanto, apesar desse destaque conferido ao Édipo, será possível perceber, ao longo de sua análise, o quanto os fenômenos a ele relacionados – fenômenos fundamentalmente explicativos da constituição subjetiva – serão sempre definidos em função de retomadas das questões pertencentes aos dilemas dos complexos anteriores, principalmente do complexo da intrusão. É o próprio Lacan quem afirma: (...) ficou evidenciado na análise psicológica do Édipo que ele deve ser compreendido em função de seus antecedentes narcísicos (...). (1938b, p. 8’40-15)

Exemplo representativo dessa operação é a definição da fantasia de castração como um tipo de fantasia do corpo fragmentado, a qual, vimos, constitui o nó do complexo fraterno, ou seja, a castração seria apenas uma das possíveis imagens herdeiras do estágio do espelho e só surge como angústia por remeter a esse momento anterior: (...) a fantasia de castração é, com efeito, precedida por toda uma série de fantasias de despedaçamento do corpo que vão, regressivamente, da deslocação e do desmembramento, passam pela eviração, pela eventração, e chegam até à devoração e ao amortalhamento. (Lacan, 1938b, p. 8’40-14) Todas essas fantasias possuem, segundo Lacan e de acordo com suas referências a Melanie Klein, origem mais materna do que fraterna, ao contrário do que acontece com a concepção freudiana (32). Essa redefinição da castração permite seu afastamento das reais ameaças porventura enunciadas durante a educação da criança e da necessidade de recorrer ao argumento das precoces revelações da dominação do macho (Lacan, 1938b, p. 8’40-13), o qual, segundo Lacan, teria sido utilizado por Freud.

O que lhe interessa é, portanto, ressaltar uma ausência de realidade na fantasia de castração, sua falta de correspondência com o corpo real: (...) o exame dessas fantasias [de castração] (...) permite afirmar que elas não se relacionam com nenhum corpo real, mas com um manequim heteróclito, uma boneca barroca, um troféu de membros no qual é preciso reconhecer o objeto narcísico (...). (Lacan, 1938b, p. 8’40-14) Por esse motivo, ou seja, por não se referir a um corpo real e remontar ao estágio comum do fenômeno especular e da angústia de despedaçamento, a ocorrência da fantasia de castração não possui relação de dependência com o sexo do sujeito. Para Lacan, o objeto visado por essa fantasia não é o órgão masculino mas o corpo imaginário do narcisismo. Assim é que ela pode ser igualmente encontrada na menina (e não em razão de um certo privilégio psíquico do órgão sexual masculino que se fizesse presente inclusive no psiquismo da menina, como Freud havia pensado (33)). A fantasia de castração constitui uma defesa do eu contra o reaparecimento da angústia agora reconfigurada segundo os termos dos conflitos edipianos em torno da interdição do objeto materno: ela representa a defesa que o eu narcísico, identificado a seu duplo especular, opõe à renovação da angústia que, no primeiro momento do Édipo, tende a abalá-lo: crise que não ocasiona tanto a irrupção do desejo genital no sujeito quanto o objeto que ele reatualiza, a saber, a mãe. (Lacan, 1938b, p. 8’40-14)

As diretrizes da visada de Lacan sobre o complexo de Édipo, ele as esclarece: trata-se de revisá-lo historicizando a estrutura da família paternalista e de procurar compreender a manifestação contemporânea da neurose. Antes disso, porém, será preciso que ele retome os traços gerais desse complexo tal como pensado na teoria psicanalítica, inserindo, aqui e ali, suas próprias elaborações.

Lacan subscreve, referindo-se com isso à fase fálica, o reconhecimento realizado pela teoria psicanalítica da existência de pulsões genitais na criança e de que elas compõem a base do complexo de Édipo. Afirma que essas pulsões fixam, para o desejo do sujeito, a figura paterna do sexo oposto como objeto sexual, por ser o objeto mais próximo que lhe oferecem normalmente a presença e o interesse (Lacan, 1938b, p. 8’40-11)

Contudo, é necessário novamente lembrar que a principal vertente explicativa do texto que estamos estudando é o menosprezo da causalidade biológica em favor da afirmação objetiva de uma causalidade psíquica suficiente para a explicação do processo de humanização. Assim, se, por um lado, Lacan é forçado a admitir um fator biológico causal em sua manifestação positiva (lembremos que, a propósito do desmame, o papel da biologia só era apontado pelo que se mostrava ausente), por outro, ele se esforçará por tornar conspícuo o fato de que é o complexo, nas organizações psíquicas que estabelece, que acaba por ser determinante sobre o fenômeno pulsional. Ou seja, a manifestação "natural" das pulsões constitui o alicerce, o dispositivo que põe o complexo a funcionar, mas, o que realmente interessa, ao ver de Lacan, o que fornece considerações pertinentes a respeito da subjetividade, é exatamente o movimento contrário, ou seja, o fato de que as pulsões serão reguladas pela disposição psíquica dos elementos do complexo; é ele, por exemplo, que designa o objeto pulsional: a (...) maturação da sexualidade condiciona o complexo de Édipo formando suas tendências fundamentais, mas, inversamente, o complexo a favorece dirigindo-a para seus objetos. (Lacan, 1938b, p. 8’40-13)

A operação que a seu ver permite o governo do complexo sobre a pulsão é a frustração, essencialmente determinada pela repressão social veiculada pela instituição familiar e, portanto, de acordo com as premissas em questão. Lacan ratifica seu procedimento ao afirmar: (...) essas pulsões [genitais] fornecem ao complexo sua base; a frustração delas forma seu nó. (1938b, p. 8’40-11) Essa frustração é normalmente reputada pela criança ao progenitor do mesmo sexo que surge como terceiro objeto a impedir a satisfação de seu desejo.

Simanke mostra o quanto essa manobra teria sido desnecessária se Lacan houvesse tido mais cuidado com o texto freudiano ao invés de tomar como certa sua vulgata. Enxerga em Freud uma caracterização maturacional da evolução sexual, enquanto essa não seria a única leitura possível do texto freudiano nem a mais correta. O autor explica que Freud não confere um "privilégio natural" às pulsões genitais com relação às outras pulsões parciais; se elas acabam adquirindo uma hegemonia na constituição psicológica, isso se deve também ao exercício da repressão social e à designação de um objeto total para a libido formado a partir do modelo do eu narcísico. Laplanche e Pontalis reforçam essa perspectiva ao explicarem que, para Freud, o acesso à organização genital é favorecido pelo complexo de Édipo e não garantido pela simples maturação biológica (1967/1992, p. 79), isto é, o primado do falo que caracteriza a genitalidade só é possível graças à identificação resultante dos conflitos edípicos. Daí a seguinte afirmação: (...) Lacan sente necessidade de revisar Freud por não compreender, justamente, aquele segmento de sua obra que mais se aproxima com seus próprios pontos de vista; uma compreensão, aliás, que talvez demonstrasse não ser necessário importar tantos conceitos estrangeiros à doutrina psicanalítica para bem relativizá-la. (Simanke, 1997, p. 237)

Apesar de Lacan reputar a Freud a idéia da maturação e apesar de atribuir-lhe as ressalvas acima descritas, ele parece mesmo, pelo que vimos, endossá-la em certa medida, conferindo inclusive o título Maturação da sexualidade a um dos subitens relacionados ao complexo de Édipo. Se em 38, Lacan termina por paradoxalmente trabalhar em cima da noção de desenvolvimento psíquico, malgrado procure conferir-lhe, através dos complexos, uma causalidade cultural, cedo essa noção será abandonada. Ora, seu objetivo é, por enquanto, responsabilizar totalmente uma causalidade psicológica pelo curso dos acontecimentos subjetivos enquanto o geneticismo requer a admissão de um desenvolvimento sexual natural, predeterminado no nível da espécie e, portanto, afinado com premissas biológicas que ele tanto quer rebater.

Na década de 50, essa incompatibilidade será traduzida pela distância existente entre uma visão natural do desenvolvimento sexual e a necessidade de pensar uma articulação simbólica para a sexualidade, a qual será o fator de diferenciação entre pulsão e instinto. Estágios do desenvolvimento serão substituídos por estruturas atemporais. A idéia de "desenvolvimento sexual" será recusada por Lacan também em razão de estar baseada numa concepção linear do tempo, estranha a uma teoria que irá pensar os aspectos temporais como retroação (après coup) e antecipação e ainda porque aponta para a suposta normalidade de uma síntese final da sexualidade na genitalidade com a qual não poderá concordar. Como afirma Evans, no pensamento de Lacan, os estágios pré-genitais não são momentos do desenvolvimento infantil ordenados cronologicamente, mas essencialmente estruturas atemporais que são retroativamente projetadas sobre o passado (1996, p. 40) a partir do complexo de Édipo. Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, por exemplo, Lacan procura demonstrar (...) as relações que se referem, não aos estágios pré-edipianos, que não são, bem entendido, inexistentes, mas analiticamente impensáveis (...), porém aos estágios pré-genitais, tal como ordenados na retroação do Édipo. (1959/1966, p. 554)

Uma conseqüência desse novo ponto de vista é que a observação empírica da criança, considerada em 38 uma metodologia de pesquisa não apenas pertinente, mas bastante requisitada, passará a ser totalmente descartada como fonte de informação. Além disso, é interessante perceber que a idéia – que já aparece em 1938 – de que cada complexo seja remanejado dialeticamente pelo complexo subseqüente, a qual se reafirma no pensamento de que o Édipo exerce uma projeção sobre os estágios pré-genitais, talvez esteja na origem do après coup, conceito central na teoria lacaniana do tempo.

Nesse momento, o Édipo possui uma estrutura tipicamente triangular (34), sendo a mãe o primeiro objeto a se apresentar ao desejo edipiano tanto no caso do menino quanto no da menina, já que foi ela o alvo das tendências afetivas do desmame – (...) como alimento a absorver e mesmo como seio onde se reabsorver (...) (Lacan, 1938b, p. 8’40-13) – e já que esse complexo implica uma retomada dos outros e, portanto, uma regressão ao desmame.

Assim, para Lacan, no sexo feminino, o complexo de Édipo possui alguns traços próprios que o tornam assimétrico com relação à forma como ele se manifesta no sexo masculino. São elas: exigência de uma mudança de objeto – da mãe para o pai –; essa transposição não se realiza de maneira completa, de forma que o objeto materno continuará desviando uma parte do desejo edipiano e, por isso, neutralizando, em certa medida, o potencial do complexo; a tendência genital se diferencia mais facilmente das tendências primitivas pois cada uma está direcionada para um objeto diferente – a tendência genital dirige-se para o pai e requer uma atitude de exteriorização e as tendências primitivas constituem um processo narcísico dirigido para a mãe então não diferenciada ao ponto de ser um outro para o sujeito (enquanto no menino tanto as tendências primitivas quanto a genital são devotadas à mãe) (35).

Um importante ponto de partida dessa análise que Lacan faz do Édipo é a ambigüidade relativa à função do progenitor do mesmo sexo: ele se mostra simultaneamente como o agente da interdição sexual e como o exemplo de sua transgressão. (Lacan, 1938b, p. 8’40-11) O pai que proíbe o incesto é o mesmo que tem acesso à mãe e, por isso, é digno de medo e de admiração. Esse momento [momento da identificação edipiana], fazendo surgir o objeto que sua posição situa como obstáculo ao desejo, mostra-o aureolado da transgressão sentida como perigosa; ele surge para o eu ao mesmo tempo como apoio de sua defesa e o exemplo de seu triunfo. (Lacan, 1938b, p. 8’40-14)

O desenvolvimento dessas duas vertentes do sentimento devotado à figura paterna dá origem a duas operações com a correlata formação de novas instâncias psíquicas que indicam o acabamento da crise edipiana. Trata-se, por um lado, do "recalcamento da tendência sexual" ligado ao surgimento do supereu e, por outro, da "sublimação da imagem parental" relacionada à formação do ideal do eu.

A ênfase nessas duas instâncias e a insistência na importância do duplo processo de sua gênese garantem a Lacan sua emancipação definitiva da causalidade biológica que ele teve que admitir devido ao papel da emergência "natural" das pulsões genitais no disparo do complexo de Édipo. Isso porque a existência dos distúrbios psíquicos e do conjunto dos fatos psicológicos encontra sua "redução teórica e terapêutica" ao ser reputada ao funcionamento daquelas instâncias; torna-se desnecessária a recorrência ao organicismo: As instâncias psíquicas que, com o nome de supereu e de ideal do eu, foram isoladas numa análise concreta dos sintomas das neuroses, manifestaram seu valor científico na definição e explicação dos fenômenos da personalidade; há aí uma ordem de determinação positiva que dá conta de um grande número de anomalias do comportamento humano e, ao mesmo tempo, torna caducas, para esses distúrbios, as referências à ordem orgânica (...). (Lacan, 1938b, p. 8’40-12)

Com isso, Lacan pretende provar que entender a ordem psíquica como epifenômeno do funcionamento orgânico – ou seja, como algo em si mesmo inoperante, carente de força causal – é uma atitude preconceituosa que necessariamente se desvanece quando se dedica à mesma um estudo suficientemente rigoroso. Realiza assim uma total inversão argumentativa, pois, se teorias de cunho organicista procuravam explicar o psíquico em função do orgânico, uma análise competente do Édipo – ou seja, uma análise cujo referencial seja o próprio campo psíquico – permite explicar e tratar inclusive distúrbios que se manifestam no nível das funções somáticas.

Para melhor delimitar o campo em que a psicanálise é capaz de fornecer os fundamentos teóricos destinados a suprir uma teoria estritamente psicológica da família e da constituição do sujeito, Lacan se empenha em revisar as incursões freudianas pelo terreno da antropologia comentando o caráter universal da proibição do incesto. Segundo seu ponto de vista, o reconhecimento da interdição da mãe como lei primordial da humanidade não constitui pressuposto suficiente para sustentar a extensão que Freud confere às suas especulações em torno da ordem familiar. Da observação e tratamento de sujeitos pertencentes a um tipo de família historicamente datado (no caso, a família típica da sociedade vienense do final do século XIX e início do século XX), à construção de uma hipótese a respeito de uma ordem familiar primitiva, haveria, segundo Lacan, um salto teórico insustentável, ainda mais que sua leitura enxerga na especulação freudiana relatada em Totem e tabu um ponto de partida a repousar na expurgada causalidade biológica: que o homem, por sua força física, estaria naturalmente incumbido do papel privilegiado de dominador. Assim ele a caracteriza: (...) uma hipotética família primitiva concebida como uma horda que um macho domina por sua superioridade biológica monopolizando as mulheres núbeis. (1938b, p. 8’40-12)

De acordo com Lacan, o nível de conhecimento então conquistado pela antropologia seria suficiente para rebater essas premissas biológicas, dado que estruturas familiares matriarcais também manifestam a importância da repressão da sexualidade na formação da cultura em todos os seus aspectos, revelando que (...) a ordem da família humana possui fundamentos que escapam à força do macho. (Lacan, 1938b, p. 8’40-12) Além disso, atribuir ao assassinato do pai da horda primeva a origem da moral e da cultura constitui, para Lacan, um argumento cuja forma apresenta uma circularidade, pois como conferir a esse grupo primitivo a capacidade de reconhecer a lei se é justamente a condição desse reconhecimento, sua possibilidade inicial, que se quer explicar e justificar?

Dessa maneira, Lacan prefere situar a importância das contribuições de Freud para a antropologia em outras paragens. O centro a ser reconhecido é exatamente o complexo de Édipo (dissociado de suas conseqüências no campo da filogênese e na especulação sobre questões originárias) no poder que possui para explicar a constituição da ordem familiar: Descobrir que desenvolvimentos tão importantes para o homem quanto os da repressão sexual e do sexo psíquico estavam submetidos à regulação e aos acidentes de um drama psíquico da família era fornecer a mais preciosa contribuição à antropologia do grupo familiar, especialmente para o estudo das interdições que esse grupo formula universalmente e que têm por objeto o comércio sexual entre alguns de seus membros. (Lacan, 1938b, p. 8’40-12)

O poder que o complexo de Édipo possui para explicar a estrutura psicológica da família humana – os fatos que ele permite objetivar e esclarecer – é que deve ser priorizado na obra de Freud e não suas intuições demasiadamente precipitadas (Lacan, 1938b, p. 8’40-12) a respeito dos estágios primitivos da humanidade.

Com a defesa desses argumentos, Lacan revela de maneira evidente o quanto a tentativa de expurgar a causalidade biológica foi o crivo onipresente a guiar a leitura que fazia de Freud nessa época: este é retomado no que tem a fundamentar o espaço próprio da causalidade psíquica e descartado quando supostamente se aproxima da causalidade biológica.

As funções do complexo de Édipo são, então, definidas a partir de seus dois campos de atuação: a evolução da sexualidade e a constituição da realidade. Nas palavras de Lacan: o complexo de Édipo, se marca o ápice da sexualidade infantil, também é o móvel da repressão que reduz suas imagens ao estado de latência até a puberdade; se ele determina uma condensação da realidade no sentido da vida, também é o momento da sublimação que no homem abre para essa realidade sua extensão desinteressada. (1938b, p. 8’40-13)

Como já foi apontado, ao se voltar para a sexualidade, a operação do complexo é de repressão e, portanto, o que está em jogo é o supereu; quanto à realidade, funciona a sublimação e, consequentemente, a instância em questão é o ideal do eu. Esses dois campos, cuja distinção se destina a melhor definir o funcionamento do Édipo, estão a refletir aquele paralelismo caro a Lacan, o que, segundo suas teses, se estabelece entre a formação do sujeito e a constituição do mundo dos objetos.

Devido à reformulação da fantasia de castração designando a mãe como o objeto que a determina, Lacan se refere a um núcleo arcaico do supereu, o qual é responsável pela maior parte da repressão. A repressão materna veiculada pelos cuidados do desmame e pelo controle dos esfíncteres constitui a primeira fonte do supereu. Se lembrarmos que, à época do desmame, o eu não se distingue do outro, essa deve ser considerada uma fonte narcísica do supereu. Apenas mais tarde, a propósito dos conflitos edípicos, é que essa instância repressiva será projetada sobre a autoridade do adulto, ultrapassando sua forma narcísica. Para Lacan, é isso o que explica o fato de que o poder do supereu seja, em geral, inversamente proporcional ao rigor da educação recebida, pois os elementos narcísicos do supereu serão tanto menos transferidos para uma autoridade externa (e, portanto, mais arraigados no próprio sujeito) quanto menos a figura destinada a representar essa autoridade for capaz de realmente exercê-la.

O ponto de partida para a sublimação da realidade, ou seja, para a saída do drama edípico, é a identificação com o progenitor do mesmo sexo. O supereu e o ideal do eu carregarão os traços de sua imago. Aqui, o conceito de identificação será mais um alvo das reformulações de Lacan e novamente o ponto de referência central de sua crítica será o privilégio conferido ao complexo da intrusão. Ele acusa a psicanálise de não ter distinguido entre identificação narcísica e identificação edípica (36). A principal diferença entre as duas é que a identificação narcísica se dá com o objeto do desejo e a identificação edipiana ocorre com o objeto que se opõe ao desejo, isto é, com o objeto que, admiravelmente, é capaz de transgredir a interdição ao mesmo tempo em que a estabelece. Enquanto na fase narcísica era o desejo que definia a realidade do objeto, na fase edípica é a defesa do sujeito que exerce esse papel. A imago do progenitor do mesmo sexo é essencialmente ambivalente pois simultaneamente exalta e deprime o eu, assegura sua distinção com relação ao outro e o ameaça com a angústia da castração, é digno de temor e de amor, surge como motivo da defesa e como exemplo do triunfo da transgressão. Dessa forma, a sublimação consiste em que o eu exalta um ideal que exige a repressão do desejo; a condensação, num mesmo objeto, de um ideal que promove a identificação (por ser exemplo da transgressão) ao tempo em que ameaça o eu (por ser o móvel da repressão) (...) transfigura um objeto dissolvendo suas equivalências no sujeito e o propõe não mais como meio para a satisfação do desejo, mas como pólo para as criações da paixão. (Lacan, 1938b, p. 8’40-14)

Assim, a primeira sublimação da realidade é constituída pelo sucesso em afastar o supereu e o ideal do eu, os quais possuem uma origem narcísica comum mas que agora precisarão distanciar-se um do outro para que possa ser completada a distinção entre a ordem subjetiva e a ordem dos objetos. É importante sublinhar o valor desse movimento de separação entre o eu e os objetos que os conduz para longe da coincidência narcísica pois é isso que permite que Lacan mantenha a corrrespondência entre subjetividade e conhecimento, característica marcante da humanidade porquanto não é observada no animal, o qual estabelece com seu meio uma relação de conaturalidade.

Entretanto, apesar desse afastamento necessário, o que vai determinar a saúde psíquica do sujeito é a existência ou ausência de uma convergência entre os valores do ideal do eu e os ditames do supereu, entre a forma como o mundo dos objetos se constitui e os valores e interdições transmitidos pela família; como explica Simanke: (...) é a capacidade de harmonizar os valores imaginários positivos herdados do Édipo (o ideal do eu) com o sistema de prescrições e interditos mais ou menos bem digerido intrapsiquicamente (o supereu) que vai decidir sobre o caráter saudável ou patológico da personalidade que daí resulta. (1997, p. 242) Nesse sentido, Lacan pode reforçar sua idéia de que não é um dado natural que possui o poder de gerir o direcionamento do Édipo, não é a ameaça da força paterna o agente dos processos patológicos, mas a incapacidade da imago paterna de contribuir para a construção do ideal na mesma medida em que emperra o progresso da realidade e institui falhas na dialética das sublimações; seja por se apresentar sob "formas diminuídas", seja em função do fato concreto da morte do pai. É exatamente aí que Lacan localiza o principal fator causal da neurose contemporânea: Nossa experiência nos leva a designar sua determinação principal na personalidade do pai, sempre carente de alguma forma, ausente, humilhada, dividida ou postiça. (Lacan, 1938b, p. 8’40-16) (37)

Se todo o poder do Édipo reside, assim, no fato de que as funções de represssão e de sublimação se concentram na imago do pai, isso, para Lacan, não deve ser entendido como uma dedução universal, mas como (...) o caso de uma determinação social, a da família paternalista. (Lacan, 1938b, p. 8’40-15) Lacan sustenta esse argumento recorrendo aos estudos de Malinowski sobre as culturas matriarcais nas quais o destinatário da autoridade familiar é o tio materno ao invés do pai. Segundo Simanke, acentuar a ligação do complexo de Édipo com a contingência das estruturas sociais significa inverter a força de mais um argumento naturalista, pois (...) não é um poder inerente à condição paterna que torna esta figura capaz de operar a repressão e impor a sublimação das tendências sexuais, mas é por estar socialmente investida com as funções repressivas e com as imagens do ideal cultural que a imago do pai adquire a sua força e a sua pregnância características. (Simanke, 1997, p. 244)

Seu interesse em sustentar esse ponto de vista mora, mais uma vez, na necessidade de explicar o Édipo em função dos conflitos narcísicos relativos ao complexo da intrusão, desatrelando-o do fato biológico da paternidade. Essa relativização sociológica do complexo é tanto mais importante para Lacan na medida em que está relacionada a uma necessária restrição do alcance das pesquisas psicanalíticas. Tais pesquisas só podem se referir ao contexto do homem moderno e da família conjugal pois esse foi o único contexto sobre o qual elas se debruçaram. Assim, Lacan pode reforçar a coerência de seu atual sistema ao privilegiar critérios antropológicos em detrimento dos biológicos (38).

*

No artigo sobre a família, Lacan empreende a teorização de uma antropogênege não individualista e não reducionista, pensando o desenvolvimento psíquico em paralelo à constituição da realidade. Formula o estágio do espelho no seio do complexo de intrusão, redefine alguns conceitos freudianos – como sublimação, pulsão de morte, castração, édipo – e começa a destacar o papel da noção de imago como operador conceitual de uma ciência psicológica concreta oposta ao organicismo.

NOTAS

1. Esse artigo faz parte da dissertação Dos Complexos Familiares ao Discurso de Roma: Lacan rumo à racionalidade estruturalista defendida em setembro de 2002 no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, sob orientação do Prof. Dr. Richard Theisen Simanke e com financiamento da CAPES. Foi apresentado em setembro de 2003 no II Congresso de Pós-Graduação da UFSCar.

2. Esse mesmo autor constata a existência de um movimento de progressivo estreitamento – entre a tese e a formulação mais explícita do estágio do espelho – que parte da sociedade como instância explicativa dos fatos da personalidade, passa para família e, desta, chega ao espelho. Com a adoção do paradigma estruturalista e a eleição do simbólico como registro privilegiado, é a linguagem que vai passar a ocupar esse lugar de fator explicativo.

3. Apesar da escassez de publicações tanto nesse período quanto em outro intervalo que vai de 1938 a 1948, hoje nos são acessíveis diversas intervenções realizadas por Lacan em exposições alheias que podem fornecer um certo índice de seus interesses (v., por exemplo, www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque)

4. Cf. Macey, 1988, cap 7 Jacques-Marie Emile Lacan: Curriculum Vitae 1901-81.

5. Cf. Macey, 1988, capítulo 2 – Retrospectiva.

6. Na verdade, o artigo sobre os complexos familiares acabou por não constar na edição dos Écrits, diz-se, devido à sua extensão. (Cf nota de Jacques-Alain Miller à edição francesa de 1984, traduzida em Lacan, 1985, Jorge Zahar Editor)

7. Não é sem interesse o fato de que Lacan já atinasse para a importância da comunicação na humanidade em relação com o aspecto explicativo do fator social. Mais tarde, esses seus anti-individualismo e anti-organicismo conduzirão, juntamente com a aproximação do instrumental estruturalista, à exacerbação do papel da linguagem. Também no texto de 1936, Para além do "princípio de realidade", ele já destacava a linguagem como o dado mais importante da experiência analítica, destaque que se tornará o principal pressuposto do chamado Discurso de Roma e de seu programa de releitura da obra freudiana.

8. Cf. Simanke, 1997, item IV.1. A família e seus complexos.

9. Seu projeto teórico visa, desde a tese de doutorado até esse momento, à construção, sob a forte influência de Politzer, de uma psicologia que dê conta da especificidade concreta da causalidade psíquica, fugindo das malhas do organicismo e do espiritualismo e voltando-se para o determinismo oriundo dos conflitos e circunstâncias vitais do sujeito e das suas formas de reação frente a eles. Cf. Simanke, 1997, Ogilvie, 1987/1991 e Macey, 1988. Este último adverte a respeito da reminiscência do uso que Politzer fazia do conceito de identificação sobre a forma como aqui são definidos complexo e imago. Em Formulações sobre a causalidade psíquica, relatório pronunciado em 1946, é o próprio Lacan quem afirma: Pois não percamos de vista, exigindo, seguindo seus passos [de Politzer], que uma psicologia concreta se constitua em ciência (...). (1946-1950/1966, p. 161)

10. Vejamos como Ogilvie pensa, de forma mais abrangente, essa negatividade presente no desenvolvimento humano em relação com uma tendência que, a seu ver, é capaz de caracterizar a psicanálise (lacaniana) de uma forma geral: A psicanálise não é, pois, a análise da gênese objetiva do indivíduo humano em sua dimensão psíquica (que seria ‘paralela’ ao seu desenvolvimento físico), mas o estudo da discordância e da oposição que separa este desenvolvimento da constituição do sujeito, na medida em que este mantém uma relação intrinsecamente negativa com a sua própria realidade." (1987/1991, p. 96)

11. De acordo com Evans (1996), essa seria uma das tentativas de Lacan para teorizar o fenômeno da repetição. As outras seriam a tradução de Wiederholungszwang (termo freudiano geralmente traduzido por "compulsão à repetição") por "automatismo de repetição" (expressão que possui origem na psiquiatria francesa) e a posterior elaboração sobre a insistência do significante.

12. Quanto a esse ponto, a seguinte observação de Simanke pode ser de ajuda em sua compreensão: (...) as relações de conhecimento implicadas pelos complexos exigem, por definição, a distinção entre o sujeito e o objeto do conhecimento que não faria sentido no que diz respeito ao comportamento instintivo, já que o animal é, ele mesmo, um elemento do mundo natural. (1997, p. 219)

13. Cf. Laplanche & Pontalis, 1967/1992. Afirmam os autores: (...) segundo Freud, o termo ‘complexo’ poderia ser útil numa demonstração ou descrição para pôr em evidência, a partir de elementos aparentemente distintos e contingentes, ‘... certos círculos de pensamento e de interesse dotados de poder afetivo’; mas não possuiria valor teórico. (...).

(...) Repugnava-lhe uma certa tipificação psicológica (...) que implica o risco de dissimular a singularidade dos casos e, ao mesmo tempo, apresentar como explicação aquilo que constitui o problema. Por outro lado, a noção de complexo tende a confundir-se com a de um núcleo puramente patológico que conviria eliminar; assim se perderia de vista a função estruturante dos complexos em determinados momentos do desenvolvimento humano, e particularmente do Édipo. (p. 71)

14. Cf. Prado Jr., 1990.

15. Cf. Evans, 1996 e Laplanche & Pontalis, 1967/1992.

16. Evans sublinha, com relação a Jung e Klein, outro diferencial na leitura que Lacan realiza da imago: Enquanto para Jung e Klein as imagos possuem igualmente efeitos positivos e negativos, na obra de Lacan elas pesam fortemente na direção do negativo, sendo fundamentalmente elementos decepcionantes ou disruptivos. Lacan fala da imago do corpo fragmentado e até mesmo imagos unificadas tais como a imagem especular são meras ilusões de totalidade que introduzem uma agressividade subjacente."(1996, p. 84)

17. Essa expressão, Lacan a expõe da seguinte forma: Todo acabamento da personalidade exige esse novo desmame. Hegel formula que o indivíduo que não luta para ser reconhecido fora do grupo familiar nunca atinge a personalidade antes da morte. (1938b, p. 8) Explícita manifestação da psicologização que opera sobre a filosofia hegeliana. Simanke observa que essa idéia de um acabamento da personalidade sofrerá, mais tarde, o repúdio de Lacan por trazer consigo um "‘final feliz’ injustificado para a dialética da consciência" (1997, p. 226).

18. Cf. Freud, 1915/1986. Mais adiante, a propósito do complexo de Édipo, Lacan vai designar, além da imago, outro objeto para a sublimação: a realidade.

19. Também na obra lacaniana posterior essa não será uma noção valorizada. Em função de sua afinidade com um pensamento de tipo psicológico, tenderá a ser substituída por um ponto de vista estrutural. Assim, tal como na obra freudiana, o Édipo e a castração preservam sua centralidade, mas o conceito de complexo, tomado isoladamente, torna-se esvaziado de força teórica, mesmo que, em alguns momentos, sejam utilizadas expressões como "complexo de Édipo" ou " complexo de castração". Já os termos "complexo de desmame" e "complexo da intrusão" desaparecerão quase completamente de seu trabalho. Cf. Evans, 1996, p. 27.

20. Cf. Freud, 1905/1986.

21. Cf. Simanke, 1997, item IV.1. A família e seus complexos

22. Segundo Evans (1996), a elaboração sobre um "trauma do desmame" foi primeiramente desenvolvida por René Laforgue na década de 20. Freud não teria acatado essa tese, tendendo a vê-la como uma forma mascarada de negar a importância do complexo de castração. (Cf. Macey, 1988, p. 35) Num elogioso artigo sobre Os complexos familiares – aliás, primeiro artigo escrito sobre Lacan – Édouard Pichon (um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica de Paris) aponta a influência sobre Lacan de conceitos oriundos da teoria psicanalítica produzida na França, especialmente daqueles introduzidos pelo próprio Pichon e por René Laforgue. Além do desmame, são exemplos dessa observação, os conceitos de captatividade e de escotomização. Pichon critica-lhe não ter indicado as devidas procedências. (Cf Macey, 1988, p. 32-41) Sabe-se bem o quanto esse tipo de procedimento, causador de sérias dificuldades para quem se propõe ler os textos lacanianos, será uma de suas marcas registradas. Macey discorre ainda sobre a presença do conceito de escotomização produzido por Laforgue na origem do conceito lacaniano de forclusion, termo, aliás, introduzido por Pichon tanto no sentido gramatical (no qual se refere à segunda parte da negação em francês) quanto no psicológico (no qual se refere (...) ao desejo de que algo no passado ... nunca tivesse existido. (Damourette & Pichon, 1911-50, citado por Macey, 1988, p. 39))

23. Evans (1996) aponta o quanto essas reflexões de Lacan sobre o complexo de desmame estão repletas de alusões ao trabalho de Melanie Klein. (Cf. p. 117)

24. Da mesma forma, o ato de reprodução será submetido a essa determinação em razão das conseqüências psíquicas do complexo de Édipo.

25. Cf. Freud, 1915/1986.

26. Cf. Freud, 1924/1986.

27. Da impulsão ao complexo, exposição realizada em 1938 à Sociedade Psicanalítica de Paris, apresenta a tese original da existência de um estado estrutural primordial no processo genético do eu chamado por Lacan de "corpo despedaçado" (corps morcelé).

28. Cf. Freud, 1914/1986.

29. Simanke (1997) sublinha que o valor traumatizante de uma ameaça ao narcisismo era assumido, em Freud, pela castração.

30. Essa forma de teorizar a constituição do sujeito, conferindo-lhe essencialmente o valor de um trauma, permanecerá, segundo Simanke, como um ponto de vista marcante na obra de Lacan: A idéia de intrusão estará (...) entrelaçada com os diversos mecanismos que engendram o sujeito do inconsciente: intrusão da operação simbólica da função paterna na relação imaginária; depois, irrupção do real na trama dos significantes que sustenta o sujeito, esta última, a concepção lacaniana mais ou menos definitiva do trauma. (Simanke, 1997, p. 233)

31. Embora seja preciso ressaltar que ao Édipo é reputada a importante função de guiar concomitantemente tanto a evolução da sexualidade quanto a constituição da realidade, como veremos adiante.

32. Novamente, é necessário lembrar que, quando Lacan passar a privilegiar o registro simbólico, a castração será mais aproximada, tal como em Freud, da função paterna.

33. Sabemos o quanto esse ponto sofrerá uma completa inversão com o papel que o conceito de falo desempenhará na obra posterior de Lacan.

34. Mais tarde, devido à influência do pensamento estruturalista, o Édipo será pensado sob a grade de uma estrutura quaternária.

35. De acordo com Laplanche e Pontalis (1967/1992, p. 78), a possibilidade da transposição simétrica do complexo de Édipo (originalmente pesquisado segundo o caso do menino) para a menina foi descartada por Freud devido à tese de que o falo é o único órgão sexual a possuir valor para os dois sexos e devido ao reconhecimento da importância, também na menina, do apego pré-edipiano à mãe. Lacan, obviamente, só segue nesse momento o segundo desenvolvimento.

36. Simanke ratifica que a identificação resultante do Édipo foi a única realmente tematizada por Freud (...) que sempre teve muita dificuldade em admitir a origem identificatória do eu, por parecer-lhe contraditória com a própria idéia de narcisismo, já que pressupunha a abertura para o objeto. (1997, p. 241)

37. Essa questão das formas diminuídas da imago paterna (juntamente com as próprias expressões que ele aqui utiliza para adjetivá-las) será retomada por Lacan em O mito individual do neurótico, texto no qual elas recebem o status de característica da modernidade.

38. O artigo sobre a família possui ainda uma segunda parte chamada Os complexos familiares em patologia na qual Lacan realiza várias análises de cunho psicológico sobre quais as configurações familiares que determinam os diversos tipos de psicopatologia. Há dois itens, um destinado às psicoses e outro às neuroses. Sua análise foge aos nossos objetivos, os quais se restringem à teoria dos complexos na medida em que aponta elementos para a compreensão da teoria do imaginário.

BIBLIOGRAFIA

Evans, D. (1996) An introductory dictionary of lacanian psychoanalysis Londres e Nova York: Routledge.

Freud, S. (1986) Tres ensayos de teoría sexual (J. L. Etcheverry, Trad.) Em: Obras completas (Vol. 7.) Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Original publicado em 1905)

Freud, S. (1986) La moral sexual "cultural" y la nerviosidad moderna (J. L. Etcheverry, Trad.) Em: Obras completas (Vol. 9) Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Original publicado em 1908)

Freud, S. (1986) Introducción del narcisismo (J. L. Etcheverry, Trad.) Em: Obras completas (Vol. 14) Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Original publicado em 1914)

Freud, S. Pulsiones y destinos de pulsión (J. L. Etcheverry, Trad.) [1915] Em: Obras completas (Vol. 14) Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Original publicado em 1915)

Freud, S. (1986) Más allá del principio de placer (J. L. Etcheverry, Trad.) Em: Obras completas (Vol. 18) Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Original publicado em 1920)

Freud, S. (1986) El problema económico del masoquismo (J. L. Etcheverry, Trad.)Em: Obras completas. (Vol. 19) Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Original publicado em 1924)

Kojève, A. (1947) Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard. 6.ed.

Lacan, J. (1938) La famille. Em: Encyclopédie française. (Vol VIII, pp. 8’40-3 a 8’42-8) Paris: Larousse.

Lacan, J. (1966a) Au-delà du "Principe de realité". Em: Écrits. (pp. 73-92) Paris: Seuil. (Original publicado em 1936)

Lacan, J. (1966b) De nos antécedents. Em: Écrits. (pp. 65-72) Paris: Seuil.

Lacan, J. (1966c) D’une question préliminaire à tout traitement possible de la psychose Em: Écrits. (pp. 531-584) Paris: Seuil. (Original publicado em 1959)

Lacan, J. (1966d) Propos sur la causalité psychique. Em: Écrits. (pp. 151- 193) Paris: Seuil. (Original publicado em 1946-1950)

Lacan, J. (1980) O mito individual do neurótico (B. C. Cunha e colaboradores, Trad.) Lisboa: Assírio e Alvim. (Original publicado em 1978)

Laplanche, J. & Pontalis, J-B. (1992) Vocabulário da psicanálise. (P. Tamen, Trad.) São Paulo, Martins Fontes. (Original publicado em 1967)

Macey, D. (1988) Lacan in contexts. Londre, Nova York: Verso.

Ogilvie, B. (1991) Lacan – A formação do conceito de sujeito (1932-1949). (D. D. Estrada, Trad.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Original publicado em 1987)

Prado Jr., B. (1990) Georges Politzer: sessenta anos da "Crítica dos fundamentos da psicologia". Em: Bento Prado Jr. (org.) Filosofia da psicanálise. São Paulo: Brasiliense.

Simanke, R. T. (1997) Composição e estilo da metapsicologia lacaniana: os anos de formação (1932 – 1953). Tese de doutorado, Curso de pós-Graduação em Filosofia, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP.

Volver al sumario del Número 19
Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 19 - Julio 2004
www.acheronta.org