Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Paris, Texas
A reescritura do sentido
María Lucía Homem

Imprimir página

I

O deserto

A negatividade, o silêncio, a perdição. Oscilação.

Uma sombra que perpassa "Paris, Texas" é a da negatividade. O filme transita entre a impossibilidade quase plena - fatum, destino inexorável - e raros flashs de luz, de sentido e da forja de um possível. Primeiro paradoxo: entre o tom e a forma, a atmosfera e a fotografia, dentro e fora. Um filme claro, prenhe da luz do deserto; ao mesmo tempo de excesso, que cega.

A negatividade se corporifica em vários âmbitos. O primeiro deles é o do próprio espaço inicial: deserto. Espécie de paisagem que revela a aridez da terra, a esparsa vida humana e o não-movimento aparente. Um homem vaga por esse lugar que é um não-lugar: sem rumo, sem destino, num seguir ao léu o trilho do trem. E numa leveza que trai sua não filiação e sua não fixação: ele segue sem bagagem, sem peso, sem raiz. Recusa-se ao pertencimento, a se ver enredado pelas grades simbólicas e imaginárias que perpassam a cultura e dão estofo aos laços sociais. A palavra, que poderia esboçar algum vestígio do ser, alguma demanda ao outro, algum lamento… não se faz. Há o mutismo, a amnésia, a não-palavra, a não-fala. Personagem sem vibração, sem pulsação, sem pulsão de vida - foi pego pelo redemoinho da inércia da pulsão de morte - posição da depressão, do tédio, da perda irrecuperável do objeto e da significação. Enfim, o não-sentido, o nada, o vazio cercam o ser que se deixa perder e vagar a esmo.

Porém, o filme é mais complexo do que isso: seria quase simples demais derrotar-se aí, na impossibilidade radical. Esboça-se um movimento, aquele que justamente sustentará o filme e sua trama: a mínima oscilação. Talvez não entre a negatividade e o contrário afirmativo, mas no entremeio, num frágil possível.

A dubiedade e o deslocamento do sentido já se revelam no próprio título do filme: "Paris, Texas". Cidades diferentes, com todas as suas significações: Paris, Cidade Luz européia que brilha sem cessar versus um ponto solitário no mapa da América sem nome próprio. Continentes diferentes: o Velho Mundo com suas inscrições, símbolos, tradições; o Novo Mundo com seu ar de liberdade e inúmeras possibilidades de caminhos a serem desbastados (mesmo ao preço da perdição, da falta de rumo). O personagem estabelece um jogo com o espaço, pedaço de terra que lhe abrigaria com seu entorno, dando-lhe enquadre estruturante em algum dia futuro. Paris, Texas, indefinição ao mesmo tempo que marca da filiação (dos que lhe precederam, abrindo-lhe a possibilidade de ser), concepção (de ser) e projeção (do vir a ser).

A literatura e o cinema oferecem alguns espelhos cujos reflexos podem jogar luz sobre tais meandros do filme: o inatingível estrangeiro de Camus, o cowboy solitário nos rastros de ódio de John Ford, o passageiro - profissão repórter - de Antonioni, o estranho no ninho e no enquadre de Milos Forman. E atentemos para o detalhe: tanto este último quanto Win Wenders são estrangeiros, um tcheco, outro alemão, que vieram filmar nos EUA algo da inadaptabilidade, justo no seio de uma cultura que prega a todo custo o imperativo da adaptação, do fazer parte.

Aqui se abre uma nova dicotomia que irá perpassar toda a estrutura do filme, retomando a negatividade do início e sua contrapartida positivada.Travis carrega a aura de anti-herói: o sem rumo, o perdido na vida, o deslocado, enfim, ele incarna, de certa forma, o looser não adaptado. Imagem que se reforça quando contraposta a seu duplo, a figura do irmão bem sucedido - e, note-se, no universo das mega imagens publicitárias. Walt, the winner: aquele que tem um lar, a nova casa construída no subúrbio da feliz, estável e já clássica classe média burguesa e americana, imagem da família ideal com todos os elementos da boa aparência: a bela esposa, o meigo filho, o carro, a escola, o trabalho, os enquadres instituídos (e, ironia, em Los Angeles, capital da produção onírica contemporânea). Ante a leveza de não se ter laço e a liberdade e solidão de se vagar alhures encarnada por Travis, o peso da labuta e da vida cotidiana bem-sucedida e enquadrada de Walt. Personagem que revela, mais uma vez, a alegria do cinema em nos proporcionar tais modelos vencedores na cultura do trabalho e do engajamento terreno. Faz-se assim o infatigável reforço do mito da realização pessoal na sociedade americana - self made man que quase prescinde do coletivo tanto para suas conquistas como mazelas. Temos aí Caim e Abel, cada qual se posicionando de uma maneira frente ao pecado original. Sublinha-se ainda uma dicotomia estrutural na sociedade americana que já se ‘naturalizou’ com o uso de alguns pares de oposições que passam a ser sobrepostos: looser x winner; outsider - insider.

Travis não segue o rumo esperado e pré-determinado pelo American way of life. E mesmo quando possuía uma família não era da maneira mais ‘clássica’e bem estabelecida. Entretanto, não se trata de identificar o protagonista ao lugar do excluído, tout court. Ele está, antes, no entremeio. Encarna, de certa maneira, a figura do estrangeiro, aquele que não tem a linguagem, o código que permitiria a comunicação e a inserção com o outro da pólis. Seu lugar no entanto é, mais uma vez, dúbio, pois é ele que se recusa a estabelecer o contato, privado que parece estar da força e libido necessárias para tal. Entre a étrangeté e a passagem, Travis encontra-se no limiar, na borda de algo: incomunicável estrangeiro sem sê-lo, longínquo passageiro que vem de lugar nenhum. Mas que tem a "sorte" de encontrar na alteridade - outro feito por laço de sangue e de sociedade - um condutor, a referência establizada que fará o contraponto à sua negatividade essencial: aquele que era (mais que estava) sem - sem bagagem, sem casa, sem cama, sem família, sem trabalho, sem o mínimo eixo de inserção nos complexos elos sociais - vê-se conduzido pelo irmão que vela por si.

E o protagonista aceita esse movimento. No princípio relutante, deixa-se fazer pelo outro: veste a roupa e a palavra e sai em busca de alguma mínima possibilidade que acenda seu querer. Ou seja, começa a se esboçar um fio de desejo. Instaura-se a busca, mesmo que em estado embrionário, de uma identidade originária: Paris, Texas, sua raiz primeira, marca simbólica da sua concepção. É justamente aí que tem origem a primeira fala, esboço de sentido, de rumo, de busca. Demanda por Paris. Busca da terra, da filiação.

 

II

A casa

O reencontro, o desconhecimento, o reconhecimento

O "retorno ao sentido" e à cultura, isto é, ao re-estabelecimento de laços investidos de significação se dá a partir do (re)encontro com o filho. É novamente pela linha da filiação - desta vez de si para os que vêm depois - que Travis pode esboçar a virada do lugar da passividade absoluta para um vislumbre de posicionamento subjetivo que se permite a atividade. Pese aí ainda o encontro com o feminino, ancestral representante da afetividade que tece as tramas da subjetividade. Nesse primeiro momento trata-se da mulher do irmão, que na cena do encontro lhe beija gentilmente (o que só uma francesa poderia fazer, não uma americana). Aqui, a estrangeira como mediadora. O substrato formal e subjetivo seguem passo a passo: a câmera acompanha o olhar do filho na escada (de baixo para cima), olhando o pai (de baixo). Os olhares se cruzam, se encontram. O ritmo dos laços que se reestabelecem segue num crescendo: com o irmão, com a linguagem, com o filho, com a mulher.

Dá-se aí o encontro que abre a segunda parte do filme que poderia ser nomeada como a do longo processo de rememoração. Impossível deixar de retomar Freud e inseri-lo no circuito elaborativo: "repetir (andar, fugir), recordar, elaborar". Começa a se forjar o desvendamento - somente agora o espectador sabe algo do início da história, se recupera a causalidade necessária para se formarem os elos lógicos absolutamente fundamentais para um sujeito poder se (re)apropriar de sua história e não mais vagar a esmo no espaço deserto e vazio do não-sentido. Todos assistem ao filme super 8 que retrata a família de Travis. A cena do filme dentro do filme não poderia deixar de ser mítica: pai, mãe e filho, juntos e felizes. Nesse momento faz-se possível a inscrição do filho como tal - o que se vê capturado nos complexos familiares que lhe engendram um lugar daquele que é fruto do amor do pai pela mãe - que, portanto, pode nomear o pai em sua função propriamente paterna e incluí-lo na rede de significação familiar. Operação complexa que se evidencia por uma frase aparentemente banal (e que o seria, caso a naturalização das relações humanas não houvesse sido rompida pelo desterro e separação do pai e da mãe): 'good night dad'.

Travis vê-se assim autorizado a colocar a pergunta sobre seu lugar e função, em última instância a escavar o "quem sou eu?" que está na base de qualquer reconstrução do sentido. A pergunta que se faz passa pela paternidade: o que é um pai? E é o próprio cerne que lhe falta: quer saber de 'um pai, qualquer um'. Busca o conceito, mesmo que na imagem - na revista, na roupa, no olhar do outro, na cultura enfim. Travis não sabe bem como ser pai; será que nunca soube? Talvez somente no imaginário, como no álbum de fotografia, ao ver a foto de seu próprio pai, que aliás tem o seu nome.

A figura da mãe de Hunter, até então pairando por sobre a trama, começa a penetrar de forma mais explícita na narrativa. Ela surge primeiramente no discurso dos outros, que a nomeiam, de maneira a expressar veladamente um nó, uma "complicação", sutil desvario não bem compreendido; em seguida sua figura se mostra através da imagem, filme antigo imagem da rememoração de um passado perdido; para somente mais tarde vir a surgir como personagem ‘real’ na estrutura fílmica. Esse movimento da figura esguia, que está presente ao mesmo tempo que nunca se presentica é ao mesmo tempo a representação da forma pendular de sua posição psíquica. Explicita-se no decorrer do filme um percurso que se constrói na via da contradição que marca seu lugar: a vacilação por parte do seu desejo de ocupar o lugar de mãe, ao mesmo tempo que sua afirmação sistemática (via o dinheiro mensalmente depositado no banco, elo simbólico que atualiza o lugar da filiação materna). Travis é aquele por onde se enuncia a questão da sua mulher com o enigma do desejo: "ela queria algo que eu nao sabia o que era". Aí um dos pontos condensadores - e basal, mesmo que sutil - da estrutura do filme. O intenso vazio que permanece quando simplesmente não se sabe, ou seja, quando o sentido não está dado a priori, exigindo a construção possível.

A partir desse momento Travis pode partir em busca do encontro real com aquela a quem ele tinha amado, já tem os elementos em suas mãos para poder dar esse passo: já pode se arriscar a defrontar-se consigo e seu passado. Deixara já de encarnar o ser sem sentido e sem razão que vaga perdido no espaço. Nesse sentido, uma cena é emblemática dessa passagem. Vemos um viaduto e escutamos a voz de alguém que começa a falar do apocalipse, espécie de delírio de um louco visionário. A armadilha em que poderíamos ser levados a cair é justamente de colocar nosso personagem aí. No entanto, o conflito razão x desrazão já está deslocado e não é mais Travis quem o protagoniza. Se por um momento o filme faz que vai nos levar a esse engodo, logo respiramos aliviados e constatamos o que já sabíamos: o caminho do protagonista já é outro, ser-de-razão (mesmo que relativa) que começara a se delinear. Travis caminha para a empreitada final, ápice dramático deste roteiro tão bem estruturado.

 

III

A viagem

Reencontro, distanciamento, reescritura

Da primeira fase da busca, no imaginário, parte-se para a tarefa de demarcação de um lugar no mundo, real e simbólico. Lugar esse que virá a ser o de pai, mesmo que separado da esposa e mãe do filho. Nessa via crucis não poderia faltar a presença deste, o filho, que escolhe ele também ocupar seu posto, decidindo partir com o pai.

Aqui vale uma palavra sobre Hunter, peça chave na nova colagem do quebra-cabeça cindido de cuja remontagem se trata. Também ele, o filho, se deixa guiar pela problemática da filiação via genealogia: sua forma metafórica (e própria da infância), de formular as perguntas põe em cheque o universo, as galáxias, o Big Bang. Retorna aí uma das construções metáfóricas do filme: sua dimensão metafísica mais radical, busca do sentido da vida e do seu início, materializada na cena em que se percorre a teoria da relatividade pelo walkie-talkie. Instrumentos na verdade utilizados para que se pudesse encontrar a mãe, também ela uma representação da arquetípica fonte da vida. É o filho quem reconhece a mãe e acorda o pai (literalmente?) na operação montada para que se pudesse encontrá-la. Os lugares representativos da criação e do enigma do surgimento da vida começam a se esboçar. Existencial, político, psíquico… são planos não excludentes neste intrigante filme mas que justamente por isso, por poder e saber lidar com a complexidade, se sobrepõem.

O esperado encontro entre Travis e Jane se concretiza, numa das mais belas cenas do cinema, com talvez um dos mais bem sucedidos encontros entre texto, trilha e imagem. O contato se faz, cúmulo da ironia e da impossibilidade, envolto no interdito do olhar mútuo de uma cabine de peep show. Presentifica-se uma forma de especularidade que remete o olhar enjaulado para o próprio eu, preso nos meandros do narcisismo, escravo de sua própria perspectiva. Mas não é somente o olhar que se faz interrompido; também o gesto, pois ao corpo o movimento e o toque são proibidos. O distanciamento insiste em não ser transposto. O formato da cabine espelhada e aprisionada revela-se metáfora precisa da negatividade radical que perpassa as relações construídas e desconstruídas ao longo do filme: homem-mulher, pai-filho, mãe-filho.

Nesse sentido, é emblemática a tomada em que finalmente Jane reconhece o desconhecido que lhe viera contar uma história (espécie de ápice do processo de reescritura que Travis havia iniciado muito tempo antes) e portanto reconhece-se aí, é também a sua história que está em jogo. Ela olha para o espelho e vê sua própria imagem, ele havia se virado de costas para poder contar a ela sua(s) história(s). Até aí o reencontro é cifrado, como se fosse necessário manter atuante o eterno descompasso entre os seres. O filme se fecha com a pergunta sobre a possibilidade da extensão do olhar, talvez não seja possível se ver realmente o outro, ou pior, manter uma relação visceral com a alteridade. Pois, mais dia menos dia o enigma de seu desejo, seu olhar e sua posição irão emergir e farão fissurar em pedaços a frágil estrutura que alicerçava as peças unidas. E, como não poderia deixar de ser, o ponto de reconhecimento (para ela) de que é de sua própria história de que se trata é o trailer, símbolo do movimento contínuo do viajante que havia iniciado o filme e que assim irá concluí-lo. Com a diferença de que não é mais alguém que vaga destruído pela perda e perdido entre a negatividade total, mas um homem que - tal como num trabalho de construção psicanalítica - pôde, com alguns fios de sua história, traçar uma trilha mínima com a qual esboçar um sentido possível.

Volver al sumario del Número 18
Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 18 - Diciembre 2003
www.acheronta.org