Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Nomear-se de "Outro modo"
Arlete García

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Qual a função do nome na estruturação do sujeito? O nome pelo qual alguém se declara se mostra como irrupção, como resultado de uma operação. Sobre este resultado não incide enigma, mas uma assertiva que singulariza dentro de um campo unificado, inscrevendo aquele que se declara como um entre outros.

A declaração de nome próprio, já aponta Lacan particularmente no seminário Problemas Cruciais para a Psicanálise, aborda a identificação do sujeito, ponto crucial na localização do desejo. É assim que podemos circunscrever na literatura, o momento onde Shakespeare ao colocar na boca de Hamlet a frase: "Sou Hamlet, o dinamarquês", marca o ponto de torsão em que o personagem se reencontra com o que é de seu desejo. Um nome ao ser declarado mostra o seu fundamento de próprio, relativo à identificação, indicando a alteridade, a diferença do um entre outros, e o faz por apontar a função do traço unário, função de marcar a pura diferença.

Na direção da cura, a irrupção do nome é um momento de fechamento do inconsciente, na medida em que o nome faz sutura pela cristalização de uma identidade. Porque aquilo que aborda a identificação produz fechamento do trabalho inconsciente? O nome próprio responde pela pergunta sobre o ser, se fundamentando na função da linguagem que tem a aparência de denotar um objeto. A estrutura da declaração do nome próprio está suportado pelo funcionamento do signo, onde algo representa alguma coisa para alguém. O trabalho do inconsciente, por outro lado, se sustenta em uma estrutura onde um significante se relançando a outro significante deixa uma abertura onde virá a se localizar um sujeito. O tempo desta estrutura é o tempo do futuro anterior. O momento onde alguém se declara por um nome, é um momento onde no tempo presente se atualiza como objeto modificado pelo golpe do significante, produzindo o fechamento do inconsciente, ou dito de outra forma, é um momento de resistência ao trabalho do inconsciente, resistência própria da linguagem. É também um momento profícuo porque a sutura revela a função do nome próprio de preencher o vazio, localizando um sujeito que por faltar só pode consistir em um nome.

Este sujeito que assim se localiza, é o sujeito que interessa à psicanálise, um sujeito que por faltar é suposto e indeterminado. O trabalho de localização do desejo no percurso analítico se sustenta neste lugar, onde a declaração do nome próprio irrompe em sua função de designação, tendo aí a propriedade de ser uma colagem, sutura, deixando velado o essencial da estrutura do nome próprio na sua relação com o ato de nominação.

O ato de nominação põe em relevo a função do significante de não poder significar-se. A nominação produz o significante que representa o sujeito para outro significante. Neste ato o que é nominado se modifica no seu estatuto de coisa surgindo como significante. No debate com os linguistas e também com Levi-Strauss, Lacan coloca em relevo que a experiência psicanalítica mostra que o ato de nominação se distingue da ação de dar nomes as coisas. O ato de nominação implica uma modificação no real, a ponto de não poder se dizer o que era antes do nome. Não se trata de etiquetar objetos, mas de que com o nome se modifica o real. Dizer que o nome próprio é aquele que se recebe ou que é a redução ao nivel do mais particular é pouco para aquilo que a experiência mostra, na medida que um nome só é próprio quando alguém o declara. Nesta declaração a identificação está implicada, indicando que se o nome próprio marca a diferença, é porque no fundamento da função significante, o que temos é uma identidade que implica o objeto recortado pela pulsão. É com este objeto, esta identidade, que o sujeito se realiza como dividido nele mesmo, sujeito do desejo.

A declaração do nome próprio implica a operação de separação, em cujo processo se institui o objeto perdido. O movimento de separação retroage sobre a alienação fazendo deste movimento, um movimento circular, mas não recíproco, porque o que aí surge é o resultado da operação, seu produto. É uma operação onde o ser falante para responder pelo nome que recebeu, deve fazer deste nome o seu nome, o próprio, ao mesmo tempo em que ao declara-lo, já não o é mais, é somente nome.A declaração de Hamlet nos mostra que o nome Hamlet, é insuficiente, é preciso o complemento "o dinamarques" e talvez mais um nome, mais um nome.

A localização do desejo, não só como metonímia mas também como desejo do analista deve ser situado neste lugar. Lugar onde o ato de nominação introduziu no real algo com o qual se denomina e que concerne a relação do vivente com o Campo do Outro. Entretanto a expressão "desejo do analista" não se refere a um sujeito determinado, àquele que só se determina na ficção/fixão fantasmática, mesmo que reduzida a estrutura gramatical mínima. O desejo do analista é uma função que aponta a estrutura do ato de nominação onde um significante em nenhum caso pode significar a si mesmo.

Se podemos pensar que o desejo do analista é uma função, não podemos deixar de lado o fato de que analista é um nome que se nomeia porem de outro modo(autrement). Se é no mesmo lugar topológico do nome que o desejo deve ser localizado, no que o nome mostra a relação intrínseca do nomeado com o Campo do Outro e se ao mesmo tempo o nome tem função de preencher o vazio relativo a existência do sujeito, cabe perguntarmos: Qual o estatuto desta nominação cujo nome indica que a marca do ato que o instituiu como nome não deve ser esquecido? Dito de outro modo: como um nome se sustenta como nome se nele próprio está indicado a impossibilidade de significar a si próprio?

Para discutirmos esta questão tomaremos algumas indicações de Lacan. No seminário de 197l 1 Lacan nos alerta que é no nível do nome próprio que podemos ver o que é próprio do nome: o nome é o que é chamado a falar. Esta indicação não só enfatiza a relação do nome com o parletre, mas circunscreve o objeto voz.

A voz é um objeto que no ato da fala se descola do orgão fonador, fazendo surgir uma dimensão do Outro que não é somente miragem, já que presentifica a existência do falante a partir do Outro. Para a pergunta: quem aí se presentifica ao falar? A resposta só pode ser: é um nome. É para responder ao problema que daí emerge – quem é o sujeito antes da fala – que Freud constrói o mito do pai como animal. Resposta pouco satisfatória para Lacan2, já que o advento do pai primordial é pensado antes do interdito do incesto mas não antes da cultura. Deixa marcado nesta aula, a idéia de que o totem por sua referência classificatória, levaria a colocar o nome e sua função como segundo termo no nível do pai. " O nome é esta marca já aberta à leitura,...nela está imprimido alguma coisa, talvez um sujeito que vai falar"3.

Se Freud tenta responder esta questão pela anterioridade do animal em relação à linguagem, Lacan se sustenta ainda na referencia à linguagem, apontando uma distinção temporal entre a escrita do nome e a leitura do nome. Esta distinção é novamente abordada em 1971 de uma forma curiosa. Diz ele: " ...o escrito é não primeiro, mas segundo em relação a toda função da linguagem e contudo sem o escrito, não é de forma alguma possível vir a questionar o que resulta do efeito da linguagem..." e acrescenta " o que introduzo é que só há questão lógica a partir do escrito enquanto o escrito não é justamente linguagem. É nisto que enunciei que não há metalinguagem, que o próprio escrito, enquanto se distingue da linguagem está aí para nos mostrar que se interroga a linguagem, é justamente enquanto o escrito não o é, mas que ele só se constrói, só se fabrica de sua referência a linguagem."4 É curiosa a forma de abordagem da temporalidade já que a escrita se mantendo distinta do efeito da linguagem é segunda, entretanto, é primária enquanto possibilidade de se interrogar a linguagem e seus efeitos. Do mesmo modo, a escrita não é linguagem, mas só se fabrica tendo-a como referência. Esta indicação da distinção da escrita em relação a leitura como um dos efeitos da linguagem que implica a existência do sujeito que fala, nos leva ao prefácio que Lacan escreve sobre a peça de Wedekind "Despertar da primavera" onde o Homem mascarado é escrito por Lacan como dito mascarado, enfatizando a dimensão da fala implicada no texto teatral.

A última cena da peça, àquela em que surge o personagem Homem Mascarado, é colocada em relevo não só por Lacan, mas também por Freud. Lacan mais econômico que Freud, diz que não vai errar como aquele grupo se detendo em construções sobre o significado na linha da decifração, mas recorta a função do Homem Mascarado de colocar um fim ao drama. Freud também se detém nesta cena situando o interrogatório dos jovens com este personagem como característico dos estados de angústia onde a pergunta " de onde vem os bebês?" sofre uma inversão e se articula como " o que é que vem? " – pergunta da esfinge para Édipo. É neste ponto, diz Freud, que muitas neuroses se iniciam.

De fato, o personagem Melchior pergunta incessantemente: quem és? ou: o que é você?. É interessante que Freud situe nesta cena, não a montagem visual do cemitério, ou do fantasma sem cabeça, figuras de terror, mas a angustia que se apreende nas perguntas, indicando a presentificação do enigma, do não saber. É o não saber sobre o ser que se configura aí como o não saber sobre o pai - é você meu pai? – pergunta Melchior. A angustia circunscreve um objeto, que é o objeto voz, já que o Homem mascarado acena para a possibilidade de conhecer o pai pela voz. Mas a voz responde Melchior, não leva ao conhecimento.

A voz, indica Lacan, na única lição sobre Os nomes do Pai, é o objeto caído do órgão da palavra, onde o Outro resta como o lugar onde o "isso fala" abrindo a pergunta sobre quem fala no lugar do Outro. O Outro não deve ser confundido com o sujeito que fala no lugar do Outro e é a voz, aquilo que cai do órgão da palavra que impõe a pergunta sobre quem está aí, mais além daquele que fala. O homem mascarado não é assim o pai biológico de Melchior, já que este descansa nos braços de sua mulher, mas também não é o fantasma que Moritz representa, fantasma que representa uma construção sobre aquilo que não se sabe, mas é a afirmação de uma existência que não se sabe o que é, mas existe, ou melhor ex-siste. Diz Moritz: Ainda que muito disfarçado é ao menos o que é.

A pergunta sobre o ser: quem és? não deixa hiancia onde a causa pudesse fazer emergência, já que a resposta só pode ser um nome. A causa só pode emergir na pergunta sobre o desejo, onde o objeto ao se destacar, mostra a dupla relação do sujeito com este objeto: objeto de angustia e objeto causa de desejo. É para além da angustia, atravessando o ponto onde ao tirar a máscara o que surge é outra máscara – momento de angústia – que o sujeito reinventa por ele mesmo a função inicial do objeto que, perdido, tem a função de causa de desejo.

Na peça vemos surgir a questão do nome próprio como sinal do singular, da marca do traço, mostrando que o que singulariza é algo que não está no nome. O homem mascarado diz ao personagem Melchior: Por isso ou por algo, você não é Moritz. O diálogo se constrói de forma que a diferença entre Moritz e Melchior se faz na construção verbal da negação do verbo ser, não é, indicando o passo do apagamento, base sobre o qual o apagamento do apagamento se constrói como marca distintiva, como pura diferença, se destacando o algo, o produto, única garantia do sujeito do desejo.

O fim do drama, recortado por Lacan como a função primordial do Homem Mascarado, que é uma ficção dentro da ficção, se faz na volta a mais que o autor produz ao colocar no início a dedicatória a este personagem, fazendo dele, da ficção, um nome próprio. Neste movimento de retroação, o nome próprio se mostra nome de um próprio que é próprio de uma ex-sistência, próprio disto que ex-siste, como está exemplificado pela fala do personagem Homem Mascarado: por algo, por isso, você não é Moritz. Então o próprio é algo, é isso, quanto ao ser nomeado é o não ser. O nome próprio tem duas funções de sutura. Em uma função lança o sujeito ao traço da segunda identificação, vertente onde o nome se constrói como marca distintiva daquele que fala, o nome sob o qual alguém responde. Em outra função, indica o lugar que o sujeito ocupa no desejo do Outro, objeto que descompletou o Outro, onde o isso fala antes que um sujeito possa aí falar, relativo a primeira identificação.

Um final de análise implica que a função de vel, de sutura do nome, se desvele. Revela-se o objeto que como nome descompleta o Outro, assim como, o sujeito que impossivel de se determinar por um nome que lhe seja conveniente, resta sempre suposto. O fenômeno do esquecimento do nome próprio trazido por Freud e recolhido por Lacan, poderia nos guiar no processo pelo qual o percurso de uma análise chega ao seu fim. O esquecimento de um nome é um sintoma da linguagem e como tal se constrói como criação metafórica onde o nome esquecido não é uma negação, é uma falta desse nome. Ao procurar o nome encontra-se a falta no lugar onde este deveria exercer sua função, e um novo sentido é requerido exigindo uma nova criação metafórica. Mas no esquecimento do nome próprio Signorelli se produz uma metáfora singular, diz Lacan. É um esquecimento que não cria uma nova significação, mas uma sucessão de sons, de fragmentos de palavras. A singularidade deste mecanismo se produz no ponto onde ao invés de uma criação, a hiancia é mantida aberta, revelando o vazio relativo ao ser, que contornado por fragmentos de palavras, faz faltar o sujeito que fala.

Não poderíamos pensar que a nominação analista se sustenta de outro modo(autrement) neste mesmo lugar onde se mostra a falta relativa ao ser calando o sujeito? Não seria este "outro modo", que em francês se diz: autrement e se ouve - Outro mente – que permite o não esquecimento do ato que instituiu o nome analista? O chiste, estrutura de onde advém a nominação analista, ocorre no mesmo lugar do sintoma da linguagem, mas a sanção do Outro vai promover a passagem para outra função, para um outro modo de abordar o real. O chiste não indica nada além da própria dimensão do passo como tal. O chiste é um passo de sentido onde há ausência de objeto, se manifestando como um escrito que precisa da autentificação do Outro para que se complete seu circuito, assim como o escrito precisa de um sujeito que o leia.

A nominação analista é uma questão de lógica e não uma questão de sujeito, é uma nominação referida ao inconsciente estruturado como linguagem e não pela linguagem. A nominação analista faz existir um nome que não nomeia nenhum objeto ou talvez como Lacan indica no Seminário Formações do Inconsciente, pelo chiste se "denomina um ser verbal"7

Referências Bibliográficas

1 Lacan, J. – De um discurso que não seria do semblant – publicação interna do Centro de E.F.Recife

2 Lacan, J. - Os nomes do pai – publicação interna Aleph Psi. e Transmissão

3 Idem – página 11

4 Lacan, J. – De um Discurso que não seria do Semblant – publicação interna do C.E.F.R. – pag. 59.

7 Lacan, J. Seminário Formações do Inconsciente – pag.47 – ed. Jorge Zahar

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 18 - Diciembre 2003
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