Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Gozo e saber, ... qual é a verdade do sujeito?
(Articulações entre os seminarios "Do Outro ao outro" e "Mais, ainda...")
Ronald de Paula Araújo

Imprimir página

I – GOZO E SABER ( O CORTE DA PSICANÁLISE)

Lacan inicia a sua lição de 27 de novembro de 1968 trabalhando a questão da relação do saber ao gozo, "a alguma coisa certa, mais misteriosa, mais fundamental"1, como nos diz. Esta dimensão do gozo tem um alcance que lhe permite introduzir esta função propriamente estrutural que é o mais-gozar, quando é feita a homologia, e não analogia, como ele próprio nos adverte, com o conceito de mais-valia de Marx. Esta relação de homologia gira em torno da função do objeto "a", que operaria para o discurso psicanalítico da mesma forma que a mais-valia funcionaria para o discurso marxista.

E que função seria esta? Uma função de algo que excede, mas que falha, faltando também ao tentar completar um lugar onde se esperaria preencher um vazio. Há, portanto, uma dissimetria, uma inadequação. Assim, "(a)lgo" que está embutido tanto nas mercadorias quanto nos objetos das pulsões age da mesma forma quando não se adeqüa em conformidade tanto entre seu valor de uso e o de troca, no discurso marxista, tanto quanto na possibilidade de satisfazer a pulsão, esgotando-a, no discurso psicanalítico, ou seja, o objeto bordeado pela pulsão não se adeqüa àquele perdido para sempre.

A questão da descoberta de ambos os conceitos é pensada como efeito mesmo de ambos os discursos implicados, ou seja, a mais-valia só é teorizada após Marx, assim como "o objeto "a" é efeito do discurso analítico"2, porém "o que é descoberto num efeito de discurso já apareceu como efeito de discurso na História"3. A Psicanálise surge, porém, como um giro do saber na História, não da história do saber, mas como um giro da incidência do saber na História, (digamos que este "saber" comece a incidir pelo avesso...) "implicando transformação da relação do saber com o fundo enigmático do gozo, da relação do saber na medida em que é determinante para a posição do sujeito"4. Há então a impossibilidade de fazer sistema a partir do que Lacan enuncia como sujeito (do inconsciente) sendo efeito mesmo do discurso e que revela a função do objeto "a".

Este sujeito é tomado a partir da questão da falta no significante, falta esta que o impossibilita de representá-lo por ele mesmo, sozinho, ou seja, apenas num mesmo significante, pois o próprio significante é faltoso na capacidade de se representar por ele mesmo, ele só se distingüe, só surge, por diferença em relação a outro significante, o que nos faz chegar ao aforisma lacaniano que nos permite enraizar nossa determinação do sujeito "naquilo que um significante o representa, representa-o para um outro significante"5.

II - O RECALQUE ORIGINÁRIO E SUA INCIDÊNCIA NO SABER

Trata-se aqui de retomar a questão suscitada da relação do saber ao gozo, a partir da gênese do sujeito enquanto representado entre dois significantes, S1S2, na relação mesma de um ao outro, contendo aí seu efeito evanescente. Fala-nos Lacan: "Nesta relação, nesta gênese subjetiva, na partida, o saber se apresenta como esse termo onde vem apagar-se o sujeito, está aí o sentido do que Freud designa como a Urverdrangung"6, o recalcamento originário. O recalque funciona "como sendo esse núcleo já fora do alcance do sujeito sendo todo saber dele"7. Lembre-mos o discurso do analista, onde, no lugar da verdade, permanece inatingível o S2, ou seja, trata-se de uma impossibilidade de se saber tudo, já que implica num saber recalcado fundante do inconsciente. Produzimos S1 com a nossa prática, um "significante pelo qual se possa resolver o quê? – sua relação com a verdade"8.

Lacan nos dá mais elementos apoiando-se na relação de par ordenado {[S1], [S1,S2]}, sobre esta reedição do S1: "... o significante S1, aqui, não cessa de representar o sujeito como minha definição o significante representa o sujeito para um outro significante o articula, entretanto, que o segundo subconjunto presentifique o que meu correspondente chama essa "coexistência", quer dizer em sua forma a mais longa essa forma de relação que se pode chamar "saber"9.

III – O USO DA TEORIA DOS CONJUNTOS E DO PAR ORDENADO PARA UMA DEFINIÇÃO DA RELAÇÃO DE CONEXÃO SIGNIFICANTE

No seu primeiro passo a teoria dos conjuntos tropeça no paradoxo de Russel. A questão levantada por ele é que na construção de uma classe composta por classes que não são membros delas mesmas, se esta classe maior é ou não membro de si mesma. Se é, cai no atributo das menores que são elementos dela, ou seja, não é membro de si mesma. Se não é membro de si mesma, cai novamente num paradoxo, pois, não sendo membro de si mesma, ou seja ficando exterior a si, retoma o atributo das menores que a compõem, sendo então uma classe que não é membro de si mesma, estando portanto inclusa, acabando por ser membro de si mesma, através do atributo. Então, se é, não é, se não é, é.

Deste ponto examinaremos o procedimento lacaniano de utilização do par SA quando da relação de extimidade de A, sendo e não sendo membro de si mesmo, figurando ao mesmo tempo como elemento e conjunto na relação de par ordenado. Mas afinal, sobre o Grande Outro, "o que é ele nesta relação?"10, interroga-se Lacan.

Esta problemática surge com o funcionamento do A como significante da própria relação mas também como sendo o mesmo significante que intervém na relação, assim A é o conjunto da relação de par ordenado SA, assim como também elemento da mesma relação: A={SA}. Lacan então desenvolve a relação de S com S em relação a A, da seguinte forma: S (SA); assim como ela é na relação de par ordenado, onde o primeiro subconjunto é formado pelo conjunto unitário do primeiro elemento do par e o 2º subconjunto é formado pelo conjunto dos dois elementos formadores do par. Há então uma repetição do primeiro elemento do par, uma como subconjunto, outra como elemento do segundo subconjunto, {[a], [a,b]}, lembrando o exemplo de Ivan Corrêa, no "Paradoxos da Psicanálise", {[amor], [amorte]}.

Têm-se então uma repetição indefinida da série dos S, assim como um recuo de A (ver figura), afinal, A é o conjunto dos significantes, só sendo possível a estes significantes sairem dele. Porém este A não se reduz, não se evanesce. Ele continua recuando mas também englobando todos as relações SS e conseqüentemente a relação mais fundamental, SA. Portanto, como nos diz Lacan, ... "é que na medida em que o grande A o faz assim multiplicar-se, simplesmente desse fato, podemos escrevê-lo no exterior e no interior, que esses círculos não fazem mais que indexar esta identidade" 11. Acontece, portanto, a inscrição do A tanto internamente, no seu recuo, como externamente, englobando todas as relações, inclusive a própria. Ele faria, assim, uma relação de classe funcionando como inclusa e exclusa dela mesma, apesar do paradoxo na teoria dos conjuntos, apontada por Russel, demonstrando aí uma relação de falha no Grande Outro, como completa Lacan: "Que o grande A, como tal, tem em si essa falha que não se pode saber o que contêm se isso não é seu próprio significante, está aí a questão decisiva onde se pontua o que é da falha do saber. Apesar de que é no lugar do Outro que suspendeu a possibilidade do sujeito na medida em que se formula, é mais importante saber o que é que garantiria – a saber o lugar da Verdade – é ele mesmo um lugar esburacado"12.

Lacan, então, diante da falha estrutural do Grande Outro, diante da evanescência do sujeito, e diante do recalque originário do saber, se propõe a suportar esta função do saber como inacessível, articulando-a no significante, lançando mais uma questão: "O saber se sabe de si mesmo ou é aberto por sua estrutura?"13. Parece-me aberto, dinâmico, inacessível, esburacado. Há portanto algo de uma essência metonímica na continuidade da cadeia significante, neste despregar dos "Ss", que não pertencem a si mesmos e não se representam a si mesmos, do S(A), significante do Outro, reconhecido aqui como barrado, após sua inscrição no inconsciente, S(A), ..."A saber que todo elemento significante se extrai de toda totalidade concebível"14, sendo esta totalidade marcada por um centro de pura ausência, o objeto a, modo que Lacan denomina esta metáfora espacial do buraco (ver figura 2).

Transparências de apoio

I - REEDIÇÃO DO S1, ENQUANTO REPRESENTAÇÃO DO SUJEITO (RELAÇÃO DE PAR ORDENADO):

{[S1], [S1,S2]}

II – O USO DA TEORIA DOS CONJUNTOS E DO PAR ORDENADO PARA UMA DEFINIÇÃO DA RELAÇÃO DE CONEXÃO SIGNIFICANTE:

1. O PARADOXO DE RUSSEL:

Exemplo de Classe Que Não Pertence a Si Mesma:


a, b e c são relógios
X não é um relógio. Portanto, X é uma classe que não pertence a si mesma.

Exemplo de Classe Que Pertence a Si Mesma:


a, b e c são números abstratos
Y é um número abstrato. Portanto, Y é uma classe que pertence a si mesma.

Enunciado de Russel: A classe de todas as classes que não pertencem a si mesmas, é ou não é uma classe que pertence a si mesma?

2. A RELAÇÃO DE EXTIMIDADE DE A ( "Sendo" e "não sendo" membro de si mesmo"...):

S-->A (O que é ele nesta relação?)

A={S-->A}

A --> conjunto e elemento da mesma relação.

3. DESELVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES SS (REPETIÇÃO) EM RELAÇÃO AO GRANDE OUTRO:

S-->(S-->A) {[a], [a,b]}

(par ordenado --> elementos formadores:a e b)

Exemplo:

{[amor], [amorte]}

(Ivan Côrrea)

 

4. REEDIÇÃO DOS Ss RECUO DE A:

NOTAS:

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 1. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 1. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 2. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 1. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 3. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 8. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 8. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário XX, "Mais, ainda", pg. 123. LACAN, Jacques – Jorge Zahar Editor.

Seminário "Do Outro ao outro", Lição IV, pg 8. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 9. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 10. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 10/11. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 11. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Seminário "Do Outro ao outro", Lição III, pg 12. LACAN, Jacques – Trad. CEF – Recife

Volver al sumario del Número 16
Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 16 - Diciembre 2002
www.acheronta.org