Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Wittgenstein & Joyce & Lacan
(O enodamento do discurso psicanalítico
com o discurso filosófico y/o literário)
José Marcus de Castro Mattos

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1

Mas, quando ficou só, Zaratustra falou assim ao seu próprio coração:
" Será possível? Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!"

F. NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra (um livro para todos e para ninguém)

Em O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969 - 1970) (2) Lacan atribui a Wittgenstein (1889 - 1951) uma "ferocidade psicótica frente à qual a bem conhecida Navalha de Ockam (...) é uma ninharia", ferocidade esta – segue Lacan – "encarnada em um discurso implacável", a saber, o intitulado Tractatus logico-philosophicus (1921) (3). E, ao estabelecer o texto da lição (a de 21 de Janeiro de 1970), Miller inscreve após o título – Verdade, irmã-de-gozo – o seguinte item: A psicose de Wittgenstein.

Sim, a psicose de Wittgenstein &, pois, sim, a psicose de Joyce &, pois, sim, a psicose de Lacan. Sim, psicoses – pois, irmãs-de-gozo.

Vejamos.

O genitivo "de" é genitivus objectivus e não genitivus subjectivus . Com efeito, o "de" não é genitivus subjectivus porque – e escrevo isto com um sorriso auto-irônico nos lábios – Wittgenstein & Joyce & Lacan não foram meus analisandos... Logo, as psicoses "de" Wittgenstein & "de" Joyce & "de" Lacan não são psicoses "de" sujeitos sob transferência a um analista, pois o que aqui escreve e um outro analista perderam por completo as falas destes heréticos (4): Wittgenstein, herético ao discurso filosófico & Joyce, herético ao discurso literário & Lacan, herético ao discurso psicanalítico. Portanto, o "de" é genitivus objectivus. Isto significa que as psicoses "de" Wittgenstein & "de" Joyce & "de" Lacan são objetivas, a saber, material e concretamente encarnadas em determinados suportes discursivos: a "de" Wittgenstein, em um discurso lógico-proposicional & a "de" Joyce, em um discurso literário & a "de" Lacan, em um discurso topológico. Isto posto, escritura enquanto Sinthome é o nome destas psicoses objetivas, materiais, concretas, ferozmente encarnadas em discursos não menos que implacáveis: a Psicose-Wittgenstein – doravante o "de" é inútil – encarnada em Tractatus logico-philosophicus (1921) & a Psicose-Joyce encarnada em Finnegans wake (1939) (5) & a Psicose-Lacan encarnada sobretudo em exposições elaboradas a partir de O seminário, livro 22: RSI (1974 - 1975 ) (6).

Se é assim, resta-me indagar: em tais heréticos – quanto ao estilo –, por que um Sinthome feroz e implacável? Ocorre que, enquanto tal, um Sinthome é feroz e implacável, ou, negativamente, se preferirmos, não há Sinthome que não seja feroz e implacável. – Por quê? Rigorosamente, porque um Sinthome é o que for capaz de (cito Lacan) "dar ares de nó ao Nó Borromeano", e, pois, "ser essa alguma coisa que permite ao Simbólico, ao Imaginário e ao Real – embora nenhum deles se prenda ao outro – permanecerem juntos" (7) . Logo, reindago: – Em tais heréticos – quanto ao estilo –, por que feroz e implacavelmente um Sinthome?

Ora, se devemos a Lacan as expressões ferocidade psicótica e discurso implacável, devemos a Wittgenstein o sentido de ambas – cito Wittgenstein: "Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas" (8). Todavia, se ferocidade psicótica é este "resolvi de vez os problemas", o discurso implacável é o suporte objetivo, material e concreto no, desde e pelo qual os problemas serão de vez resolvidos – "de vez", a saber, em um ato –. De sua parte, devemos a Joyce ter grifado a radicalidade perene deste ato conclusivo, pois quando um amigo lhe pergunta o porquê dele estar escrevendo Finnegans "daquele jeito" Joyce responde imediatamente: "Para manter os universitários ocupados pelos próximos trezentos anos..." (9)

Pois bem. A heresia – quanto ao estilo – de Wittgenstein & Joyce & Lacan está em conduzir ao limite o sentido de um discurso, de tal modo que sejam esgotadas in extremis suas possibilidades lógicas. O resultado desta operação é curiosíssimo, e, claro, pleno de conseqüências: conduzido ao limite lógico, ao invés de ocorrer o robustecimento de suas premissas (sejam elas quaisquer), um discurso como que... se desfaz!

2

Uma só virtude é mais virtude do que duas, porque é um nó mais forte ao qual se enlaça o Destino.

F. NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra (um livro para todos e para ninguém)

 

Assim, 1) se procuramos – no discurso filosófico – estabelecer a univocidade de sentido, no Tractatus – em sete proposições ("fáceis de ler", como quer Lacan) – Wittgenstein mostra que a radical univocidade de sentido é possível apenas em outro regime discursivo – o das ciências naturais. Todo o restante – inclusive o discurso filosófico –, ao não satisfazer as condições lógico-proposicionais fornecidas pelo Tractatus, é transcendental à univocidade de sentido, a saber, inscreve-se na plurivocidade, e, pois, inevitavelmente, na equivocidade. A este propósito, em passagem deliciosamente mordaz e inteligente, Wittgenstein escreve: "O método correto da filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer; portanto, proposições da ciência natural – portanto, algo que nada tem a ver com filosofia; e então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições. Esse método seria, para ele, insatisfatório – não teria a sensação de que lhe estivéssemos ensinando filosofia; mas esse seria o único (método) rigorosamente correto" (Prop. 6.53, op. cit.: 281). Todavia, resta um estado de coisas indecidível, um estado de coisas tal inteiramente refratário a quaisquer regimes discursivos, sejam os da univocidade, sejam os da plurivocidade. Portanto, este estado de coisas é inexprimível (Unaussprechliches), mas isto não o impede de se mostrar (Dies zeigt sich) – e o que se mostra, por não poder ser dito – logo, por não ter sentido (quer o da univocidade, quer o da plurivocidade) –, é o Místico (es ist das Mystische) (10).

Ora, se doravante é esse o estado de coisas, os ditos "problemas filosóficos" foram de vez resolvidos, a saber, em um ato – o do Tractatus – e... para sempre. Noutros termos, pós-Tractatus o discurso filosófico deixou de ser o campo estruturado por aquilo mesmo que – acreditava-se até ali – era a sua razão de existir, a saber, a univocidade de sentido. Logo, os ditos "problemas filosóficos" constituíam-se como problemas porque se buscava resolvê-los na, desde a e pela univocidade em um campo discursivo estruturado, ao contrário, na, desde a e pela plurivocidade – e, pois, inevitavelmente, na, desde a e pela equivocidade. (Pausa para rirmos...) E – note-se –, no campo estruturado pela radical univocidade de sentido – o das ciências naturais –, um dos componentes fundamentais do finado discurso filosófico – a saber, o sujeito (a noção?, a categoria?, o c onceito?) –, por não poder ser reduzido a uma proposição elementar – base da radical univocidade –, tal componente é então simplesmente eliminado. Quanto a isto, cito uma das passagens do comentário de Lacan: "Seguramente o autor (Wittgenstein) tem de próximo à posição do analista o fato de que se elimina completamente de seu discurso" (11).

Assim, 2) se procuramos – no discurso literário – estabelecer a equivocidade de sentido (estrategicamente decisiva para a estruturação da trama romanesca), em Finnegans Joyce mostra que a radical equivocidade de sentido é possível apenas em outro regime discursivo, a saber, o do pós-romance – "pós" que em verdade é o anti-romance Finnegans wake (1939). Com efeito, antes de Joyce a equivocidade do discurso literário resultava de determinadas operações que preservavam – ainda que sob consideráveis distorções – a integridade material quer da sintaxe, quer do significante verbal, et pour cause resguardavam – ainda que sob inumeráveis modificações – o plano do significado, seja o das palavras, seja o dos demais elementos constituintes do texto (o espaço e o tempo narrativos, a ambiência sócio-histórica, o enredo, os personagens, etc). (Mesmo o surrealismo e as demais vanguardas literárias, embora aparentemente sugerissem o contrário, a seu modo preservavam a integridade material quer da sintaxe, quer do significante verbal, et pour cause resguardavam o plano do significado.) Destarte, sob tais operações o efeito de equivocidade obtido era (em nossos termos) sobretudo imaginário, a saber, no discurso literário anterior a Joyce a simbolização insistia falante em consistir imaginariamente, estabelecendo o campo da realidade ao preço de elidir o Real.

Ora, em Finnegans Joyce intervém ferozmente na integridade material quer da sintaxe, quer do significante verbal, radicalizando in extremis a equivocidade de sentido. A radicalidade é de tal ordem que chega inclusive à (como quer Wittgenstein) "mostração mística" & à (como quer Lacan) "monstração mítica" do limite para além do qual a equivocidade já não é mais equivocidade, mas sim – como dizê-lo? – o-mais-puro-nonsense-em-letras: nas inacreditáveis páginas de Finnegans várias vezes ocorrem "palavras" compostas por mais de cem letras, ilegíveis, inaudíveis, intraduzíveis – testemunhas místicas & míticas de que o Real não cessa de ex-sistir silente à consistência imaginária do Simbólico (12). E – note-se –, no campo estruturado pela radical equivocidade de sentido – o de Finnegans –, um dos componentes fundamentais do finado discurso literário – a saber, "o personagem psicologicamente constituído", ou, se preferirmos, "o sujeito do discurso" (seja, no caso, o narrador ou os demais personagens da trama romanesca) –, por não poder ser reduzido a uma figuração de linguagem materialmente recortada pela equivocidade – o próprio "Finnegans" é em verdade uma figuração de linguagem rigorosamente marcada pela equivocidade –, tal componente é então, dizia eu, simplesmente eliminado. A este propósito, cito uma passagem na qual Joyce define de modo inteiramente legível o estatuto de seu ato: "The proteiform graph itself is a polyhedron of scripture" ("O gráfico proteiforme [o traço criativo] é ele mesmo [a saber, sem "sujeito"] um poliedro de escritura") (13).

Assim, 3) se procuramos – no discurso psicanalítico – estabelecer o sem-sentido (Freud reconhece de imediato que Unbewusst ["inconsciente"] é um termo inapropriado para designar o que ocorre na experimentação clínica), nos últimos anos de sua transmissão Lacan "monstra" – se há transmissão de uma "monstragem"... – que o radical sem-sentido é possível apenas em outro regime discursivo – naturalmente, esta frase é uma licença poética, posto que enquanto tal um regime discursivo não pode possibilitar que o radical sem-sentido o invada, neutralizando-o –. Todavia, Lacan avança. E avança... contra Lacan. Entendamo-nos: Lacan contra Lacan porque os marcadores da experimentação utilizados até ali – constituintes da cena escritural lacaniana ("neologismos", "letras", "grafos", "matemas", "quadrípodes", " quantificadores", etc) –, situados ainda no campo do sentido – sem dúvida, campo da alíngua (lalangue), mas alíngua é o marcador da equivocidade estrutural ainda no & do campo do sentido –, tais marcadores então, dizia eu, por mais finamente algébricos que fossem, não podiam mostrar (" monstrar") o Abgrund – o "sem-fundo", o "abismo" , o "furo" – do Real. Noutros termos, se a dita "foraclusão do Nome-do-Pai" não se aplica apenas aos casos de sujeitos supostos a uma psicose, posto tratar-se de ocorrência estrutural (14) – logo, foraclusão estrutural, e não "foraclusão generalizada", pois o que é geral admite exceções, e não há exceções na & da foraclusão estrutural –, não há portanto pelo menos um sujeito que possa continuar demonstrando ad infinitum que a foraclusão aplica-se apenas aos casos de sujeitos supostos a uma psicose e não à sua própria demonstração de tais casos e não a si mesmo... Com efeito, se a foraclusão atinge a demonstração, a demonstração (ela mesma) é a demonstração marcada pela foraclusão , e, pois, é a demonstração (ela mesma) de um sujeito (ele mesmo) delirante. E vale acrescentar: a) delirante da mais fina extração freudiana, a saber, um sujeito às voltas com uma tentativa de – seja como for – organizar-se psiquicamente, e, b) delirante da mais fina extração lacaniana, a saber, um sujeito enquanto resposta do Real (15), ou, se preferirmos, um sujeito que – suposto ao que for (a uma neurose, a uma perversão ou a uma psicose) – já é uma interpretação delirante (um pleonasmo!) do Real.

Ora, se o estado de coisas no front do discurso lacaniano é este impasse vis-à-vis o Real, posto que enquanto discurso (por imposição estrutural) faz também ele semblant ao Real (16) e, no limite, aposta no limite suposto ao Pai – a saber, em sujeitos supostos à père-version (supostos a uma neurose, a uma perversão, ou a uma psicose – père-version inclusive em uma psicose, pois nestes casos aposta-se clinicamente na "construção de uma metáfora paterna delirante que faça borda ao Real", ou então, nos casos "já deflagrados" [por exemplo, Schreber], diagnostica-se retroativamente "metáforas paternas delirantes que retornam no Real", como se não ocorresse contradição alguma entre a aposta e o diagnóstico, e [o que me parece talvez mais escandaloso] como se existisse metáfora que não fosse paterna & como se existisse metáfora paterna que não fosse delirante &, enfim, ó cúmulo do delírio!, como se existisse metáfora que não fosse delirante...) –, ora, então, dizia eu, se o estado de coisas no front do discurso lacaniano é este impasse vis-à-vis o Real – insisto: Lacan leva a contradição ao limite lógico, transformando-a em paradoxo (exemplifico: "O Real é o que não depende de minha idéia sobre Ele" (17) – mas esta é uma idéia sobre o Real, logo, o Real depende desta idéia...) –, ora, então, dizia eu, se o estado de coisas no front do discurso lacaniano é este impasse vis-à-vis o Real, Lacan volta-se contra Lacan: – Diabos!, se ele mesmo inventou o Real, resta-lhe afinal indagar – cito Lacan: "Com qual física operar? É justamente aí que eu espero que meus nós, ou seja, aquilo com que eu opero – eu opero assim na falta de outros recursos (eu não cheguei a isso imediatamente) –, me forneçam coisas, e, é bem o caso de dizer, coisas nas quais me amarro. //. Como chamar isso? //. (...) esses nós, é tudo o que há de mais real" (18).

Assim, a física dos nós é finalmente o fino estado de coisas que "fornece coisas" a Lacan, e, "é bem o caso de dizer", coisas nas quais ele "se amarra" – finamente... Com efeito, ele "se amarra" em tal física porque 1) tal física "o amarra" – seja lá o que este "o" queira dizer –, e porque 2) tal física possibilita a este "o" – seja lá o que este "o" queira dizer – desamarrar-se afinal do "antigo Lacan" (o do "inconsciente estruturado como uma linguagem" e seu séqüito de "neologismos", "letras", "grafos", "matemas", "quadrípodes", "quantificadores", etc), e porque 3) tal física possibilita a este "o" – seja lá o que este "o" queira dizer – ultrapassar afinal o impasse que o "inconsciente lacaniano" criara e – ao estilo escritural de Wittgenstein & Joyce, logo, Sinthomaticamente – partir incontinenti para a "monstração do Real". Curioso: com décadas de antecedência o destemido tenente do exército austríaco Ludwig Wittgenstein parece ter antecipado este "último Lacan", pois em pleno front da Primeira Guerra Mundial (1914 - 1918) escrevera em seu Tractatus o seguinte: "Há por certo o indizível. Isso se mostra; é o Místico" (Prop. 6.522, op.cit.: 281.) e "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar" (Prop. 7, op. cit.: 281). Pois bem. Se é assim, calando-se "sobre aquilo de que não se pode falar" – falastrão e turrão o Lacan inicial recusava-se a calar –, com sua física dos nós o Lacan terminal mostra – "monstra", dirá ele – o indizível (a rigor, "isso se mostra" é Místico & "o Real se monstra" é Mítico).

Todavia, pergunto-me se há algum sujeito suposto à "monstração borrô-lacaniana". Ora, as escrituras Wittgenstein & Joyce prescindem de qualquer sujeito suposto àquilo que elas enunciam, pois a enunciação – quer da radical univocidade de sentido (Sinthome-Wittgenstein), quer da radical equivocidade de sentido (Sinthome-Joyce) –, pois a enunciação, em tais escrituras, dizia eu, resolve-se e revolve-se em e por si mesma, ultrapassando inteiramente a metafísica suposição de um "enunciante" (o "sujeito", o "eu", o "autor", o "personagem", etc). Por sua vez, a escritura de Lacan "monstra" o radical sem-sentido – a saber, o Real –, e, ao fazê-lo, parece-me que de modo ainda mais feroz e implacável que Wittgenstein & Joyce – não há nenhum problema nisso, pois se trata apenas de uma imposição estrutural –, o Sinthome-Lacan descarta-se – também ele – de qualquer suposição de "sujeito". Logo, levando abissalmente a sério o Gott tot ist! (Deus está morto!) de Nietzsche (19) – Gott tot ist! (Deus está morto!) que Freud recusou terminantemente subscrever (20) –, Lacan livra-se de qualquer "Suposição-de-Saber-ao-Pai", inscrevendo por fim seu percurso no campo de um radical materialismo – cito Lacan: "Repudio esse certificado: não sou um poeta, mas um poema. E que se escreve, embora pareça ser sujeito" (21).

Face portanto ao Sinthome-Lacan – face à escritura "borrô-monstrante" (físico-topológica) do radical sem-sentido – a dita "clínica do Real" é uma licença poética... Por quê? – Radicalmente, porque o Real é intratável pelo Simbólico (a certa altura de sua transmissão Lacan sonhara – freudianamente – que a práxis da clínica psicanalítica consistiria em "tratar o Real pelo Simbólico", e que o Imaginário, neste "tratar", seria de somenos importância... (22)). Ora, há pois o real da clínica – real assim, escrito com minúscula –, mas o real da clínica – real assim, escrito com minúscula – não é o Real – Real assim, escrito com maiúscula – do da "clínica do Real". Aqui o genitivo "do" articula o campo do sentido – a clínica com o seu real, a saber, as " formações do inconsciente" e quejandos – "ao" radical sem-sentido – o Real intratável – . Desse modo, se clínica e Real são antinômicos, disjuntos e incompossíveis, o genitivo "do" – de "clínica do Real" – relaciona elementos irrelacionáveis, e, pois, supõe delirantemente o que não há, a saber, a relação de um sexuado (a clínica) ao Um Assexuado (o Real).

3

Mas deixai que eu vos abra totalmente meu coração, amigos:
se
houvesse deuses, como toleraria eu não ser um deus? Logo, não há deuses. //.
Sim, eu tirei a conclusão; mas, agora, ela me tira.

F. NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra (um livro para todos e para ninguém)

Refletindo sobre as psicoses, Jean Allouch afirma o seguinte: "Exagerar no escrito é a única chance de se passar para outra coisa" (23). Ora, Wittgenstein & Joyce & Lacan exageram no escrito e, pois, agarram & amarram a única chance de se passar para outra coisa : 1) ao radicalizar a estruturação do discurso filosófico – a saber, a sustentação da univocidade de sentido –, Wittgenstein mostra que a radical univocidade é sustentável apenas em outro regime discursivo – o das ciências naturais – & 2) ao radicalizar a estruturação do discurso literário – a saber, a sustentação da equivocidade de sentido –, Joyce mostra que a radical equivocidade é sustentável apenas em outro regime discursivo – o do anti-romance – & 3) ao radicalizar a estruturação do discurso psicanalítico – a saber, a sustentação do sem-sentido –, Lacan "monstra" que o radical sem-sentido é sustentável apenas em outro regime discursivo – o da topologia – . Todavia, a meu ver o decisivo está em uma passagem do Tractatus pouquíssimo comentada, mas que sintetiza com precisão e rigor o estatuto do Sinthome – cito Wittgenstein: "É claro que a ética não se deixa exprimir [a saber, em proposições elementares determinantes da univocidade de sentido]. A ética é transcendental [a saber, por não poder ser exprimida em proposições elementares]. (Ética e estética são uma só.)" (Prop. 6.421, op. cit.: 277). Com efeito, enquanto escritura eivada de equivocidade (Joyce) e / ou de vazio (Lacan), o Sinthome é transcendental à univocidade de sentido (Wittgenstein), e, pois, expressa a plurivocidade ética & estética dos estilos. Isto quer dizer que a escritura – Sinthome –, enquanto expressiva de um estilo – logo, de uma estética –, constitui-se legítima e autenticamente como uma ética, a saber, desde a estruturação material, objetiva e concreta de seus elementos, responsabiliza-se e responde – enunciante feroz e implacável – por sua enunciação. Assim, 1) Wittgenstein: "Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las como contra-sensos, após ter escalado através delas – por elas – para além delas. (Deve, por assim dizer, jogar fora a escada após ter subido por ela.) // Deve sobrepujar essas proposições, e então verá o mundo corretamente" (Prop. 6.54, op. cit.: 281); & 2) Joyce: "O importante não é o que se escreve, mas como se escreve. E, a meu ver, o escritor moderno deve ser antes de tudo um aventureiro, um homem disposto a correr todos os riscos e a mergulhar em sua obra, se necessário for. Em outras palavras, devemos escrever perigosamente" (24); & 3) Lacan: "Sou suficientemente mestre da alíngua, aquela dita francesa, por ter conseguido isso eu mesmo, o que fascina testemunhar do gozo próprio do Sinthome, gozo opaco por excluir o sentido. (...). Só há despertar através desse gozo" (25).

Contudo, via de regra a assertiva de Wittgenstein – "(Ética e estética são uma só.)" – soa inadmissível aos ouvidos de sujeitos supostos a uma neurose. Agarrando & amarrando a foraclusão estrutural ao Pai-suposto-Consistente, tais sujeitos respondem Inibida & Sintomática & Angustiadamente (em letras lacanianas: ISR) à suposta consistência paterna, nunca – ou, no melhor dos casos, raríssimas vezes – produzindo um Sinthome (em letras lacanianas: RSI . ÿ ). Assim, "uma coisa é a ética e outra coisa é a estética", pontificam solenes estes Sujeitos-supostos-à-Lei, sem perceberem que o que enunciam enuncia a própria suposição deles – Sujeitos – supostos-à-Lei, a saber, o que enunciam enuncia a própria suposição deles – Sujeitos – supostos-a-Um-Pai-Barrado-Em-Seu-Gozo, e, pois, o que enunciam enuncia a própria suposição deles – Sujeitos – supostos-a-Um-Pai-Sobretudo-Ético – logo, Um-Pai (também ele) respeitante à demarcação entre dois campos comunicáveis entre si porém distintos, a saber, o campo da ética ("uma coisa", como dizem) e o campo da estética ("outra coisa", como dizem). Neste contexto – a justo título neurótico –, a estética é quase sempre interpretada com desconfiança, pois os sujeitos supostos a uma neurose – por exemplo, num caso, 1) os sujeitos supostos ao discurso filosófico, estes respondem com Kant o seguinte: "Duas coisas enchem o coração de admiração e veneração, sempre novas e sempre crescentes, à medida que a reflexão se dirige e se consagra a elas: o céu estrelado acima de mim [a estética!] e a lei moral dentro de mim [a ética!]. (...). O primeiro espetáculo, de uma inumerável multidão de mundos, aniquila, por assim dizer, a minha importância, por ser eu uma criatura animal que deve voltar à matéria de que é formado o planeta (um simples ponto no Universo), depois de (não se sabe como) ter sido dotada de força vital durante curto espaço de tempo. O segundo espetáculo, ao contrário, eleva infinitamente o meu valor, como o de uma inteligência, por minha personalidade, na qual a lei moral me manifesta uma vida independente da animalidade e até mesmo de todo o mundo sensível" (26) & noutro caso, 2) os sujeitos supostos ao discurso psicanalítico (sobretudo os supostos psicanalistas), estes respondem com Freud o seguinte: "A estética é uma tentativa frustrada no sentido de apagar a marca da castração" (27). Portanto, em ambos os casos – casos ainda clínicos, sem dúvida – goza-se com o sintoma , a saber, goza-se Inibida & Sintomática & Angustiadamente com Um-Pai-suposto-Castrado (Pai-suposto enquanto Sujeito-suposto-Saber-à-Lei), e, pois, em ambos os casos – casos ainda clínicos, sem dúvida –, como ousada e firmemente denuncia Lacan, não há passe ao impasse do Pai, a saber, recua-se diante do gozo com o Sinthome (Lacan, acima: "Só há despertar através desse gozo"), impossibilitando desse modo a produção & a transmissão de um estilo.

Ora, a rigor há um estilo – e um estilo a rigor – apenas quando ética & estética são uma só, configurando um passe para outra coisa ... Logo, porque estilistas rigorosos – a saber, porque feroz & implacavelmente identificados ao Sinthome (ao Shemthome (28) singular à letra de cada um deles) –, Wittgenstein & Joyce & Lacan autorizam-se a uma transmissão: a escritura Tractatus logico-philosophicus (1921) & a escritura Finnegans wake (1939) & a escritura "Último Lacan" (1974 e ss.), paradigmáticas & enigmáticas – em duas palavras: normalmente psicóticas (porque em acordo com a foraclusão estrutural), estão aí & não estão nem aí para com os rios de tinta & suor & lágrimas vertidos-pelos-pobres-mortais-que-não-cessam-de-decifrá-las. Não é possível decifrá-las. Obras despertas & claras & abertas – eis o porquê de serem indecifráveis (só é possível decifrar o dormente & obscuro & fechado) –, estas escrituras (valho-me aqui de uma expressão criada por Heidegger e resignificada por Lacan) ex-sistem ao inconsciente tenaz e longamente sonhado por Freud. Permitam-me: Wittgenstein & Joyce & Lacan são budhas pós-freudianos... O Sinthome exemplar destes inventores sorri serenamente face à atônita perplexidade humana – "demasiada humana", observa Nietzsche –: pois herética, a letra Sigma (ÿ) – em R S I . ÿ – é mais forte do que sua interpretação.

4

Sou eu, o herético Zaratustra, o sem Deus, quem te fala;
quem é mais herético do que eu, para que eu goze de seus ensinamentos?

F. NIETZSCHE, Assim falou Zaratustra (um livro para todos e para ninguém)

Wittgenstein & Joyce & Lacan – enodados borromeanamente –. A univocidade radical de sentido & a equivocidade radical de sentido & o radical sem-sentido – enodados sinthomaticamente –. A uni-mostração & a pluri-mostração & a "monstração" – enodadas shemtomaticamente –. Portanto, Wittgenstein (Imaginário: I) & Joyce (Simbólico: S) & Lacan (Real: R) – enodados avessamente: R S I . ÿ –.

Talvez eu possa expor tais enodamentos utilizando o esquema proposto por Lacan em O seminário, livro 23: o sinthoma (29):

R S I

S I R

I R S

-------

Sinthome

Ora, o comentário que Lacan realiza deste esquema é o seguinte (cito Lacan): "Parece que o mínimo que se pode esperar dessa cadeia borromeana é essa relação de um a três outros, e se supomos que esses nós se comporão borromeanamente – um com o outro –, perceberemos que é sempre de três suportes – que chamaremos, na ocasião, subjetivos, quer dizer, singulares – que um quarto suporte tomará apoio. E se vocês estão lembrados do modo pelo qual eu introduzi este quarto elemento, cada um dos outros é suposto constituir alguma coisa de singular com relação a esses três elementos: o quarto será isso que eu enuncio este ano como o sinthoma" (30).

Assim, retomo o esquema e o articulo deste modo:

 

R S I . E – Sinthome-Joyce

S I R . E – Sinthome-Wittgenstein

I R S . E – Sinthome-Lacan

-----------------------------------------

Escrituras irmãs-de-gozo

Lógica & topologicamente a seqüência de letras em cada uma das linhas deve ser lida – logicamente: na primeira linha, primazia do Simbólico (S) vis-à-vis o Real (R) & o Imaginário (I) – o Simbólico (S), no centro, separa & une o Real (R) & o Imaginário (I) –; na segunda, primazia do Imaginário (I) vis-à-vis o Simbólico (S) & o Real (R) – o Imaginário (I), no centro, separa & une o Simbólico (S) & o Real (R) –; na terceira, primazia do Real (R) vis-à-vis o Imaginário (I) & o Simbólico (S) – o Real (R), no centro, separa o Imaginário (I) e o Simbólico (S) –; & topologicamente: na primeira linha, enodação de Sigma (ÿ) desde a primazia do Simbólico (S) – conseqüência: a equivocidade radical de sentido ( Sinthome-Joyce); na segunda, enodação de Sigma (ÿ) desde a primazia do Imaginário (I) – conseqüência : a univocidade radical de sentido (Sinthome-Wittgenstein); finalmente, na terceira: enodação de Sigma (ÿ) desde a primazia do Real (R) – conseqüência: o sem-sentido radical (Sinthome-Lacan).

 

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Psicanalista. Membro da Escola Letra Freudiana (Rio de Janeiro, Brasil). Tels. (21) 2205 58 56 / (21) 9888 41 85 / jmcastromattos@ uol.com.br

(2) LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969 – 1970), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.

(3) WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus, São Paulo: EDUSP, 1993.

(4) LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975 -1976), inédito, lição de 18 de Novembro de 1975. Cito Lacan: "No que ele (Joyce) é como eu: um herético. Porque hairesis – é bem isso o que especifica o herético. É preciso escolher a via por onde tomar a verdade. E isso tanto mais que a escolha, uma vez feita, não impede ninguém de submetê-la à confirmação – quer dizer, ser herético da boa maneira, a saber, aquela que, tendo reconhecido a natureza do sinthoma, não se priva de fazer uso dele logicamente, até tocar seu Real –."

(5) JOYCE, J. Finnegans wake, London (England): Penguin Books, 1992.

(6) LACAN, J. O seminário, livro 22: RSI (1974 - 1975), inédito.

(7) LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975 - 1976), inédito, lição de 17 de Fevereiro de 1976.

(8) WITTGENSTEIN, L. Op. cit.: 133.

(9) ELMANN, R. "Joyce aos cem anos", in 30 anos do The New York Review of Books (a primeira antologia) , Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997: 344.

(10) WITTGENSTEIN, L. Op. cit.: 281.

(11) LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969 - 1970), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992: 59. (Grifos meus, JMCM).

(12) JOYCE, J. Op. cit.: 03 e ss. Cito Joyce: "The fall (bababadadalgharaghtakamminarronnkonnbronntonnerronntuonnthunntrovarrhounawnskawntoohoohooordenenthurnuk!) of a once wallstrait oldparr is retaled early in bed and later on life down through all christian minstrelsy."

(13) JOYCE, J. Op. cit.: 107. (Grifos meus, JMCM.)

(14) A rigor, a foraclusão estrutural é a foraclusão do gozo oral imposta pela Linguagem. Neste sentido, o que está foracluído – de princípio – é o gozo oral. Assim, foraclusão do significante Nome-do-Pai e foraclusão do gozo oral não são o mesmo. Todavia, não há espaço no texto ou nesta nota para a exposição quer do percurso, quer das conseqüências teórico-clínicas desta tese final de Lacan. Remeto o leitor ao vigésimo seminário de Lacan (Mais, ainda [1972 - 1973]) e ss.

(15) LACAN, J. L´étourdit (1973), inédito, parágrafo 90.

(16) LACAN, J. O seminário, livro 18: de um discurso que não seria do semblante (1971), inédito.

(17) LACAN, J. O seminário, livro 21: les non-dupes errent (1974), inédito, lição de 23 de Abril de 1974.

(18) LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975 - 1976), inédito, lição de 10 de Fevereiro de 1976. (Grifos meus, JMCM.)

(19) NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra (um livro para todos e para ninguém), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977: 29.

(20) Em verdade, Freud subscreve o Gott tot ist! (Deus está morto!), de Nietzsche, com a condição de ressuscitá-Lo... Pois em Freud (Totem e Tabu, 1913) o Pai-Morto retorna enquanto Lei (Interdição do Incesto), estabelecendo a coorte dos Castrados (simbolicamente), a saber, a dos Sujeitos-supostos-ao-Pai (ao significante Nome-do-Pai, precisa Lacan). Assim, de uma ponta à outra o inconsciente freudiano sustenta-se na suposição do retorno do Pai enquanto Lei, retorno este que é a própria estruturação do inconsciente enquanto "realidade fantasmática de um sujeito". Ora, a suposição do retorno do Pai enquanto Lei elide o Real. Portanto, defendendo-se de Nietzsche – alardeava em público que não o lia "para não ser influenciado" (sic) –, Freud decide ficar com a suposição ao Pai, e, pois, nada saber do Real ("Antes de tudo eu procuro ser um bom pai, e não um bom psicanalista", costumava dizer). Por sua vez, Lacan decide extrair todas as conseqüências do Gott tot ist! (Deus está morto!) de Nietzsche, situando-se desse modo para-além da suposição de Freud ao Pai...

(21) LACAN, J. "Prefácio à edição inglesa do seminário XI", in Letra Freudiana, documentos para uma Escola, n. 2, Lacan e o passe, Rio de Janeiro, 1995: 61. (Grifos meus, JMCM.)

(22) LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1979: 14. Cito Lacan: "O que é uma práxis? Parece-me duvidoso que este termo possa ser considerado como impróprio no que concerne à psicanálise. É o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo homem, qualquer que ela seja, que o põe em condição de tratar o Real pelo Simbólico. Que nisto ele encontre menos ou mais Imaginário tem aqui valor apenas secundário."

(23) ALLOUCH, J. Letra a letra, transcrever, traduzir, transliterar, Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1994: 18.

(24) POWER, A. & SOUPAULT, Ph. "Com Joyce em Paris: conversas e lembranças", in Revista Letra Freudiana, n. 28, a jornada de Ulisses (encontros com Jacques Aubert), Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2001: 54.

(25) LACAN, J. "Joyce le symptôme", conferência no V Simpósio Internacional James Joyce (16 de Junho de 1975), in Joyce avec Lacan, Paris (France): Navarin, 1987: 22.

(26) KANT, I. "Crítica da razão prática", in Uma história da razão, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994: 102.

(27) Via de regra, esta é a reativa lamentação dos psicanalistas que leram Freud sem Nietzsche & Heidegger & Wittgenstein & Lacan (nesta ordem)...

(28) LACAN, J. "Joyce o Sintoma", in Shakespeare, Duras, Wedekind, Joyce, Lisboa (Portugal): Assírio & Alvim, 1989: 140. Cito Lacan: "(...) na trama das personagens de Finnegans há dois gêmeos – Shem (vão-me permitir que o trate por Shemtoma) e Shaun –. (...). Há pois o Shemtoma e o Shaun. (...) Shem a quem (ele, Joyce) chama, adicionando-lhe uma etiqueta, The Penman (O Homem-Pena, O escriturador) (...)."

(29) LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975 - 1976), inédito, lição de 16 de Dezembro de 1975.

(30) LACAN, J. Op. cit., idem.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 15 - Julio 2002
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