Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Freud explica !
As vias da psicanálise em São Paulo
Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira

As idéias freudianas começaram a circular no Brasil no final do século XIX, através de Juliano Moreira, responsável pelos estudos que deram origem à primeira legislação sobre a loucura. Segundo Julio Pires PORTO-CARRERO (1932), aliás, o primeiro historiador da psicanálise brasileira, Moreira teria comentado as teses freudianas numa conferência pronunciada na Faculdade de Medicina da Bahia no final de 1899, ao mesmo tempo que, em Viena, Freud publicava A interpretação dos Sonhos. Mas é no Rio de Janeiro, para onde se transfere após seus estudos na Alemanha com Emil Kraepelin, que à partir de meados da década de 10, junto com outros psiquiatras, ele passa a estimular seus discípulos a desenvolverem as primeiras experiências teóricas e clínicas de base psicanalítica. Dessa forma pode-se dizer que o Rio de Janeiro tem a primazia na difusão e implantação da psicanálise no Brasil e, pela via psiquiátrica.

Bastante diferente jà foi o percurso em São Paulo, onde a temática freudiana emerge no final do decênio 1910 para ser rapidamente associada menos à problemática da loucura que a urbana e cultural. Ainda que a difusão seja iniciativa de Franco da Rocha, considerado o Pinel Paulista, nessa época, contrariamente ao Rio, São Paulo dispõe de estruturas de Assistência médica bastante frágeis e, quanto à psiquiatria, ela é praticamente reduzida à experiência do Hospício do Juquery, fundado em 1898. A primeira Faculdade de medicina de São Paulo é criada somente em 1913, e o ensino da psiquiatria é introduzido em 1918 conjuntamente ao de neurologia, numa cadeira intitulada Clínica neuriátrica e psiquiátrica e sob a responsabilidade de Franco da Rocha, às vésperas da aposentadoria. Na realidade, as duas disciplinas, psicanálise e psiquiatria, vão ser implantadas paralelamente e por vias diferentes, não necessariamente opostas e/ou divergentes, sendo esta a característica fundamental desse período.

O objetivo deste artigo é de examinar as principais vias de implantação da psicanálise em território paulista. Por implantação situamos o tempo cronológico que permitiu a estruturação de um conjunto de dispositivos capazes de viabilizar essa prática, que situamos entre 1920 e 1969. Esse processo supõe uma periodização que leva em consideração as diferentes problemáticas que a delineiam e, inspirada nos pressupostos estabelecidos tanto por Michel FOUCAULT, (1969) quanto por Elisabeth ROUDINESCO (1994), foi estabelecida a partir dos acontecimentos que se reagrupam e caracterizam momentos de ruptura e modificações estratégicas, tanto na forma de concebê-la quanto na de praticá-la. Assim compreendemos a implantação em três etapas:

A partir da década de 70, pode-se dizer que o processo de implantação foi concluído e que se inaugura uma nova etapa da história do movimento psicanalítico paulista que chamaremos aqui de "a verdadeira psicanálise" e que, a grosso modo, vai até o final dos anos 80.

I – A recepção das idéias freudianas

O primeiro período vai da publicação do livro de Franco da Rocha, Pansexualismo na doutrina de Freud, em 1920, (o primeiro livro brasileira sobre a psicanálise), até o início das primeiras analises didáticas após a chegada da primeira analista didata, Adelheid Koch, em 1937.

As condições que permitiram a predominância da difusão da psicanálise pela via cultural estão relacionadas ao quadro de desenvolvimento urbano. São Paulo é nessa época a nova metrópole emergente do país. Impulsionada pelo sucesso da economia exportadora do café, ela é a cidade brasileira que mais se beneficia com a expansão industrial provocada pela Revolução científica e tecnológica, dos anos 1870, na Europa. A cidade apresenta um crescimento econômico excepcional, seguido de um extraordinário desenvolvimento tecnológico, artístico e cultural. Classificada como a 11a cidade brasileira no primeiro recenseamento nacional de 1872, em 1920, ela ocupa a 2a posição, atrás da capital, Rio de Janeiro. Exceto uma pequena elite originária do meio rural e composta de famílias de grandes fazendeiros, industriais e banqueiros, recentemente enriquecidos, essa população originária do êxodo rural ou da imigração é composta principalmente de trabalhadores pobres, submetidos a trabalhos temporários e, vivendo à margem de toda e qualquer regulamentação.

Mas, a despeito do crescimento econômico a cidade enfrenta graves problemas de gestão e infra-estrutura, já se apresentando nesse época como um verdadeiro caos urbano. Entre outros, ela não dispõe de meios para acolher essa população que chega de toda parte e se instala como pode. Como lembra Nicolau Sevcenko, em 1920, os efeitos desse crescimento acelerado e violento punham em causa a própria "identidade da cidade", e ele completa :

"Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem européia, nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem subtropical; não era ainda moderna, mas já não tinha passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-los como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados." (SEVCENKO, 1992, p. 31).

Nessa época, a problemática urbana envolvia um certo número de questões que exigiam respostas não somente no que diz respeito a problemas concretos de infra estrutura, saúde, educação, mas também no terreno da subjetividade. Como viver numa cidade em constante estado de transformação ? Como conciliar os códigos de vida arcaico, aos apelos da vida moderna ? Entre as numerosas questões a enfrentar, muitas diziam respeito à efervescência da problemática familiar provocada pela crise do modelo patriarcal rural, ao enfraquecimento do discurso masculino e, em particular, à emergência de uma nova identidade feminina, assim como o surgimento de novos padrões e formas de vida citadina provocados pelo progresso e modernização.1

Em resumo, esse processo de urbanização, violento brutal e rápido, havia produzido na vida quotidiana desses novos citadinos, como lembra Sevecenko, um clima de tensão, angustia e indefinição que em muito favoreceu a difusão da psicanálise. Durante os anos 20, a terminologia freudiana circula na imprensa e, não raro, serve para explicar comportamentos e atitudes consideradas inusitadas quando não condenáveis, sobretudo em se tratando de sexualidade. O interesse é tal que ao longo dos anos 30, serão traduzidos mais de 50 textos de Freud, além de autores freudianos aos quais se acrescentam ainda numerosos artigos e livros de autores brasileiros, como Arthur Ramos, Medeiros de Albuquerque e Gastão Pereira da Silva, incluindo na lista ainda diversos textos de vulgarização que conhecem um grande sucesso2. De mais a mais a temática freudiana pelo viés da psicologia vai ressonar na literatura, na medicina social e no discurso pedagógico.3 A título ilustrativo, vale destacar aqui duas vias de difusão: o movime nto modernista e, as intervenções do fundador desse movimento em São Paulo, Durval Marcondes.

No que diz respeito à primeira, são os escritores e, em particular, os que fundam a Semana de Arte Moderna em 1922, que durante esse período mais contribuem para a difusão da psicanálise, sem que isso represente uma preocupação de filiação, e menos ainda um desejo de coerência teórica ou compromisso com a doutrina.4 Ao contrário, os modernistas se servem da psicanálise de diferentes maneiras. Alguns utilizam os preceitos freudianos na construção do perfil psicológico de personagens, ao passo que outros se limitam a simples citações que funcionam mais como uma espécie de atualização bibliográfica que como tema de interesse. É o caso, por exemplo, Menotti del Piccha em seu romance Salomé, escrito entre 1931 e 1939, ou de Alcântara Machado, em Mana Maria publicado em 1936, após sua morte.

Escritor que melhor retratou a problemática urbana paulista dessa época, além de uma bela descrição da decadência do poder patriarcal pela construção de um personagem feminino rebelde, contumaz e a procura de sua identidade de mulher, Alcântara Machado faz nesse texto uma rápida evocação a Freud. A citação tem lugar durante o jantar organizado pela tia de Mana Maria, com o objetivo de formalizar o pedido de casamento do médico Samuel a Mana Maria, que recusa e intempestivamente se retira deixando chocados os convidados que tentam encontrar uma explicação para essa atitude. Dialogando com a anfitriã, o infeliz candidato com sarcasmo fornece a resposta :

«  - Não foi isso não, minha senhora ! A razão é outra. Eu conheço bem esses temperamentos. Freud explica isso.

Quem ?

Freud. A senhora nunca ouviu falar em Freud ?

Não. Quer dizer ...

Pois Freud explica o caso perfeitamente, esses nervosismos subitâneos, essas explosões. » (MACHADO, 1961, p.241)

Mais importante que o perfil psicológico do personagem central concebido como caricatura da histérica mas, sobretudo, revelando a falência do mundo patriarcal, este livro e em particular a passagem acima citada é relevante porque assinala que a expressão "Freud explica !", hoje em dia, popular, tem sua origem já nesse período.

Além dos flertes ocasionais com a psicanálise, entre os modernistas, dois escritores vão se demarcar por um debate mais crítico e intenso com os conceitos psicanalíticos : Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Mas uma polêmica que, longe de representar uma aproximação dos procedimentos literários com a temática freudiana, transita entre a adoção e a rejeição.

Mário de Andrade introduz as teses freudianas em seus escritos, em grande parte por influencia da psicologia fr ancesa e, em particular, de Théodule Ribot e de seu livro Essais sur l’imagination créatrice. Interessado por uma discussão sobre o novo modelo de construção poética, ele se serve particularmente dos conceitos de pulsão, consciente e préconsciente e a temática da sexualidade. Isso se verifica já em Paulicea Desvairada, escrito em 1920 e publicado pela primeira vez em 1922, mas também em Amar, Verbo intransitivo (1927) e em Macunaíma (1928).

Mas, ainda que as referências estejam em obras fundamentais, e que num primeiro momento ele tenha se interessado pela temática freudiana, a partir dos anos 30, as "coisas freudianas", como ele gostava de dizer, perdem o interesse. (ANDRADE, M., 1942). Vale lembrar que ele não hesitava em condenar a crítica literária da época, quando esta via em seus romances uma influência da psicanálise, sobretudo em Amar, Verbo intransitivo. A título de hipótese, sugerimos que essa indiferença para com a psicanálise pode, entre outros, ser atribuída também à influência do psiquiatra Antônio Carlos Pacheco e Silva, amigo próximo de Mário de Andrade e avesso à psicanálise.

Já o libertário Oswald de Andrade entretém uma leitura mais polêmica e irônica com as teses freudianas, que se prolonga ao longo de toda a sua obra. Segundo ele, se Freud tem o mérito de identificar os pontos deficitários da sociedade capitalista e patriarcal, em contrapartida, os conceitos freudianos de sublimação, repressão, instinto e castração na verdade reafirmam as normas rígidas dessa civilização que ele, contrariamente à Freud, quer destruir. Leitor principalmente de Totem e Tabu (1913), e de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Oswald propõe "superar a contradição permanente do homem e o seu Tabu" (ANDRADE, 1970, p.18), não pela noção de sublimação das pulsões sexuais sugerido por Freud, mas pela proposição do "retorno à ancestralidade". As referências às teses freudianas se encontram na Revista de Antropofagia, nos Manifestos Pau Brasil e Antropofágico, assim como nos ensaios e romances tais como Memórias sentimentais de João Miramar e Um homem sem profissão.

Já no que diz respeito à pratica psiquiátrica, ainda que o primeiro livro brasileiro sobre psicanálise tenha sido escrito por um alienista, Franco da Rocha, cabe lembrar que se trata de um higienista da sua época, marcado pelas teses organicistas e, em particular, pelas de desvio de comportamento tanto físico como psíquico ou morais, e pelos métodos de classificação das doenças mentais de Kraepelin. Ele está acostumado a misturar e experimentar todas as tendências e correntes em voga, sem que isso represente um problema de ordem epistemológica, a psicanálise é assim um método entre outros, e do qual ele passa a se dedicar já no final da sua vida profissional. Em 1923, enquanto delega a direção do Juquery a seu discípulo mais próximo, Antonio Carlos Pacheco e Silva, sem abandonar totalmente a cena, Rocha estimula um outro jovem estudante em medicina, Durval Marcondes, a continuar suas pesquisas psicanalíticas. Os dois herdeiros do pai fundador da psiquiatria paulista vão se distinguir como rivais. O primeiro, organicista e mais interessado pelos pressupostos da psicologia experimental, reinará durante os próximos 40 anos como o introdutor da prática medicalizada e dos dispositivos que possibilitaram à psiquiatria se tornar uma disciplina autônoma em território paulista. Ao passo que o segundo, começa sua carreira como médico da Saúde pública, e será o fundador do movimento psicanalítico em São Paulo assim como da Psicologia.

Em meados dos anos 20, o recém formado Durval Marcondes, integra o corpo de médicos higienistas na sua nova versão preventiva e educativa inaugurada por Geraldo de Paula Souza, por ocasião da Reforma Sanitária Estadual.5 Entre 1926, data da publicação do seu primeiro trabalho inspirado das teses freudianas 6, e dezembro 1937, quando começa a formação didática da primeira geração de analistas, ele tenta, em diferentes ocasiões, impor os resultados positivos da psicanálise e introduzir seu ensino na Universidade, em particular no momento de fundação da Universidade de São Paulo em 1934. Marcondes tenta igualmente difundi-la entre os pedagogos, os professores, os intelectuais e os médicos. Membro da Associação Paulista de Medicina fundada em 1931, entre outros ele faz conferências, publica artigos na imprensa diária e especializada e contacta autoridades locais e personalidades do movimento psicanalítico de Viena e Nova York.

No que diz respeito à implantação, a primeira tentativa de reunir pessoas interessadas no tema data de 1927. Apoiado por Franco da Rocha e personalidades da vida intelectual e cultural paulista, ele funda a Sociedade Brasileira de psicanálise e, seis meses mais tarde, a Revista Brasileira de Psychanalyse. No entanto, passada a euforia inicial, os contatos estabelecidos com o objetivo de estruturar o movimento se revelam frágeis e ineficazes. Resultado, a revista não passa do primeiro número e a Sociedade, sem adeptos, acaba por se dissolver. Uma das razões desse fracasso pode ser imputada ao fato que, durante essa época a psicanálise é sobretudo associada a um saber sobre a sexualidade infantil, e se encontra no centro de um polemico debate sobre a introdução do ensino de educação sexual nas escolas primárias que divide as opiniões das principais autoridades. Assim, amplamente conhecida e difundida como doutrina pansexualista, a começar pelo próprio Franco da Rocha, os ataques à psicanálise não tardam. É o caso da Igreja que, seguindo as posições do Vaticano, em 1929, através de Alceu Amoroso Lima, publica sob o pseudônimo de Tristão de Athaide, um opúsculo intitulado, «Freud». Nesse livro, após passar em revista as diferentes correntes filosóficas, segundo ele, representativas do individualismo e do materialismo que dominam nossa época, Nietzsche, Marx et Freud, Amoroso Lima afirma :

«O caso-Freud indica bem vivamente como o mundo moderno é sinceramente materialista. Nenhum pensador contemporâneo ousou expor, com tanta audácia as teorias mais repugnantes ao que havia de mais delicado, de mais intangível na alma dos homens: a pureza do sentimento filial e o respeito pela inocência infantil. Freud ousou.» (TRISTÃO DE ATHAIDE, 1929, p.33)

Pode-se concluir assim que, durante essa primeira fase, a psicanálise circula em território paulista sem se constituir como movimento; mas como saber inscrito na concepção da medicina higienista e, sobretudo como visão de mundo.

II. A formação da primeira geração e as principais vias de implantação (1938-1950)

O segundo período começa com as primeiras analises didáticas, em dezembro de 1937, após a chegada ao Brasil de Adelheid Koch, a primeira analista autorizada pela IPA a formar analistas na América Latina. Acontecimento fundador da pratica psicanalítica brasileira regida pelas regras internacionais, ele provoca uma ruptura na forma como até então ela era praticada para introduzi-la no campo institucional que lhe é próprio e, ao mesmo tempo permite que seja reconhecida como instituição afiliada à IPA.

Judia, berlinense, médica e, recentemente formada pelo Instituto de psicanálise de Berlim, Adelheid Koch chega ao Brasil fugindo do nazismo e por indicação de Ernest Jones, então presidente da IPA, e responsável pela adoção da política que ficou conhecida como de "salvamento da psicanálise". Acolhida, graças a relações pessoais, por membros da comunidade judaica instalada na cidade, a família Koch, chega num país que alguns dias antes havia extraditado e entregue à Gestapo uma outra judia alemã, militante do Partido Comunista, Olga Benário e, que um ano mais tarde conheceria o Golpe de Estado que assegurou a permanência de Vargas no poder, e instalou entre 1937 e 1945, um regime totalitário, centralizado, nacionalista e baseado na ideologia da Segurança Nacional.

Alheia aos acontecimentos políticos da esfera nacional, Koch estabelece contato com Marcondes, somente em meados de 1937, e apesar da sua falta de experiência, se torna, em dezembro deste mesmo ano, a primeira e única analista didata da América latina autorizada pela IPA a formar psicanalistas. Cabe ao casal Koch/Marcondes a responsabilidade de implantar a psicanálise em solo paulista. Recrutados entre os conhecidos de Durval Marcondes, essa primeira geração é formada por médicos e não-médicos, pois, nenhum diploma universitário era exigido nessa época.7

Além de reunir um grupo heterogêneo e das relações pessoais de Marcondes, a primeira geração conta com a adesão de Nabantino Ramos, que poderíamos chamar e, sem exagero, de «mecenas da causa psicanalítica». Diretor, entre 1943 et 1962, do potente conglomerado jornalístico Fôlha da Manhã, que publica o jornal Fôlha de São Paulo, é graças a ele que a psicanálise conhece uma grande difusão na imprensa. Vale citar o programa radiofônico Nosso Mundo Mental, apresentado por Virgínia Bicudo na Rádio Excelsior ou ainda uma série de artigos publicados na imprensa em 1954, assim como a cobertura dada à campanha pela criação da Clínica psicológica da Universidade de São Paulo, no começo da década de 60.

Além da formação de analistas, durante esse período, três vias se abrem à psicanálise : o Serviço de Higiene Mental Escolar, o ensino universitário nas Ciências Humanas e, a algumas experiências isoladas praticadas no Hospital do Juqueri.

No que diz respeito à primeira, trata-se de um trabalho desenvolvido na Seção de Saúde Mental Escolar vinculada à Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Nomeado diretor desse serviço na ocasião da Reforma do Sistema de Assistência médico-pédagógica, dirigida pelo Ministério de Saúde pública da ditadura Vargas, Marcondes funda, em dezembro 1938, a Clínica de Orientação infantil e o posto de visitadora psiquiátrica, inaugurando assim o primeiro espaço de formação e prática institucional destinado à psicoterapia infantil. Dessa experiência – praticada por professoras primárias com formação em Saúde Pública, e submetidas a uma formação especial acrescida de supervisão com Durval Marcondes – são cooptadas as futuras analistas Virgínia Bicudo, Lygia Alcântara Amaral e Judith Andreucci. É interessante lembrar que essa frente de trabalho, que toma em consideração o sofrimento e os laços afetivos familiares da "criança problema", e tem como pressuposto a investigação da história familiar, do modo de vida e das práticas sociais de cada indivíduo que participa do universo psíquico da criança, se desenvolve até meados dos anos 70. Uma pesquisa nos arquivos da Seção de Saúde Mental Escolar poderia, sem dúvida, elucidar as marcas deixadas por esse trabalho na pedagogia paulista.

Quanto ao ensino da psicanálise na Universidade, ele foi inicialmente introduzido na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, a ELSP-SP, em 1939, no curso de graduação de Sociologia, sob a responsabilidade de Durval Marcondes tendo como assistente Adelheid Koch. Nele, a psicanálise é ensinada como instrumento de compreensão dos fenômenos sociais, e método que visa melhorar as condições de ajustamento psíquico dos indivíduos8. Desde então, integrando a formação dos sociólogos da Escola de Sociologia e Política, até os anos 70, essa disciplina foi controlada por membros da SBPSP, Virgínia Bicudo, Oscar Resende de Lima, José Collarile, Virgílio Basan e Armando Ferrari. Vale lembrar que, além da ESP, no começo dos anos 40, a psicanálise é igualmente introduzida no programa de curso dos alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, por iniciativa de Roger Bastide e Jean Maugüe. O que dá uma dimensão da difusão desse saber no meio intelectual e universitário local.

Um terceiro território aberto à psicanálise, à partir dos anos 40, é do Hospital do Juqueri. Influenciados pelo sucesso da medicina psicossomática, os primeiros psiquiatras a aderir à psicanálise a praticam como método que eles adaptam ao tratamento de certas neuroses, ao mesmo tempo que aplicam técnicas medicamentosas, como choque elétrico, malarioterapia e insulinoterapia. Destacam-se principalmente Mário Yahn e Paulo Lentino.9

Em 1946, o grupo formado por Koch obtém o reconhecimento como study group. É o primeiro passo em direção ao reconhecimento oficial, como Sociedade afiliada à IPA, obtida em 1951. Como assinala Claude Girard, nessa época, Londres é "território de esplendor da psicanálise" (GIRARD, 1982, p.313). Com o fim da guerra, a IPA entra numa nova fase de estruturação e construção de novas estratégias de expansão. Um quarto da comunidade freudiana emigrou para a Grã Bretanha, três quartos para os Estados Unidos e uma ínfima minoria para a América Latina (Argentina e Brasil). Segundo Roudinesco e Plon, essa imigração teve três consequências : o reforço do poder burocrático da IPA; a fragmentação do freudismo clássico em diversas correntes (com cisões); e o fim da supremacia da língua alemã em benefício da língua inglesa (ROUDINESCO, PLON, 1997, p.343-344).O que não impede que, apesar das múltiplas experiências clínicas, a Sociedade britânica (BPS), assim como o Instituto de Formação, vivam atravessados por divergências internas e divididos em três tendências : kleinianos, annafreudianos e, independentes. Este último conta com, Edward Glover, Donald W. Winnicott e Melitta Schmidelberg, filha de Melanie Klein. As divergências são reguladas em 1946, com a adoção de uma política de compromisso, e a instalação de dois tipos de formação : uma mais importante, reagrupando os kleinianos e os Independentes ; e uma outra agrupando os annafreudianos. (ROUDINESCO, PLON, 1997, p.405).

Distanciados das mudanças em curso na geopolítica do movimento psicanalítico ipeista, a primeira geração de analistas paulistas se forma lendo os textos de Freud, a partir das obras completas em espanhol, assim como de outros fundadores do movimento psicanalítico vienense e berlinense de orientação ortodoxa, em espanhol e francês. Koch e Marcondes tentam implantar uma comunidade analítica estruturada segundo o modelo familiar, mas já incarnam os herdeiros do pai morto, Freud. Ainda que interessados pelas teses de Melanie Klein, desde o começo da década de 50, a adesão do grupo paulista ao kleinismo ocorre de fato no começo no começo dos anos 60, após uma série de idas e vindas de psicanalistas brasileiros a Londres. O primeiro é Frank Philips, em 1948.

III. A institucionalização sob a égide da IPA (1951-1969).

O terceiro período é o da expansão da psicanálise e da constituição do monopólio de formação e prática psicanalítica pela Sociedade Brasileira de São Paulo, SBP-SP segundo as normas da IPA.

No plano nacional, o movimento psicanalítico se implanta num contexto de expansão econômica, efervescência social e cultural e, de crise política, que culmina com o golpe de Estado em 64, e a instauração da ditadura militar, assim como da estruturação dos dispositivos militares e paramilitares de repressão aos opositores do regime a partir de 68.

De uma maneira geral, a vida institucional se caracteriza pela definição das referências teóricas e das experiências clínicas, e pela delimitação das estruturas de formação e poder, principalmente a partir da criação do Instituto de psicanálise em 1961. Além da formação, a psicanálise se expande também pela via universitária, participando, como disciplina autônoma, desde a origem dos primeiros cursos de Psicologia e, da década de 60, sendo introduzida nas Faculdades de Medicina.10

Mas em 1951, uma vez obtido o reconhecimento internacional para o grupo paulista, resta ainda um longo percurso. Trata-se antes de tudo de sair de uma certa "marginalidade" e "isolamento", e obter o reconhecimento local como saber e prática autônomos. Duas gerações de analistas, majoritariamente médicos, são formadas ao longo desse período, ao passo que aumenta de forma considerável a demanda de formação e de tratamento. A SBP de SP é a única instituição paulista de formação de psicanalistas a responder a essa demanda, ainda que de forma precária e se ressentindo de estruturas adequadas.

Por outro lado, o crescimento do interesse pela psicanálise, devido em grande parte ao sucesso da medicina psicossomática, mas também ao reconhecimento internacional do grupo psicanalítico paulista, faz emergir a problemática do exercício legal da profissão e da formação. O ponto forte do debate é o 1° Congresso Latino-americano de Saúde Mental.11 A psicanálise faz parte do programa com uma sessão plenária e uma mesa redonda, além de uma participação importante na de Medicina psicossomática. Esta teria sido a sua entrada triunfal no meio psiquiátrico controlado por Pacheco e Silva, se as intervenções virulentas das principais personalidades do movimento psiquiátrico brasileiro, principalmente as afiliadas a correntes organicistas, não tivessem lançado o debate atacando, de um lado, o nacionalismo dos anos 50 exige, as regras da IPA consideradas como "intromissão estrangeira" e, de outro lado, o mercado de trabalho igualmente exige, a "analise leiga". Mais ainda, no fechamento dos trabalhos os psicanalistas são surpreendidos pela aprovação de uma Moção proposta por Maurício de Medeiros (RJ) e Nelson Pires (BA), propondo a legalização da profissão no campo da medicina e condenando a analise leiga. 12

Transformada em caso jurídico, a resposta dos psicanalistas paulistas virá um ano mais tarde. Em nome da Associação Paulista de Medicina, onde possui excelentes entradas, Marcondes envia ao Serviço de Fiscalização do Exercício Profissional, o seu Parecer sobre o exercício da psicoterapia por psicólogos clínicos e psicanalistas não formados em medicina. (MARCONDES, 1955). Após justificar a pertinência da analise leiga sobretudo por razões de mercado de trabalho que, segundo ele, é suficientemente grande para todos, ele propõe a criação de uma categoria profissional de natureza paramédica que tem por finalidade contribuir de forma preventiva ao bom funcionamento da personalidade. Essa profissão de psicoterapeuta pode, segundo ele, ser exercida por psicólogos clínicos e psicanalistas não médicos, desde que formados por Sociedades afiliadas à l’IPA e trabalhando sob o controle do médico. (MARCONDES, 1955).

Assim, Marcondes não só inverte a situação mas reivindica a legitimidade freudiana da IPA com o objetivo de obter o controle da formação de analistas. Entre a medicina e a psicologia, mas concebida como saber e prática autônomos, temos aqui e, pela primeira vez, um esboço de definição e uma proposição de legalização da profissão de psicanalistas no Brasil. Outras proposições virão ao longo dos anos 70, sem que a questão seja regulamentada. Aliás ainda hoje, as posições são divididas no interior mesmo das Sociedades filiadas à IPA. Entre as Sociedades brasileiras, até o começo da década de 80, sómente a SBPSP aceitava membros não médicos. Até hoje, os psicanalistas paulistas, ditos leigos, nunca tiveram que responder na justiça por prática ilegal da medicina.

Para além da questão jurídica, nesse período à formação dos analistas se caracteriza de um lado, pela sua adequação às normas ipeista e, de outro, pela definição das linhas teóricas e práticas dos futuros didatas. No que diz respeito à primeira, lembremos que, até 1950, Adelheid Koch é a única didata em São Paulo, e é somente nessa data que finalmente chega o segundo didata, Théon Spanudis.13 Com um contrato assinado, e o compromisso de formar os novos candidatos, seu currículo é convincente. Membro da Sociedade vienense desde 1942, ele fez sua formação analítica com August Aichhorn e Otto Fleischman e, participou da reconstrução da Sociedade Psicanalítica de Viena em 1946. Além disso, Spanudis é recomendado por Grete L.Libring, que ocupa na época o posto de secretária da IPA. Tanto por sua formação em medicina, quanto por sua experiência com delinqüentes herdada de sua filiação a Aichhorn, mas também pela sua concepção da psicanálise como ciência entre a biologia e a psicologia, ele vai formar principalmente os candidatos médicos e, em particular, os que trabalham no Hospital do Juqueri, dos quais alguns, por sexismo, se recusavam a se deitar no divã Koch. Convém lembrar que se trata de uma mulher tentando se impor num universo eminentemente masculino, o da medicina. Mas apesar do sucesso de sua clínica, em 1956, Spanudis abandona a psicanálise e se dedica à atividade de crítico de arte. Essa decisão é tomada após uma internação em clínica psiquiátrica, na qual é diagnosticado como esquizofrênico. A ela deve-se levar em conta também o seu homossexualismo assumido e contrário às normas da IPA, que não somente considera uma perversão mas proíbe homossexuais entre os seus afiliados.

Acontecimento traumático, a demissão de Spanudis suscita no entanto a necessidade de formar novos didatas. Doravante eles serão recrutados no próprio grupo formado por Virgínia Bicudo, Darcy Uchôa, Margareth Gill, seguidos de Lygia Amaral, Isaías Melshon e Henrique Schlomann. Esses novos mestres são formados por influência direta ou indireta da escola kleiniana e, em particular, por Frank Philips14 assim como através de idas e vindas a Londres. Um percurso que consiste também em uma reanálise e/ou supervisão também com, Wilfred Bion, Hebert Rosenfeld, Hanna Segal, entre outros, e estágios nas clínicas londrinas e seminários do Instituto. Quanto a Philips, ele vem diversas vezes ao Brasil, onde faz conferências e supervisão. Raros são os analistas que escapam a esse percurso, principalmente a partir dos anos 60, quando o ensino passa a ser ditado pelo Instituto e seu Comitê de Ensino. Concebido e dirigido por Virgínia Bicudo, ele é inspirado do modelo da Sociedade londrina, que ela conhece bem por ter vivido entre 1955 e 1959. Desde então, Bicudo exerce um papel crucial no movimento psicanalítico paulista fazendo sombra à pioneira Adelheid Koch. Entre 1963 et 1975, ela dirige o Instituto e o Comitê de ensino que elege seus membros entre os didatas. Despojada, carismática e dinâmica, ela cria diversos dispositivos que permitem a concretização do trabalho de implantação do movimento psicanalítico paulista. Entre outros Virgínia Bicudo funda os orgãos de divulgação, tais como o Jornal de Psicanálise e participa ativamente da criação da Revista Brasileira de psicanálise, além de mobilizar os alunos e membros para a construção da nova sede, indicar às editoras a tradução de textos de psicanalistas kleinianos e bionianos, participar de congressos e estimular a vinda de analistas estrangeiros.15 E, a partir de 1970, ela vai mesmo exportar sua experiência e fundar, o grupo de Brasília, dando impulso às chamadas analises condensadas.

Apesar dos critérios burocráticos de formação instaurados segundo o modelo da IPA de quatro ou cinco sessões por semana de análise didática, com uma duração mínima de quatro anos seguido, de duas análises de supervisão além do curso teórico – organizado segundo o modelo escolar, e obedecendo a critérios pedagógicos que inclui avaliações, notas e até "diploma" –, a demanda de formação não cessa de aumentar, assim como o prestígio do Instituto que reina sozinho sem nenhuma instituição concorrente para lhe fazer face.16

E quanto mais a instituição cresce, mais o poder se centraliza e verticaliza e, mais a importância do analista didata e da Comissão de Ensino aumentam gerando conflitos e tensões . Em 1969, enquanto o número de candidatos inscritos no Instituto resvala a casa dos 60, o de didatas permanece praticamente imutável em relação a 1961.17 Os conflitos começam já na seleção dos candidatos. A ausência de critérios de seleção, por exemplo, provocava e ainda hoje provoca polêmicas e litígios, que não raro se transformam em rumores, trocas de acusações graves, quando não, em crises internas.18

Por outro lado, a influencia da escola inglesa permite desde a década de 50, a diversificação da clínica. A partir de 1953, começam as primeiras experiências de terapia de grupo de base analítica que dão origem ao Movimento paulista de psicoterapia de grupo, em 1957 e, que conhecerá um grande sucesso nas duas décadas posteriores, sobretudo após a fundação da Associação Brasileira de Psicoterapia analítica de grupo sob a impulsão de Werner Kemper, em dezembro 1963.19

Ainda que no início, a psicoterapia de grupo tenha sido introduzida como uma prática destinada à "população desfavorecida", rapidamente ela vai ser incorporada à clínica privada que não cessa de aumentar. E isso, apesar da abertura, durante os anos 60, de novos espaços institucionais em hospitais importantes como o Servidor e Clínicas, e de onde saíram diversos grupos psicodramatistas ligados a argentinos Jaime Rojas Bermudez e Dalmiro Bastos.

É claro que o aumento da demanda de análise em consultório privado e da rentabilidade financeira imediata dessa nova profissão fazem com que grande parte dos psicanalistas abandone as experiências institucionais e se volte para uma prática liberal. Aliás, esta constitui uma das principais mudanças em relação à primeira geração.

Diversos elementos explicam esse aumento da demanda de análise. Entre eles, podemos citar os efeitos da difusão na imprensa local, no cinema hollywoodiano e na televisão20 e sua disseminação no meio intelectual e universitário. Além disso, a psicanálise, assim como as diversas práticas chamadas "psi" se beneficiaram da efervescência econômica, cultural e política dos anos 60 que revolucionaram os códigos de comportamento e as práticas sociais ao mesmo tempo que emergiam ditaduras sobretudo na América Latina.

Em São Paulo, algumas das questões que, nos anos 20 e 30, haviam despertado a curiosidade do público dito esclarecido sobre a psicanálise se tornavam uma realidade a ser enfrentada pelos pais e filhos da geração dos anos 60, originária de uma classe média em ascensão e, acima de tudo, à procura de sua identidade. A sexualidade, o casamento, a virgindade, o divórcio, a pílula, as drogas, a política, enfim tudo se mistura numa atmosfera que se caracteriza por uma violenta repressão política, principalmente após a instauração do terrível Ato Institucional n° 5 (AI-5), em dezembro de 1968. 21

Enquanto o regime militar estrutura o seu sistema de terror e uma nova classe média comemora o "milagre econômico", a psicanálise e sua instituição, a SBPSP, assim como as diversas praticas psicoterapeuticas, conhecem os seus "anos dourados". A profissão de psicanalista ou psicoterapeuta é lucrativa e para os pacientes é mesmo «branché» estar em análise.

A aprovação dos novos estatutos, em 1969, sacramenta a implantação. Uma capítulo da história da Socied ade está encerrado. Desde então, a SBP de São Paulo recebe a terminologia que conhecemos hoje, SBPSP. Os velhos freudianos clássicos, pais fundadores, Adelheid Koch e Durval Marcondes, devidamente homenageados, recebem todas as honrarias pelos gloriosos serviços prestados e são gentilmente enviados à aposentadoria compulsória.

Uma característica particular desse movimento paulista : ele é um dos raros a não ter conhecido rupturas. Até meados da década de 70, a psicanálise era praticamente controlada por uma única instituição, a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. Movimento monolítico, ele é o resultado de um trabalho militante de organização e estruturação de uma instituição baseada no espírito familiar. Os pais fundadores, Marcondes/Koch, são personagens incontestáveis desse movimento e nunca se colocaram num campo de disputa ou de confronto direto. Apesar das diferenças e divergências, cada um cultivando o seu próprio jardim colaborou para que tudo se passasse bem, e no melhor dos mundos. Cada um tinha seu lugar bem definido e complementar na vida societária, cada um ocupava uma função bem precisa cujo vínculo era a afetividade Assim, enquanto o pai Marcondes se encarregava da expansão e da abertura de novas frentes e vias para a psicanálise, a mãe Adelheid Koch cuidava da casa, assegurando a formação dos futuros analistas. Já os irmãos mais velhos, em grande parte psiquiatras, cooptavam novos candidatos lhes oferecendo espaços de prática e formação. Entre 1938 e 1970, a manutenção da relação pulsional necessária à vida societária é dada de um lado, pelo reconhecimento simbólico do pai fundador, reconhecimento este fundado num ato de amor como lembra ENRIQUEZ (1983, p.68) e, de outro lado, na certeza de que esse pai pode lhes unir para enfrentar o inimigo. Este, necessário para que a instituição possa existir e durar, se encontrava alhures e incarnado no movimento psiquiátrico, em particular na pessoa de Antonio Carlos Pacheco e Silva, e todos os que discordavam da psicanálise. Um investimento que ainda que tenha garantido a unidade do grupo, foi certamente feito em detrimento de uma produção local. Nenhum analista se distinguiu por uma produção inovadora, nem no meio psicanalítico local nem internacional.

Mas neste começo da década de 70, já longe parecem os tempos em que a psicanálise disputava um espaço no terreno da medicina, e que o principal inimigo era a psiquiatria organicista de Pacheco e Silva. Para essa nova geração, trata-se de definir qual é a "verdadeira psicanálise" , e enfrentar a concorrência, marcando sua diferença com as práticas consideradas "menores", as chamadas terapias ou simplesmente, psi.

IV – Os tempos da "verdadeira psicanálise" .

Durante a ditadura militar, a SBPSP não sofre perseguição do regime. Ela opta por uma posição de neutralidade, de silencio, e se protege numa prática de base kleiniana que «não deve ser contaminada pela realidade externa», acrescida principalmente após o retorno de Frank Philips em 1969, da leitura de Wilfred Bion.

Autoritario, rígido e conservador, Philips, retorna com um currículo de fazer inveja. Analisado por Klein e Bion, de quem se torna discípulo, ele se impõe como o analista dos analistas, mas também das novas gerações para se tornar a eminência parda da SBPSP. Como Virginia Bicudo, ele representa a renovação. Doravante, se deitar no divã do "Mister Philips ", quatro ou cinco vezes por semana (a sessão é cobrada em dólar) é imperativo, sobretudo quando o candidato deseja seguir uma formação no Instituto da SBPSP, e quer participar das instancias de poder da Sociedade paulista. Percorrendo os anuários e publicações da SBPSP, é interessante constatar que quanto mais o prestígio e a lenda da "inteligência", da "grande bagagem cultural" e, da "fineza de interpretação" de Frank Philips aumenta – aliás em proporção ao preço da sessão –, mais se faz necessário lhe atribuir um título, de "engenheiro" ou então de "doutor", precedendo o seu nome, como se um diploma pudesse justificar a competência que desejam lhe atribuir ou, quem sabe, o exorbitante preço cobrado.

Convém salientar que a questão financeira ocupa aqui papel relevante sobretudo quando se trata de um país onde uma parcela significativa da população vive em condições precárias. Ora, o preço da analise remete indubitavelmente à importância atribuída ao significado do conceito de "realidade externa" no processo analítico. O preço suscita igualmente uma reflexão sobre o significado do sujeito psicanalista como sujeito político. Sobretudo quando a resposta a essa questão é revestida do argumento de que a psicanálise se destina a uma "elite", a um "público culto ", o que trocando em miúdos, significa definir a psicanálise como saber endereçado a uma categoria social e economicamente bem definida, a dita "burguesia esclarecida".

Não se trata aqui de criticar apenas uma certa "opção pelos ricos", feita por uma parte considerável dos analistas da SBPSP, mas de lembrar que essa geração que escolheu a clínica privada com pacientes pertencendo a um extrato privilegiado da população, muitas vezes diagnosticada " neurótica", se demarca sobretudo pelo excelente padrão de vida adquirido graças à prática analítica. Padrão que hoje alguns melancólicos lamentam tê-lo perdido.

Ao longo da década de 70, apesar da emergência de novos grupos de inspirações teóricas e práticas diversas, e mesmo após a chegada dos chamados "analistas argentinos", e do aparecimento dos primeiros lacanianos, a SBPSP permanece como instituição potente. Pertencer à IPA é uma garantia e, muitos são os psicoterapeutas que acabam por se converter à Instituição que alguns, anos antes, acusavam de ser elitista, reacionária e conservadora.

O fim do milagre econômico e o começo do retorno da democracia ao país exigem, a hegemonia do famoso «grupo bioniano», ou melhor, do estilo "philipiano" será ameaçada apenas em 1982, quando pela primeira vez, é lançada uma chapa em oposição à da direção autocrática da SBPSP.

Após um período tumultuado de transição, com ameaças de rupturas e cisões e, incluindo intervenções da IPA, em 1990, uma nova geração, majoritariamente reconhecida como néobioniana assume a direção da SBPSP e seu Instituto. Mais democrática que seus mestres na forma de conceber a instituição e a vida institucional, mas também mais consciente de seu peso na geopolítica ipeista, sobretudo pelo número de membros afiliados, ela é também mais aberta ao diálogo com outras instituições e correntes teóricas psicanalíticas. Ao contrário de seus predecessores, entusiasmados pela produção estrangeira ditada pela escola inglesa, ela se recente de não possuir uma produção original, e de apenas "copiar" as tendências estrangeiras. Curiosamente, ela parece sofrer do mesmo mal-estar intelectual de que fala Schwarz : "o carater imitativo da vida cultural brasileira". (SCHWARZ, 1987, p. 29). Esse "complexo", que desde o século XIX, nos faz de tempos em tempos retomar o eterno debate sobre a necessidade de se elaborar um projeto de cultura nacional, que para os psicanalistas brasileiros se traduz na procura de uma "psicanálise brasileira".22

Além das disputas internas entre os mandarins da formação, os poderosos didatas e, das batalhas fratricidas que marcaram o movimento psicanalítico nacional e internacional, muitos dos que aderem à SBPSP, hoje em dia, o fazem por causa do prestígio sobretudo internacional e como cobertura ao exercício de uma profissão que, alguns nostálgicos das primeiras gerações, em voz baixa, lamentam que não seja reconhecida e praticada exclusivamente por médicos. No entanto, seguindo a tendência internacional, a psicanálise é hoje em dia uma profissão principalmente feminina, e seus clínicos oriundos de uma formação universitária em psicologia .23 Em 1997, entre os 281 candidatos inscritos na SBPSP, 74% eram mulheres e 65% não médicos.

Por outro lado, a maioria dos psicanalistas dessa nova geração, ignorando o jogo político institucional, parece mais preocupada com o fenômeno de medicalização da "depressão" e, principalmente, com os efeitos que ele tem provocado na demanda de clínica. Esta, como confirma a pesquisa efetuada em 1988 pela Associação Brasileira de Psicanálise (ABP) junto aos seus afiliados, se encontra em aparente diminuição. Os resultados obtidos mostram que os analisandos fazem em média 2,3 sessões por semana, e os analistas possuem cerca de 11,5 analisandos, sendo a maioria pacientes adultos. Um outro dado importante: 42% dos analistas da IPA no Brasil tiveram sua renda diminuída desde 1996.(ABP Notícias, 1999); essa diminuição da renda financeira já havia sido constatada numa outra pesquisa encomendada pela IPA em 1992.

Para finalizar, vale lembrar que desde os anos 70, as novas gerações de psicanalistas brasileiros têm acesso às obras completas de Freud traduzidas da versão inglesa. Considerada a pior de todas as traduções de Freud, desde 1997, a coleção é também disponível em cd-rom.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
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