Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Psicoses e literatura:
de Schreber a Joyce com Lacan

Rogerio Paes Henriques

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Resumo

Pretende-se examinar a escansão promovida por Lacan quanto ao estatuto da psicose tomando-se dois tempos do seu ensino. Recorre-se às análises empreendidas por Lacan sobre Schreber e Joyce. Lacan recusou o estatuto de literariedade à autobiografia de Schreber, em função da exclusão do seu autor literário, que, sendo psicótico e, portanto, foracluído da linguagem, não teria advindo enquanto “ser falante” (S barrado). Lacan reconheceu no conjunto da obra do escritor irlandês James Joyce uma suplência que lhe permitiu compensar sua estrutura psicótica, evitar o desencadeamento da psicose clínica e se constituir enquanto autor literário e, por conseguinte, enquanto “falasser” (parlêtre). Se, em Schreber, psicose e literatura são inconciliáveis, em Joyce, é sua construção como autor literário que permite a sua consistência subjetiva.

Palavras-chave: psicanálise; literatura; psicose; sujeito; sinthome; Lacan; Schreber; Joyce.


Abstract

It examines the scansion provided by Lacan as to the status of psychosis, considering two periods of his teachings. Lacan’s readings of Schreber and Joyce are taken into account. Lacan refused to give the status of literality to Schreber’s autobiography, because of the exclusion of a literary author who, being a psychotic, therefore speechless, would not have appeared as “a speaking being” (the barred S). However, in the whole of the Irish writer James Joyce’s works, Lacan recognized a suplency, which allowed him to compensate for his psychotic structure, to avoid the clinical psychosis outbreak and to constitute himself as a literary author, and, therefore, as a parlêtre. While psychosis and literature are not reconcilable in Schreber, it is Joyce’s construction as a literary author that allows for his subjective consistency.

Key words: psychoanalysis; literature; psychosis; subject; sinthome; Lacan; Schreber; Joyce.


Psicose e literatura: de Schreber a Joyce com Lacan
[Psychosis and literature: from Schreber to Joyce with Lacan]

O primeiro tempo no ensino de Lacan sobre as psicoses: o caso Schreber

Um dos primeiros comentadores a discutir o estatuto literário de Daniel Paul Schreber, o louco célebre, foi Jacques Lacan, em seu seminário de 1955-56 sobre as psicoses. Lacan negou esse estatuto às Memórias de um doente dos nervos em função de sua teoria da psicose então vigente. Vejamos a sua argumentação:

[...] Digamos que o longo discurso pelo qual Schreber nos dá testemunho do que ele se decidiu afinal a admitir como solução de sua problemática, não nos dá em parte alguma o sentimento de uma experiência original na qual o próprio sujeito está incluído ― é um testemunho, pode-se dizê-lo, verdadeiramente objetivado.

Nós poderíamos resumir a posição em que estamos em relação ao seu discurso quando tomamos conhecimento disso, dizendo que, se ele é com toda a certeza um escritor, não é um poeta. Schreber não nos introduz numa dimensão nova da experiência. Há poesia toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser, de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também nossa. A poesia faz com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de San Juan de la Cruz, nem da de Proust ou da de Gérard de Nerval. A poesia é criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica com o mundo. Não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber.

[...] ele [Schreber] é habitado certamente por todas as espécies de existências improváveis, mas cujo caráter significativo é certo, é um dado primeiro, e cuja articulação se torna cada vez mais elaborada à medida que avança o delírio. Ele é violado, manipulado, transformado, falado de todas as maneiras, é, eu diria, tagarelado. [...] ele é a sede de todo um viveiro de fenômenos, e é esse fato que lhe inspirou essa imensa comunicação que é a sua, esse livro de algumas quinhentas páginas [...] (Lacan, 2002, p. 93-94).

Se o neurótico habita a linguagem, o psicótico é habitado, possuído, pela linguagem (Ibid., p. 284).

Indubitavelmente, Schreber nos legou uma “obra tão surpreendente por seu caráter completo, fechado, pleno, acabado”, como assinalou Lacan (Ibid., p. 93). Todavia, tal obra teria o estatuto de sintoma patológico, na medida em que ela seria um produto da psicose, desmerecendo, portanto, a adjetivação “poética”. Diferentemente do poeta, que manipula a linguagem criando novas significações, Schreber, na condição de psicótico, seria manipulado pela linguagem, tornando-se mero fantoche, marionete de um Outro que o invade e que fala por intermédio dele. Grosso modo, pode-se dizer que faltaria a Schreber a condição de possibilidade de ser senhor de seu próprio discurso: “[...] tudo o que ele [Schreber] faz existir nessas significações [nas Memórias] é de alguma maneira vazio dele próprio” (Ibid., p. 95).
Lacan associa explicitamente o estilo poético à capacidade de metaforizar: “[...] poderia ser uma definição do estilo poético dizer que ele começa na metáfora, e que ali onde a metáfora cessa, a poesia também”. Referindo-se às Memórias de Schreber, esse autor afirma: “[...] mesmo quando as frases podem ter um sentido, nunca se encontra nada que se pareça a uma metáfora” (Ibid., p. 248). Daí sua afirmação de que, muito embora Schreber possa ser considerado um escritor, ele não pode, ainda assim, ser considerado um poeta.
Mannoni (1969) radicaliza essa concepção lacaniana em seu escrito Schreber als Schreiber, cujo título alemão, que equivoca o nome próprio de Schreber com a função de escritor, resume sua tese central: Schreber, embora escrivão, não é um escritor.
Por sua vez, Melman (2006, p. 323) destaca o que parece constituir uma única metáfora nas Memórias de Schreber, que coincide com a narrativa schreberiana de sua reconciliação com seu destino de se tornar a “mulher de Deus” (Schreber, 1995, p. 147). Contudo, esse autor reforça a concepção lacaniana e, ao isolar esta única exceção, acaba por confirmar a regra, sem questionar o estatuto de literariedade proposto por Lacan, que associa a poesia à metáfora.

O paradigma do Complexo de Édipo ou paradigma do gozo fálico

Esse primeiro tempo do ensino de Lacan é marcado pelo que Gerbase (2008) denomina “paradigma do Complexo de Édipo” ou “paradigma do gozo fálico”, ilustrado pela fórmula da metáfora paterna do escrito de Lacan de 1959 sobre a psicose (Lacan, 1998, p. 563):

Nome-do-Pai                        Desejo da Mãe                                                                A
____________       .        _____________________       →       Nome-do-Pai           ____
 Desejo da Mãe                Significado para o sujeito                                                   Falo
                                                                                                     

Nessa fórmula, supõe-se que o Nome-do-Pai pode barrar o Desejo-da-Mãe por intermédio da inscrição da significação fálica no Outro, hipótese da castração ideal, associada à neurose.

A psicose seria o emblema de tal impossibilidade resultante de uma falha estrutural na simbolização, cuja foraclusão do Nome-do-Pai e elisão da significação fálica (NP0 → Ф0) impediriam a assunção do ser falante (sujeito da linguagem), remetendo-se à não travessia edipiana. A forma final da psicose de Schreber é ilustrada nesse escrito de Lacan pelo Esquema I (Ibid., p. 578), uma deformação assintótica do Esquema R, correlacionado à neurose. Apesar de avançar um bocado na teorização sobre a psicose, sobretudo se comparado ao que se produzia no campo psicanalítico da década de 1950, Lacan permanece ainda tributário de uma visão deficitária da psicose, herança da psiquiatria.

O paradigma do Complexo de Édipo é uma teoria restrita do sintoma, pois só dá conta da significação fálica, do gozo fálico, do qual Schreber, em função de sua psicose, encontra-se foracluído. Daí sua exclusão enquanto autor literário, haja vista a utilização do gozo fálico como critério de literariedade. Schreber goza de outro modo e é a tentativa de circunscrição desse Outro gozo que caracterizará a escansão operada por Lacan, inaugurando o segundo tempo do seu ensino.

O segundo tempo no ensino de Lacan sobre as psicoses: o “caso” Joyce

Lacan não voltaria a comentar as Memórias de Schreber com densidade, porém, exatos vinte anos após o seu seminário sobre as psicoses, em seu semináriosobre o “sinthoma” de 1975-76 (Lacan, 2007), comentaria o escritor irlandês James Joyce, o que levaria a uma escansão em seu ensino. Se, num primeiro tempo, psicose e literatura são inconciliáveis em função da exclusão do psicótico enquanto sujeito da linguagem e autor literário, num segundo tempo de seu ensino, Lacan não somente assinalará que psicose e literatura não se excluem, como será a literatura de Joyce que fornecerá um modelo não só à psicose, mas à própria psicanálise.
Ao sustentar a hipótese de uma psicose em Joyce, Lacan assinala que este escritor seria um exemplo de suplência via obra e sua suposta psicose não teria sido desencadeada ao longo de toda uma vida. Lacan assinala a importância da literatura para Joyce e o fato de ele ter conseguido fazer enigmas e se tornado um nome público, alvo de comentários e assunto de debates (autor literário), conseguindo, dessa forma, “fazer entrar o [seu] nome próprio no âmbito do nome comum” (Ibid., p. 86). Ao forjar um nome próprio, Joyce teria feito a compensação da carência paterna, resultante da foraclusão do Nome-do-Pai. Isso teria sido um fator determinante para o não desencadeamento de sua suposta psicose (“sinthomatizada”), tendo o ego de Joyce feito função de “sinthoma”, isto é, de suplência, mantendo enodadas ou encadeadas as três dimensões psíquicas — real (R), simbólico (S) e imaginário (I).
A vontade expressa de Joyce de que sua obra passasse ao público – ocupando o ambiente acadêmico durante trezentos anos –, de constituir um nome para si por intermédio de sua arte, teria feito com que seu ego funcionasse como sinthoma fazendo suplência ao Nome-do-Pai ausente, permitindo-lhe se inscrever no laço social e localizar o gozo.

Na ocasião da redação de seu último romance, Finnegans Wake, não mais o ego de Joyce, mas sua própria escrita tomaria valor de sinthoma, ou seja, viria em suplência do erro do nó evitando desta maneira o desencadeamento, o que levaria Joyce a dissolver a linguagem nessa obra. Este romance da maturidade representa uma espécie de lalangue joyceana – ao privilegiar o uso assignificante da língua.

Se Lacan se apegou a um primeiro tempo de seu ensino para definir a pretensa não literariedade das Memórias de Schreber, e, por extensão, das demais “obras de loucura”, alegando que lá onde não há “sujeito da linguagem” também não haveria literatura, podemos nos basear, agora, em seu derradeiro ensino para ampliar seu critério de literariedade: assim, a literatura pode permitir ao psicótico criar sua própria consistência enquanto “falasser” (parlêtre) – conceito este que condensa o sujeito do significante e o corpo como substância gozante. Em outros termos, com a noção de falasser, Lacan amplia sua concepção de sujeito para além de sua circunscrição à linguagem e ao gozo fálico.

O paradigma da Impossibilidade da Relação Sexual ou paradigma do gozo do Outro

O “paradigma da Impossibilidade da Relação Sexual” ou “paradigma do gozo do Outro”, como o denomina Jairo Gerbase (2008), logifica o Complexo de Édipo. A lógica que tal paradigma introduz é a impossibilidade de escrever um dos gozos, pressuposto da foraclusão generalizada, que, ao menos nesse quesito, iguala neurose e psicose. Nesse sentido, não há uma descontinuidade radical entre as “estruturas” neurose e psicose. Assinala-se certa continuidade entre ambas na medida em que elas representam duas saídas diferentes à mesma dificuldade do ser. “Tanto o francamente psicótico como o normal são variações [...] da situação humana, de nossa posição de falantes no ser, da existência do falasser”, assinala Jacques-Alain Miller (Miller, 2009, p. 202). A clínica borromeana promove uma espécie de igualdade de cada um tanto com relação ao gozo quanto com relação à morte, diluindo as fronteiras entre o normal e o patológico ― daí a afirmação de Miller de que a Ф0 e a NP0 são os extremos da curva de Gauss, que apresenta o real das coisas humanas (Ibid., p. 216).
Tal como a escrita de Joyce parece apresentar-se como a operação de suplência que evita o desencadeamento de sua psicose, a escrita de Schreber vincula-se ao trabalho delirante numa psicose já desencadeada, permitindo-lhe uma estabilização a posteriori. Enfim, a passagem ao público das produções literárias, seja em Joyce seja em Schreber, parece contribuir com a consistência de ambos os autores, permitindo o enodamento psíquico e preservando-os do aniquilamento associado às vivências psicóticas mortíferas. Poder-se-ia concluir, portanto, que as Memórias de Schreber se incluem no escopo literário, dada sua dimensão “poiética” de invenção de si.
Não propomos aqui uma comparação estilístico-literária entre os escritos de Joyce e Schreber. Enquanto, para este último, a escrita funciona como uma bengala imaginária que compensa uma psicose desencadeada, para aquele a escrita tem função de letra, compensando não propriamente uma psicose, mas uma estrutura psicótica. Não nos interessamos aqui pela diferença de eficácia entre tais suplências (via delírio, em Schreber, e via obra, em Joyce) nem, por conseguinte, pelo estatuto literário que diferenciaria uma escrita associada ao imaginário de outra ligada ao real. Antes, pretendemos assinalar o que elas têm em comum na sua dimensão de poiesis que, tendo passado ao público, permite a compensação da psicose, por mais precária que seja.
Ao enfatizar o que se pode chamar de “empuxo-ao-público” das produções dos psicóticos, está-se reafirmando o princípio freudiano (Freud, 1911/2010, p. 94) de se levar a sério o delírio, encarando-o como uma tentativa de cura e de restabelecimento. Dar vazão ao delírio por intermédio de sua “publixação” (poubellication) é temperar o gozo na psicose, elevando o objeto (a) ao estatuto de Coisa. Isso significa testemunhar as produções dos psicóticos, quer sejam orais quer sejam escritas (ou ainda plásticas), desde as extraordinárias às ordinárias, no infindável trabalho de enlaçar essas produções no registro público do laço social.


Referências Bibliográficas

Freud, S. (1911) Observações Psicanalíticas sobre um Caso de Paranoia (Dementia Paranoides) Relatado em Autobiografia (“O Caso Schreber”). In: ____. Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, vol. 10.

GERBASE, Jairo. Os Paradigmas da Psicanálise. Salvador: Campo Psicanalítico, 2008.

LACAN, Jacques. (1955-56) O Seminário, Livro 3: as psicoses. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

____. (1959) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: ____. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

____. (1975-76) O Seminário, Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

MANNONI, Octave. Schreber als Schreiber. In: ____. Clefs pour l’Imaginaire ou l’Autre Scène. Paris: Seuil, 1969.

MELMAN, Charles. Retorno a Schreber: Seminário 1994-95. Hospital Henri Rousselle – Paris. Porto Alegre: CMC, 2006.

MILLER, Jacques-Alain et. al. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós, 2009.

SCHREBER, Daniel P. (1903) Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

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Número 29 - Febrero 2016
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