Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O Fausto de Fernando Pessoa:
Sub-versões dramático-poéticas
na
Tragédia Subjetiva

Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares

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É desconhecido da muitos que Fernando Pessoa, poeta da heteronímia, tenha escrito (ainda que parcialmente) tal qual Goethe, Mann, Valéry e tantos outros nomes da literatura, seu próprio Fausto.

Propomos com este artigo uma apreciação a partir das proposições do "último" Lacan do Fausto na obra de Pessoa em seu fazer, não nos restringindo, portanto, aos fragmentos deste poema-tragédia reunidos de seu espólio. Pessoa sagrou-se como o poeta do heterodoxo a partir da prática da heteronímia onde se fez outros, multiplicou-se e esvaziou-se do ortônimo ser. Sagrou-se a partir de sua heresia ôntica. Buscaremos, portanto, resgatar de seu fazer o modo singular de ser plural.

O poeta português expressou e viveu a experiência fáustica de ousar romper com as leis da nominação e inventar uma articulação diversa de existência, de consciência e de relação com a verdade e com o conhecimento. Não foi somente original nas suas composições, nas questões abordadas. Não foi adepto da prática da pseudonímia, assinando com nomes "falsos" que fazem, portanto, subentender o índice para um verdadeiro e totalizador subjacente. "A obra pseudônima é a do autor na su a pessoa, que assina com outro nome; a heterônima é a do autor fora de sua pessoa". (PAZ, p.20) O poeta português fez-se um nome a partir do que seu nome traz em gérmen e livrando-se de algo, para fora de si, fez sinthome.

Foi pessoa, não tão-somente da origem etimológica do nome (persona), enquanto máscara que ocultava o Eu para advirem outras pessoas. Essas não surgiram como personagens, mas como personalidades que brotavam de sua pena e que com ela assinavam nomes-outros (éteros-ónoma) com leis-outras (éteros-nómos). Dentre tais, três acabaram obtendo lugar de destaque em sua obra: o bucólico e semianalfabeto "mestre, Alberto Caeiro; o poeta sensacionista Álvaro de Campos e o latinista monárquico e médico Ricardo Reis. Estes acabam tendo existência mais autêntica e pormenorizada que o próprio poeta ortónimo (o que assina com o nome de Pessoa), que termina por se tornar algo próximo do que traz a sugestão de heterônimo de sua amada Ofélia, o "Ferdinand Personne", ou seja, ninguém (personne, em francês).

Em momento algum, em seus escritos públicos ou privados, se encontra descrição tão fidedigna de si enquanto ortônimo, como a das características " pessoais" dos três principais poetas heterônimos como no seguinte extrato da carta enviada a Casais Monteiro em 13 de janeiro de 1935:

Eu vejo diante de mim no espaço incolor, mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (à 1:30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora está certo). Esse, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. (apud SILVA, 2003)

Além de histórico e profissão, esses heterônimos têm caracteres físicos bem definidos:

Caeiro era de estatura média e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 de altura, mais dois centímetros do que eu), louro, sem cor, olhos azuis; Reis, de um vago moreno-mate; Campos, entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo (idem).

Mas, e a vida, as características de Pessoa ? Se, seguindo a trilha, justamente, de um de seus biógrafos, poderíamos afirmar com Octavio Paz (p.7), que "Os poetas não têm biografia. Sua biografia é sua obra". É pela obra que se (des-)faz a realidade biográfica. A obra pessoana é um infinito e fragmentário questionamento sobre temas cruciais. Esses exacerbam-se em seu fragmentário Fausto: Tragédia Subjectiva. Questões tais como: O que é o ser? O que é ser? Quem ou o que é Deus? O que é a verdade? Como alcançá-la? Quais os limites da palavra? Como vencer a natureza pela inteligência? Como tornar exprimível o inaudito da existência?

São questões que se intensificam na obra que tomaremos como centro de nossas apreciações, seu Fausto, e a que se lançam várias áreas do saber da qual destacaríamos três: a Literatura, a Psicanálise e a Religião.

Essa estranha ligação não é aqui proposta como inédita. Talvez o seja tendo Pessoa como centro de convergência, mas já foi empregada a partir da Psicanálise tendo como autor-alvo ou autor-princeps o irlandês James Joyce. Refiro-me as formulações propostas por Jacques Lacan em seu 23o seminário, Le Sinthome. O título-escansão deste seminário nomeia uma nova articulação que Lacan propõe para a clínica psicanalítica. Seguindo seu conselho: "Faça como eu, não me imite." Tomaremos suas articulações com outro propósito: discutir o fazer pessoano.

Seu Fausto tem ponto de partida semelhante aos demais da literatura universal no Streben (ânsia pela realização) de tudo saber e poder (mais saber, de fato, do que poder) já que a tragédia subjectiva, o drama (quase monólogo) terá como palco de ação a interioridade deste sujeito.

Gostaria de ter em mim
Isso ao qual aspiro obscuramente:
O pensamento que tudo abarca
E um conhecimento profundo e único

Com Rallo-Dichte (2003), poderíamos ir além, dizendo que mais do que "dentro de si" o drama pessoano de Fausto trata de uma profunda ausência de si. "O espaço e o evento são sempre referidos na forma de uma falta, um procedimento de anulação engaja o pensamento na verdade, os termos de forclusão demonstram uma ausência de si, uma zona do inominável, da morte, do real" (p.154). Seu Fausto parte desta busca do impossível e expressa de modo magnífico o horror ao real e à despersonalização, especialidade pessoana, que num Fausto sem Mefistófiles ocupará permanentemente este lugar vacante.

O fragmentário é a grande marca de seu Fausto, que guarda uma série de características distintivas dos demais. Na verdade, como bem o coloca Teresa Rita Lopes (in PESSOA, 1997 p.31), em "Fausto, o poema dramático, [Pessoa] foi escrevendo ao longo de sua vida como quem se exprime num diário." O que o poeta nos legou foi uma série (em sua maioria não datada nem contextualizada quanto a uma ordem) de "pedaços" de poemas incoesos e algumas poucas páginas que exprimiam os seus planos e intenções de um Fausto em três partes.

São quatro os grandes temas envolvendo poemas-monólogos recitados pelo Fausto em Primeira Pessoa seguidos de Dois Diálogos (um com Maria, espécie de Gretchen que Fausto não sabe ou não pode amar, e outro com o misterioso Velho):

A edição, com a qual trabalhamos por ser a mais completa e por isso a que mais denuncia a "lacunaridade", é a organizada por Teresa Sobral Cunha lançada pela editora Nova Fronteira. É a única que não se limita ao Primeiro Fausto, mas intitula-se, conforme o plano do escritor Fausto - Tragédia Subjectiva. Eis os planos do autor para sua obra tripartite. Primeiramente, em termos da ação:

Primeiro Fausto: O atual, meio escrito, e apenas simbólico do isolamento, etc., e outras coisas da vida. (indivíduo).

Segundo Fausto: Fausto reencarna? Símbolo da aspiração insaciável que, casada como Helena, ou Helenismo, produz (/o espírito moderno?/) – a /perfeição humana/ - e é castigado com a falência, a imperfeição, o desastre; como acontece ao espírito moderno (Sociedade)

Terceiro Fausto: A tragédia mais transcendente ainda (Reencarnação futura?)

Mas, também em torno da representação almejada:

I - Oposição entre a Inteligência e a vida.

II - Oposição entre o Desejo e a Realidade

III - Oposição entre Não-Ser e Ser.
A Inteligência busca compreender
O desejo busca possuir (compreender de perto)
O Não-Ser busca Ser." (p.192)

Com os dois primeiros Faustos de Pessoa, apareceria uma clara reprodução da empresa goetheana, na qual, na primeira parte, se retrata o pequeno mundo (Kleinwelt) da interioridade; na segunda, o (Grosswelt), do social, mas Pessoa quer transcender seu mestre e injeta a questão hamletiana de outro mestre (Shakespeare) para o terceiro Fausto. Esta passagem, busca do não-ser ao ser, encontrará, porém, o caminho inverso conforme um fragmento publicado nos confessa. Trata-se da despersonalização e da desconstrução do Ego, não por uma derrota de Fausto ou por um conformismo, mas por um sucesso em se ver livre das amarras imaginárias prévias:

Tornar-se inconsciente? E como? O Ser
Passar a Não-Ser? É impensável.
E contudo é impensável o Real.
- Vida (...) inconsciente –
E ela é o Real.

Mas, a articulação com o tripartite não se resume ao plano de composição. Também, de modo muito enigmático, aparece no número de três integrantes cada, três cotéries nos esboços do Fausto. Por duas vezes, na mesma ordem, estão listados, nos planos, seus três principais heterênimos, começando pelo mestre Caeiro:

Alberto Caeiro – Ricardo Reis – Álvaro de Campos

Depois, temos uma trilogia associada ao religioso, ou antes, aos homens mensageiros do religioso. São três "fundadores de religiões" que, como sabemos por aquele que fala n’ A Hora do Diabo", "Se lembram de tudo, menos de existir" (PESSOA, 1997 p.22) Destes, o primeiro e o terceiro figuram nos fragmentos:

Cristo – Mahomet – Buda

E, por fim, temos três dos seus grandes poetas influenciadores na língua inglesa, alemã (referência ao Fausto mor da literatura) e do grande poeta português que manifestamente quis superar (ser um supra-Camões). Os dois primeiros também figurarão nos framentos:

Shakespeare – Goethe – Camões

Nessas três trindades, uma coisa é clara, o rebaixamento dos deuses a uma condição humana e a elevação dos poetas à divina. O enigmático é o papel, provavelmente intermediário, que gostaria de ceder aos seus heterônimos, juntos a essas outras duas "sociedades". Mas, fica ali claro um papel de quarto elemento atribuído ao Fausto, que não faz série com nenhum destes três, mas os conectaria a cada vez.

Cristo, na primazia dos religiosos, é designado como uma espécie de Fausto embriagado, um homem que ousou ser Deus:

Cristo:
Fui doido e tido por Deus (...)
Cheio de dor e de susto
Toda vida delirei, (...)
De ser Deus tive a cobiça,
Vê sou Deus ou não sou! (...)
Assim sou em meu nome
Inda muitos o serão;
Um Deus – supremo renome,
E doido ! – suma abjeção.

"Posteriormente", ou seja, assumindo que devesse ali contar tais versos em conformidade à colagem de Teresa Sobral Cunha, Fausto irá identificar-se a um Cristo às avessas (Sou o Cristo negro). Shakespeare, primeiro dos poetas, por sua vez, é o que tem lucidez o bastante para fazer bom uso da inspiração. É ao bardo inglês que dá a voz logo após Cristo, para dizer "E é Loucura Inspiração" Exclamação reforçada por enigmáticas vozes: "Só a loucura é que é Grande ! E só ela que é feliz !".

A loucura é, aliás, tema recorrente não só no Fausto como em toda a obra deste autor, que se vê constantemente ameaçado pela herança paterna (a avó louca). Ao mesmo tempo que a teme, Pessoa por ela se fascina e procura joyceanamente torná-la uma loucura produtiva. "Pessoa não foi psicótico, teve a lucidez de saber-se um louco que não precisou de asilo" (MARTINHO, p.67). Dirá que "A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana, Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela ser grande é ser gênio" (PESSOA, 1991 p.16). Há em Pessoa um incontestável elogio da loucura como uma abjeção à normalidade alienante. "Não há normas. Todos os homens são exceções a uma regra que não existe" (idem, p. 11)

Nesse sentido, soube expressar-se em sintonia com o Fausto nietzscheano de Thomas Mann: "Uma das formas de saúde é a doença. Um homem perfeito, se existisse, seria o ser mais anormal que se poderia encontrar" (ibidem, p.18) Considerando sua despersonalização heteronímica, fruto de sua condição psíquica, quis dela fazer obra antes de delírio, ainda que considerasse a inspiração uma espécie privilegiada de delírio. "A Inspiração poética é um delírio equilibrado (mas sempre um delírio)" (ibidem, p.60).

Há realmente muito de Shakespeare há pouco mencionado na tragédia subjetiva de Pessoa, comparável ao monólogo de Hamlet e sua angústia melancólica. De fato, o próprio Pessoa-Hamlet soube (des-)encontrar sua Ofélia, preço a ser pago por aquele que, para conhecer, não pôde amar. Escreverá à sua amada, pondo fim à aventura epistolar: "O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existência a Ofelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais à obediência a Mestres que não permitem nem perdoam" (apud NOGUEIRA e AZEVEDO p.24).

José Martinho (2001), em seu Pessoa e a Psicanálise, nos traz uma rica leitura dessa passagem de Pessoa pelo papel de Hamlet, quando o menino, órfão de pai, se mudará com a mãe e o padrasto (João Miguel Rosa) para Durban, na Africa do Sul, sendo o único da casa que seguirá, portanto, o nome do pai após os numerosos partos da mãe, que dará à luz Rosas e não mais Pessoas. E seu Fausto é "de certo modo, um duplo de Hamlet que pensa a idéia da ‘interioridade’: O espírito do homem é um ‘espaço’, um lugar onde se elabora o conhecimento de todo o universo. E é também o lugar da interrogação fundamental" (RALLO DITCHE, p.153).

Como pode haver o que existe ?
O horror de que há a existência, e porque ela existe
Ela me tortura até o fundo do meu ser.
Porque sou quem sou?

"O sujeito está na posição do inominável, como o próprio Hamlet, ele busca por si mesmo e não se encontra, ele se encontra de modo incessante na encruzilhada do ser e no não-ser". "Este entre-dois engendra uma melancolia [aparentemente, diríamos] intransponível que em Fausto encerra o drama" (idem p.154). Mas, de certa forma, esse entre-dois é prenhe do entre-muitos e assim podemos compreender que a impossibilidade e a paralisia de Fausto são, de certa forma, ao mesmo tempo, base e conseqüência da alternativa pessoana à questão do ser: sua heteronomia, hipótese que, veremos, será reforçada por Manuel Gusmão.

Gusmão denomina o Fausto de Pessoa O poema impossível, em um ensaio que dedicará a essa obra mais intentada que, de fato, realizada. Em seu entender, a impossibilidade não estaria ligada somente à questão da organização em uma obra unitária e contínua. Gusmão vai muito mais além, levantando a hipótese de que Fernando Pessoa "teria ousado a produção de um ato poético humanamente irrealizável" (ALONSO, 2006), uma vez que o poeta ali teria transgredido "os limites das mímese ao optar pelo gênero dramático paradoxalmente escrito em uma linguagem lírica". Em termos lacanianos, porém, o que estaria aí evidente na condição de impossível, é o que toca ao registro do real com que o Fausto se depara

Trata-se realmente de uma impossibilidade de atingir o poema de um gênero literário visado, porque tudo indica – as notas e as indicações cênicas que acompanham alguns fragmentos e o próprio texto fragmentár io que resta – que o projeto de Pessoa visava, em termos de gêneros, ao poema dramático. Mas, também aqui se deve entender que esta impossibilidade não pode ser lida com uma incapacidade de autor, mas antes como a revelação, pelo texto, de uma impossibilidade, por assim dizer, necessária. Esta é, aliás, a via para compreender que esta dramaticidade, impossível enquanto regra de gênero permite, entretanto ler o drama como constituinte interno da linguagem, da voz poética da obra que constitui o universo de Fernando Pessoa. (apud ALONSO, 2002)

A impossibillidade de colocar em palavras o real da experiência será repetidas vezes manifesta pelo Doutor pactário neste drama-poético ou poema-dramático:

Escrever, mas o que eu escreveria?
Se eu sei esta verdade além do ser
Há o mistério; se sei esta e nenhuma outra,
Que verdade daria eu ao mundo?
E não dar-lhe verdade grão mal era

A hipótese que Gusmão levanta é a de que o Fausto de Pessoa seria uma "espécie de subtexto" a partir do qual seria escrita toda a poesia do "universo Pessoa". Talvez um produto impossível enquanto poema, mas que serve para possibilitar a gênese da heteronímia. Seria "Uma espécie de subtexto que os textos, generalizadamente heteronímicos, reenviam uns aos outros no seu diálogo labiríntico. (...) Dito ainda de outro modo, o Fausto é a matriz esfacelada, o quadro fragmentário que situa a unidade necessária da enunciação múltipla da heteronímia, tomada como característica de toda a obra de Pessoa, generalizada."

Abrimos este artigo sugerindo o quanto o nome Pessoa teria contribuído ao seu portador na gênese de sua invenção heteronímica. Falamos da etimologia de máscara, mas "Pessoa é ainda uma palavra que se aplica a esta ou aquela pessoa (a qualquer pessoa do sexo masculino ou feminino, viva ou morta), mas também a toda a gente, isto é, à pessoa comum, a todas as pessoas" "Pessôa é um nome de cristão novo, que carrega em si a despersonalização da personalidade judia, ou a aniquilação do judeu" (idem p, 37-8) (MARTINHO, 2001 p. 38). Nesse sentido, é nome próprio privilegiado para o objetivo sinthomático de se fazer nome comum.

Seu nome permite, ou antes, sugere a estratégia de defesa do fundador lendário epônimo de sua Lisboa: Ulisses (Olisipo) diante do ciclope Polifemo. Quando questionado pelo gigante sobre seu nome, diz chamar-se Outis (ninguém, personne, em grego). Sua astúc ia mostra-se quando Polifemo revela que devorará "Ninguém" e também terminará por gritar por socorro aos seus semelhantes já que "Ninguém" o havia cegado. Está no nome de Pessoa o equívoco Nenhum / Algum / Qualquer Um (MARTINHO, 2001) e podemos perceber um processo na nomeação-invenção de seus primeiros heterônimos: Jean Seul, Charles Robert Anon e os irmãos Alexander e Charles Search (solidão, anonimato e procura).

Aqui, entendemos o processo da heteronímia como o grande produto do pacto fáustico pessoano. Nesse processo heteronímico, reforçando a tese de Gusmão de que Fausto lhe servira de subtexto, é um destes primeiros o que fará, em sua língua madrasta (o inglês) o sua excomunhão, " Não com sino, livro e vela, mas" como escritor, "Com caneta, tinta e papel. (not with bell, book and candle, but with pen, ink and paper).

Excomunhão: I Charles Robert Anon, being, animal, mammal, tetrapod, primate, placental, ape, catarrhynce, […] man, eighteen years of age, not married (except at odd moments), megalomaniac, with touches of dipsomania, dégénéré superior, poet, with pretensions to written humour, citizen of the world, idealistic, philosopher, etc. etc. (to spare the reader further pains).

In the name of TRUTH, SCIENCE and PHILOSOPHIA, not with bell, book and candle, but with pen, ink and paper,

Pass sentence of excommunication on all priests and all sectarians of all religions in the world.

Excommunicabo vos.

Be damned you all.

Ainsi soit-il. (apud BRÉCHON, p.91)

Já o pacto, fáustico, propriamente, este será celebrado por outro destes pré-heterônimos: o que procura, Alexander Search. Diferentemente de Charles Anon, que é um louco furioso, Search é um deprimido calmo. Pessoa já começa a se desdobrar em traços necessários para a elaboração de seu sinthome, primeiro o rebelde apaixonado, depois o calmo e seguro Search. Seu pacto lembra-nos os propósitos construtivos do último Fausto de Goethe (idem, p.105):

Pacto estabelecido por Alexander Search, do Inferno, Nenhures, com Jacob Satanás, senhor, embora não rei, do mesmo lugar:

Nunca desistir ou recuar no propósito de fazer bem à humanidade.

Nunca escrever coisas sensuais ou de outra forma más, que possam prejudicar ou fazer mal aos que as leiam.

Nunca esquecer, ao atacar a religião em nome da verdade, que a religião dificilmente pode ser substituída, e que o pobre homem chora na escuridão.

Nunca esquecer o sofrimento e a dor dos homens.

† Satanás

a sua marca

2 de outubro de 1907

Alexander Search

Nessa mesma época, identificamos, em um extrato do diário de Pessoa redigido em inglês, a dor e a melancolia inerente ao Fausto antes de selar seu pacto:

I sit here, writing, at my table, my pens and my lead, etc., and suddenly there comes upon me the mystery of the universe and I stop, I shudder, I fear, I wish on the moment to cease to feel, to hide myself, to dash my head against the wall. Happy the man who can think deeply, but to feel deeply is a curse. […] I sometimes am struck […], realizing how little of myself is mine (or is myself) (apud BRECHON, 1999 p.78).

Aliás, tomando o elemento demoníaco do pactário como substrato da multiplicação/divisão, lembremos os ecos do espírito que nega no primeiro dos heterônimos o francofônico Chevalier de Pas. Como bem releva Bréchon, autor da Biografia Pessoa: Étrange Étranger "O nome ‘Pas’ não é aí o substantivo que designa o andar, e sim o advérbio de negação" (1999 p. 33) Mas, fica a indagação sobre o que seria ali negado. O nome herdado do pai ? (questão a qual voltaremos) O ser ? A personalidade ? Ou seria o não do engano necessário ao diabo que, pela mentira, sempre diria a verdade ?. Pas será o primeiro companheiro deste Hamlet isolado. Será aquele através de quem Pessoa "escrevia cartas dele a [si] mesmo" (PESSOA apud MARTINHO, 2001 p.55)

A questão paradoxal da contigüidade entre a verdade e a mentira no discurso encontrou em Pessoa alguém que soube fazer com seu sofrimento, sua fragmentação interna. Pela pena do ortônimo, tornará célebre sua definição do fazer poético ao seu modo e compreensão:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Para falar de si, do poeta, em sua Autopsicografia, não utiliza a primeira pessoa, sai de si, ao passo que, num poema contemporâneo intitulado Isto, categoria de "não-pessoa", se justifica em primeira pessoa:

Dizem que minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto com a imaginação.
Não uso o coração

Pessoa "Tem que fingir que é dor a dor que deveras sente. Por quê ? Porque é requerido um trabalho, um processamento, onde a sensação ‘íntima’ possa lograr despersonalizar-se, aceitando, deste modo, as lógicas restrições reguladoras da efetuação artística" (HARARI, 2001 p.102). Poderia ter sido mais um psicótico destinado a escrever cartas a entes inexistentes ou outro artista que anotava em diário seus queixumes, mas soube ir além e, através destas dores (fingidas e sentidas), criar laço. Como bem coloca Harari, "Diferente das obras narcísicas, destinadas à gaveta próprias do "gozo idiótico", "se, ao contrário, finjo sentir a dor que deveras sinto, nessa ficção adoto o ponto de vista do Outro, e confirmo, pela minha participação, a troca simbólica" (idem, p.104). O psicanalista argentino irá valorizar a obra de Pessoa como exemplo de um fazer que se e spera em uma análise: "A heteronímia, tal como no decorrer da análise, passa pela condição do autor fora de sua pessoa" (ibidem, p. 103), ou seja, "Quando Pessoa inventa nomes o que inventa é seu sinthome" (ibidem, p.104)

Torna-se impressionante a um leitor lacaniano a apreensão da ex-istência feita nesses versos complementares acima reproduzidos. Mas, o mais complexo grau de manejo dessa ex-istência encontra-se certamente na sua tríade de heterônimos, que também ao poeta fizeram questão quanto à sua natureza:

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histérico neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registro de seus sintomas. Seja como for, a origem mental de meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. (PESSOA, 1975 p.16)

Assim têm estes poemas de Caeiro, os de Ricardo Reis e os de Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer deles idéias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem idéias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é, aliás, como se deve ler. (idem, p.14).

Não nos interessa saber sobre a acuidade de seu "autodiagnóstico". No entanto, é digno de nota que ele atribui ao seu sofrimento psíquico a origem de seu fazer sublime. Soube romper com a divisão entre a poesia e a dramaturgia para dar voz e assinatura às personas. Faz da ficção desde a fonte, o lugar de enunciação de verdades que no " seu eu" não teriam voz. Transformando o sintoma em sinthome, faz de si uma persona-valise, donde as contrariedades terão diferentes evocações e exorcismos forcludentes possíveis.

Pessoa retrata e reforça a importância freudiana cedida à realildade psíquica em detrimento da meramente operatória. Dirá que "O mundo não é verdadeiro, mas é real" (1991, p.64), Nesse sentido é que procura pela ficção a sua solução individual. "O que sou essencialmente – por detrás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e de tudo mais – é dramaturgo. O fenômeno de minha despersonalização instintiva, ao qual aludi em minha carta anterior, para a explicação da existência dos heterônimos, conduz naturalmente a essa definição." (apud HARARI, 2001 p.76)

Os heterônimos são a saída pessoana ao seu sofrimento. Se coloca sua gênese em uma atribuída neurose, Paz ressalta a diferença de tal ato em relação a doença. "O neurótico é um possuído, o que domina as suas perturbações. É um doente? O neurótico padece das suas obsessões; o criador é seu dono e transforma-as" (PAZ, 1983 p.18). Mas, como essas personalidades aliam-se em ou a partir de Fernando Pessoa em seu sinthome?

Nos projetos do Fausto, estavam os heterônimos. Esses nomes de autores são ali convocados. Dentre tantos, são os três ali evocados os que merecem destaque na obra pessoana. Para sua gênese, Pessoa elabora uma mitologia "mediúnica" linda e interessantíssima apresentada em carta a Casais Monteiro datada de 13 de janeiro de 1935. "Confessará" que, após anos de dificuldades em escrever "poemas de índole pagã", em 8 de março de 1914 teriam de uma vez nascido os três: Caeiro, Reis e Campos:

Acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase, cuja natureza não consegui definir (...) E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe o absurdo da frase: Aparecera em mim meu mestre (apud MARTINHO, 2001 p.57) (grifo nosso)

Em seguida sente a necessidade de escrever um poema (Chuva Oblíqua) assinado pelo ortônimo "Foi a reação de Fernando Pessoa contra sua inexistência como Alberto Caeiro" Depois tratou de "descobrir instintiva e subconscientemente alguns discípulos" Ricardo Reis e Álcaro de Campos. E ao fim, desabafa, " em tudo parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve" (idem). O que é curioso é esta última constatação. Mais do que apontar-se, Pessoa, como o articulador dos outros três, coloca-se entre os outros dois discípulos do mestre Caeiro. Josá Martinho irá aí fazer uma interessante analogia com o Discurso do Mestre de apresentado por Lacan no Seminário 17 – O Avesso da Psicnálise:

O Discurso do Mestre

No lugar do S1 (significante meste), aponta o mestre Caeiro. "Alberto Caeiro é o nome que passa a funcionar no lugar do significante mestre da nova estrutura quadripartida" (p.61). Ricardo Reis, o médico, o erudito, o racional ocupa o lugar do S2, é o "significante do saber". Pessoa seria aí o "Sujeito do mestre" ($), o médium que a eles dá a voz e Campos, o engenheiro, seria o objeto a "construído como um navio".

Diante da originalidade da proposta de Martinho pensamos antes a questão da quaternidade ou do três mais um quanto ao RSI borromeano e o sinthome. Para tanto, partimos da constatação de Octavio Paz quanto às crenças dos mesmos. "Em todos, há partículas de negação ou de irrealidade: Reis acredita na forma, Campos na sensação, Pessoa nos símbolos. Caeiro não crê em nada: existe." (PAZ, 1983 p. 22) Não se tratará de alguma transposição direta do exemplo de Martinho.

Começamos pelo Imaginário, em Reis, este que procura organizar sistemas e linguagens, dar nexo e sentidos ao paganismo do mestre, interpretando os signos. Pessoa estaria relacionado ao Simbólico, é o místico sem fé como o define Ordoñez (1994), que tão fervorosamente nega a Igreja Católica, mas segue na peregrinação das doutrinas dos símbolos das sociedades iniciáticas, da Ordem Rosa-Cruz e da Franco-Maçonaria. Já Álvaro de Campos, o sensacionista e aparente niilista, este resto, objeto a na leitura de Martinho, relaciona-se ao Real, ao disruptivo, que causa horror, não fazendo laço. Caeiro, o mestre, seria então o artifício reatador daquilo que Campos teria desunido no Real. Como no exemplo do sintoma que se transforma em sinthome, da mesma matéria do fio que se desfaz, será feita a quarta consistência. Vemos, portanto, que das mesmas letras se produz os princípios (iniciais) do mestre reatador deste disruptivo:

A(lvaro de) C(ampos) --> A(lberto) C(aeiro)

O mestre Caeiro é a resposta arracional de Pessoa a uma impossibilidade que seu Fausto lamenta e declama. "Caeiro é a primeira proposta pessoana de uma resposta ao real, o que acaba por transformar num poeta impossível, ou numa impossibilidade realizada" (MARTINHO, 2001 p. 63). Se seu Fausto representa principalmente o desespero da inteligência que não dá conta da realidade, mais próxima de Pessoa e Reis, seus fragmentos e planos acusam para um itinerário de quem apreenderá com este mestre quase iletrado que "[Caeiro] espanta-se ante a idéia de que a realidade é inacessível: ela está ali frente a nós, basta tocá-la. Basta falar" (PAZ, 1983 p. 24).

Mas, se aqui falamos da heteronímia, operação pelos nomes, como uma forma de Pessoa reagir a uma falha apontada no real, cabe mencionarmos uma passagem muito pouco comentada por seus biógrafos, uma operação no real, na letra de seu nome que é contemporânea de sua invenção. Nosso Pessoa-Hamlet, até então o único de sua casa a assinar o nome Pessôa (com circunflexo, como fizera o pai), quando retorna à terra do pai (seu Portugal natal), menciona a necessidade de uma "operação" (apud MARTINHO, 2001). Enquanto Alfredo Margarido suspeita se tratar de uma operação para resolver um problema de impotência, João Peneda defende que se trataria da circuncisão, já que o retorno a pátria (à terra do pai) seria também "um regresso ao pai e às origens judias do cristão novo" (idem, p.36) por tudo que o ligava a este pai.

Já tivemos a oportunidade de tratar da menção bíblica da mudança do nome de Abraão simultânea ao seu pacto com o pai pela circuncisão. Mas Pessoa, não acrescerá algo em seu nome, antes agirá como Freud fez com o "is" de seu Sigismund, desembaraçando-se de algo do pai para tirar seu nome do âmbito do privado e torná-lo público.

Pessoa também fará uma operação heteronímica em seu ortônimo. Seu nome de família era Pessôa, como nos mostra Martinho "No momento em que está a forjar o seu verdadeiro nome de autor de livros, que Fernando, que se chama por filiação Pessôa, decide fazer uma importante alteração na sua vida: Retirar o acento circunflexo do seu apelido (sobrenome)". Justifica-se em carta de 4 de setembro de 1916 a Cortes Rodrigues "Como vou publicar umas coisas em inglês, acho melhor desadaptar-me do inútil, que prejudica o nome cosmopolitamente" A referência a necessidade de ter seu nome circulando em outra língua, a busca pelo cosmopolita, traduz a busca pela heteronímia de se fazer público, nome comum. "A mutilação onomástica do patronímico é também uma espécie de (auto)castração, uma nova tentativa do filho para se tornar pai ao nível da escrita" (MARTINHO, 2001 p.45). Surpreende que Martinho não a relacione à operação da circuncisão, já que é corrente a vulgar expressão do cortar o "chapeuzinho", metáfora para o prepúcio que afinal também se utiliza para o acento circunflexo.

Lacan, que aparentemente não conheceu a obra de Pessoa, fará, em seu quinto seminário, referência à heteronímia como este recurso que envolve a mudança do nome de Freud e tal relação com o equívoco Signor(elli) e Herr:

A tradução de um termo em uma língua estrangeira, no plano do ato substitutivo, na comparação necessitada pela existência, em termos do fenômeno de linguagem, de vários sistemas lingüísticos, denomina-se substituição heterônima. (…) Mas, em todos os casos isso tem um sentido, e em todo caso, aqui, provisoriamente, na substituição de Signor por Herr, não se trata de metáfora, mas simplesmente substituição heteronímica. (SEMINÁRIO 5 - 13/11/57)

Nessa "tradução" de seu nome, não para o inglês, mas para uma facilitação de sua circulação no exterior e a retirada do acento doméstico, está manifesta esta substituição não metafórica, mas apropriativa. Pessoa deixará a ilusão do amor eterno ao pai e renunciará tanto ao credo do mesmo ou de sua linhagem, quanto ao credo da pátria, o cristianismo católico que tanto abominará. Pessoa, num primeiro momento, degladia-se "entre o deus da mãe e o deus do pai", mas quer adiante "libertar-se destes vínculos e assumir a sua ‘religião individual’, seguindo realmente o caminho da heterodoxia". Testemunho disso é o seu Fausto, que somente presentifica Deus e o diabo pelas falhas:

O que é Deus?
Uma palavra,
Pouco mais que um som.
E um som?
Nada.
(...)

Sou morte, porque sei que o infinito
É limitado, e assim Deus morre em mim.
Deus sabe que é uno, um e infinito,
Mas eu sei que Deus, sendo-o, não o é.
Mais longe que Deus vai meu ser proscrito.
(...)

Não descreio de Deus, passei p’ra além...

Fausto, ao espelho, constata melancolicamente em Deus a falha do Outro: "Deus existe, mas não é Deus, eis a chave transcendente de todo o ocultismo". Seu Fausto parece um ensaio de como prescindir desses nomes. O Diabo, figura "necessária" nas outras versões, está aí ausente, salvo por uma página em que aparece como o nome de Lúcifer e não de Mefisto. Fausto iguala-se ao elemento demoníaco ao deparar-se com a constatação da morte de Deus.

Um Inominável supertranscendente
Eterno Incógnito e incognoscível!
Deus ? Nojo. Céu, inferno. Nojo, nojo.
P’ra que pensar se há-de parar aqui
O curto vôo do entendimento?
Mais além! Pensamento, mais além!

Se Fausto clama pelo demoníaco, não é para selar o pacto, mas para remediar-se através da loucura ou do sonho de uma melancolia que o paralisa e o sufoca. Domínios estes (o sonho e o luar dos lunáticos) reclamados pelo epônimo em A hora do Diabo: "Como a noite é meu reino, o sonho meu domínio." (p.58) "as minhas melhores criações – o luar e a ironia.") (idem)

Sufoco em alma! Suma-se-me a vida
Compreender-lhe o horror ! Abra-me o sonho
Ou a loucura a tenebrosa porta
Que a treva é menos negra que esta luz

Fausto é um porta-voz do poeta que, pela heteronomia, sofre com seu desconhecimento ante a tantos espelhos reduplicadores:

O mistério dos olhos e do olhar
Do sujeito e do objeto, transparente
Ao horror que além dele está; o mudo
Sentimento de desconhecer-se

Este "horror" do esmaecimento, do desconhecimento, da despersonalização é talvez a marca do demoníaco que o persegue e assombra. O horror que no capítulo cinco associávamos a esse contato com o real:

Um, o horror da morte, outro o horror
De não poder evitar encontrar
Este horror – ter que morrer. Dois...
Dois só horrores? Não. À roda destes
Giram milhares, interpenetrantes,
Complexos, uns dos outros produzidos
E nessa treva hedionda, nesse inferno
Que me tem lugar n’alma o pensamento

O "horror" do ato que faz Fausto se deparar com o real seria a melhor palavra para sintetizar a aventura do Fausto que Pessoa chegou a escrever: o Primeiro Fausto. O que veio além lhe foi impossível expressar. Impossível, pelo real da morte que lhe fez cair a pena da mão, ou o impossível da transmissão deste "para além" próprio do real ?

Tal qual destacamos no Fausto de Thomas Mann, o de Pessoa é um belo retrato dessa passagem da posição melancólica, das Lamentações do Doutor Fausto, para um fazer a partir do contato com uma terrível verdade.

Não nasce em mim nem sombra de alegria
Longínquo e exilado. (...)
Sinto como um insulto esta alegria (...)
Felicidade, (...) composto
De sensualidade e infantilismo...
Como te posso eu ter, felicidade? (...)
Eu sou o Aparte, o Excluído, o Negro!

Está separado pela verdade que alcançou. E inconsolável pela que sabe inatingível através do pensamento:

Quanto mais fundamente penso, mais
Profundamente me descompreendo.
O saber é a inconsciência de ignorar,
Mesmo quem sabe muito nada sabe.

Pessoa sucede com seu Fausto dar conta da expressão desse impossível conforme expresso em seus versos: "Escrever em palavras de carne, sentindo o horror e o mistério do Universo". Os versos de abertura de seu Fausto são o mais direto testemunho da atribuída "verdadeira realidade escondida atrás da realidade banal da vida cotidiana como uma realidade luminosa, enfim rendida aos afetos e ao gozo" (LAMBOTTE, 2007 p.149).

Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria
São outra coisa que a noite e o vento –
Sombras de vida e de pensamento.

Tudo que vemos é outra cousa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.

Tudo que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento
São sombras de mãos cujos gestos são
A ilusão mãe desta ilusão
Tudo transcende tudo
E é mais e menos do que é.

Com seu Fausto, levantam-se todas as máscaras (personas) da realitade banal, atravessando seu fantasma e indo além, fazendo com seu sintoma um sinthome.

Desde que despertei para a consciência
Do abismo da morte que me cerca,
Não mais ri nem chorei, por que passei,
Na monstruosidade do sofrer,
Muito além da loucura da que ri
Ou da que chora, monstruosamente,(...)
Todas as máscaras que a alma humana
Para si mesma usa, eu arranquei...
A própria dúvida, trementemente
Arranquei eu de mim, e inda depois
Outra máscara (...) arranquei

Parodiando o de Goethe, o Fausto de Pessoa também termina seus dias numa "cegueira iluminada", justamente apontando para um ver, um saber além das aparências. O ver e o saber já estavam presentes n’A Hora do Diabo, onde o demônio esclarece: "O homem não difere do animal senão em saber que não o é. É a primeira luz, que não é mais que treva visível. É o começo, porque ver a treva é ter a luz dela. É o fim porque é o saber, pela vista, que se nasceu cego. Assim o animal se torna homem pela ignorância que nele nasce" (1997 p.51). Lembrando a epígrafe do livro retirada do Paradise Lost, ao qual o diabo faz menção: "No light, but rather darkness visible" Bastante socrático, o Fausto dirá "o princípio da ciência é sabermos que ignoramos" (idem).

Enfim, do aparente caráter pessimista e negativista, já que a maioria dos versos escritos pertenceriam ao Primeiro (e desesperado) Fausto, nos fragmentos de tom conclusivo aparece um Fausto pronto para receber a morte porque já não mais sofre acossado pelo gozo fálico da busca de sentidos:

Vejo que delirei.
Nem delirando fui feliz; mas fui-o
Apenas para obter este cansaço
Que não obtive outrora: desejar
A morte enfim. Eis a felicidade
Suprema: recear nem duvidar (...)
Caí e a queda assim me transformou (...)
Vem, dos meus olhos se esvaia
Bem e mal; e pra ti caia
Minha sombra sobre o mundo
Vais-te, Vida. (...) Cego. Oh, Fausto!

E é ao fáustico Goethe, seu daimon influente e parodiado, a quem concede a fala e o reconhecimento pelo que soube fazer por si, destituído do Deus vulgar não derivou no sonho e na loucura demoníacas, mas destes elementos fez sua re-ligião. Seu Fausto transcende o fragmentário escrito sob a égide do pactário.

Do fundo da inconsciência
Da alma sobriamente louca
Tirei poesia e ciência
E não pouca.

Maravilha do inconsciente!
Em sonho, sonhos criei.
E o mundo atônito sente
Como é belo o que lhe dei.

 

Referências

ALONSO, Aristides. Mimese: unidade e fragmentação - Organização e Edição do Primeiro Fausto de Fernando Pessoa. In Terra Roxa e Outras Terras – Revista de Estudos Literários, vol. 1 Londrina, 2002.

BRÉCHON, Robert. Fernando Pessoa – Estranho Estrangeiro. São Paulo e Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.

HARARI, Roberto. O que Acontece no Ato Analítico? - A Experiência da Análise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.

LACAN, Jacques. Le Séminaire – Livre XXIII – Le Sinthome. Paris, Seuil, 1975-6 / 2003.

LACAN, Jacques. O Seminário – Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1992.

LACAN, Jacques. Seminário 22 – RSI, (Inédito), 1974-5.

LAMBOTTE, Marie-Claude. La Mélancolie – Études Cliniques. Paris : Economica / Anthropos, 2007.

MARTINHO, José. Pessoa e a Psicanálise. Porto: Almedina, 2001.

NOGUEIRA, Manuela & AZEVEDO, Maria da Conceição (org.s). Cartas de Amor de Ofélia a Fernando Pessoa, Lisboa: Assírio & Alvim, 1996.

PAZ, Octavio. Fernando Pessoa – O Desconhecido de Si Mesmo. Lisboa : Vega, 1983.

PESSOA, Fernando. A Hora do Diabo. Lisboa: Assírio & Alvim, 1997.

PESSOA, Fernando. Aforismos e Afins. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003

PESSOA, Fernando. Fausto – Tragédia Subjetiva, Organização de Teresa Sobral Cunha. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1991.

PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio 1 – Poemas completos de Alberto Caeiro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1975.

PESSOA, Fernando. O Eu Profundo e Outros Eus. São Paulo: Nova Fronteira, 1980.

RALLO DITCHE, Elisabeth. Le Faust d e Pessoa, in MASSON, Jean-Yves – Faust ou La Mélancolie du Savoir. Paris : Desjonquères, 2003.

SILVA, Manuela Parreira. Realidade e Ficção – Para uma Biografia Epistolar de Fernando Pessoa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 26 - Octubre 2010
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