Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O oficio de psicanalista?
Resposta a um convite
Maria Lucia Baltazar

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A essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavras.
(Lacan, J. Seminário XVI, 1969)

O que me salva do ensino é o ato.
A verdade pode não convencer, o saber passa em ato.
(Lacan, J. Alocução sobre o Ensino, 1970.)

Respondo a um dos sentidos da convocatória, seja, o de convite, que lembra convivas, que lembra banquete. A palavra convocatória existente em português é mais usada em nossa língua como adjetivo. Exceto como termo para a carta jurídica que exige o comparecimento, usamos mais freqüentemente convocação. Que, apesar de ter as mesmas ressonâncias para o português, é mais suave no que concerne ao apelo por dever religioso, jurídico ou de guerra, sentidos quase apagados (resiste ao de convocação ao serviço militar), persistindo o de chamado à reunião, assembléia, para o que também usamos a palavra convite. A palavra convocatória, pela estranheza que me causou, fez-me ir aos dicionários, conferir o saber da língua. E lá se lê de sua raiz "uÿx, uÿcis" [voz] , "cÿnuocatiÿ, ÿucatÿria" [mandato do príncipe, citação], carta oficial, ligada às coisas jurídicas, religiosas e à convocação à guerra. A palavra convite tem equivalências de sentido de solicitação da presença ou participação bem como o seu suporte material, mas de raiz latina "convivere", viver com, chama ao banquete.

A Psicanálise e suas profissões é resposta de um sistema capitalista à pergunta que se ignora? O título é de grande equivocidade, pode referir-se ao analista vindo de diversas formações, ao também analista que ocupa lugares em outras profissões, da psicanálise imiscuída em outras profissões e, por fim, o de uma profissão entre outras.

Cada uma dessas possibilidades leva a questões atuais existentes ou ultrapassadas ou em vias de ultrapassagem no campo freudiano. Quais sejam, a da análise leiga, o da psicanálise e os lugares que ocupou até os anos 80, nos EUA, como pedagogia nas escolas, universidades, no american way of life, nas empresas (recursos humanos), nos grupos, casais, famílias, comunidades, hospitais, consultórios, fenômenos socais e artísticos, enfim, uma onipresença que, ao nosso ver, provocou uma reação forte do estado, das universidades e dos convênios médicos, uma das causas, certamente não a única, do surgimento dessa psiquiatria guiada pelos códigos, espécie de suicídio da psiquiatria que invadiu essa prática em quase todo mundo. Nos Estados Unidos, da peste fizeram vacina e da vacina, veneno. Caso exemplar em que a difusão da psicanálise levou à resistência, nada trouxe de benéfico à sua prática, serviu à resistência e seus efeitos deletérios extrapolaram para o campo vizinho, cujo efeito se fez sentir nesse casamento espúrio do sistema capitalista com os empiristas de plantão.

Outra questão que vem sendo discutida é a de "etificação da psicanálise" e a correlata desta, a de transformar a psicanálise em profissão regida pelas leis estatais e sujeitas aos procons da vida. Esta questão não é nova. Seja talvez renovada a sua aparência e suas determinações, mas Freud já se ocupara dela, preocupado com as questões éticas dessa prática, discutindo as diferenças entre psicanálise e psicoterapias, de cuja leitura restou-me a máxima "cada um tem o analista que merece". Freud conclui que o analisante buscará o analista segundo suas determinações inconscientes, aliás, como sempre, e se estiver determinado a enganar-se e a permanecer no gozo de seu sofrimento, não hesitará na busca de quem com ele compactue, no seu afã de pagar o que não deve e onde não deve.

Com estes comentários prenuncio minha posição frente a essas questões, bem como qual a territorialidade que atribuo à psicanálise.

Tendo sido chamada porque, além de analista, oficiar também a psiquiatria e dedicar-me ao ensino e pesquisa de ambas as práxis, a psicanalítica e a psiquiátrica. É muito possível que ocupe lugar de agente nos 4 discursos estabelecidos por Lacan. Ora, isto não nos autorizamos se não dando contas de nossos fazeres.

 

O analista só autoriza-se de si mesmo, isso é óbvio.
Pouco lhe importa uma garantia(...). Não é com isso que ele opera.
Só existe analista se este desejo [de saber] lhe advier.
(Lacan, J. (1973), Nota Italiana)

A questão começa com o ser analista, tomado como sintoma ou como ser, a questão de ser um oficiante da prática analítica é controversa. Surge um analista no passe em sua análise, momento do ato analítico em que o sujeito ali passa da posição de analisante a analista. Na Nota Italiana, fica claro que neste mesmo movimento em que há a queda do sujeito suposto saber pela constituição do sujeito, representado por um significante, foi-lhe transmitido um "desejo inédito, transmitido aos rebotalhos da douta ignorância". Tendo também lhe sido transmitido aí um modo particular de escuta e de leitura – ler no escutado, operar no discurso sem palavras. A este sujeito, assinalado por uma particularidade - a sua -, ainda lhe faltará uma volta a ser percorrida para que se desenhe seu objeto causa de desejo. O qual repercutirá em seu ser de sujeito, decidirá de seu modo de operar e de sua posição de gozo sexual, masculino ou feminino, uma vez que só há duas posições possíveis de sexuação, embora muitas de erotismo. A um analista não lhe é dado não saber de onde retorna, diz Lacan (1964), em seu Seminário XI, é necessário que a falta esteja no lugar de operar. Simplificando um pouco as operações, eis aí que surge um sujeito identificado ao seu sintoma, vale dizer, um fim de análise. Entendendo-se sintoma aí como esta articulação mínima que resta das operações pelas quais passou. No meu entender, não há ‘sintoma de analista ou de psiquiatra’, há o sintoma particularíssimo deste sujeito que poderá ou não permitir que ocupe estas funções. No entanto, esta passagem de analisante a analista não garante um oficiante desta prática. Pois se a psicanálise fosse uma prática cuja produção seria produzir oficiantes de psicanálise, isto não seria uma práxis no sentido que Lacan emprestou a este termo e tão pouco uma clínica entendida por Lacan como "o real impossível de suportar" (Lacan, 1977). Esta ‘fábrica de analistas’ ou bem teria se transformado em uma prática ideológica, assimilável às em pauta, "reservas de mercado", na melhor das hipóteses, ou uma espécie de iniciação religiosa, o que bem sabemos não se inscreve no horizonte de nossa práxis, como poderão atestar os que aí se propõe a instalar esta função, os quais podem ser chamados os oficiantes da psicanálise.

O que opera em uma análise é o desejo de obter a pura diferença, o assim chamado desejo do analista, que não é desejo de um analista, mas sim uma função. Este desejo pode instaurar o dispositivo analítico para aquele que assim o demandar. Sustentar esta função nem todos os que se produzem no discurso do analista, nem o desejam nem o propõe.

Evidente, é preciso precatar-se de uma possível iatrogênese nesta função, pois todos que por aí passam podem formalizar suas análises e mesmo se interessam pela psicanálise. Lacan dizia que, mais especificamente, uma análise pode revelar-se didática no só-depois, naqueles casos em que, finda, o sujeito aí produzido declara seu desejo de ser um oficiante desta práxis, não tendo nunca separado a análise terapêutica da análise didática. É necessário que aquele que aí responde como semblante do objeto a, não exorbite e não se valha dos seus poderes sugestivos, não conduzindo aos que não é dado, a um lugar então indevido. Saber-fazer-aí com seu sintoma, saber e fazer do analista, sempre se faz acompanhar pelo entusiasmo resultante das paixões transformadas e do desejo de obter a pura diferença; Lacan (1973) menciona ainda na Nota Italiana um desejo de saber, um saber no real, distinto do real da ciência, pois se trata deste particular saber no lugar da verdade.

A frase de Lacan (1967) de que "o analista não se autoriza senão de si mesmo", assim a decifro, como a de alguém que nesta função seja capaz de que seja produzido o ato assim chamado analítico, eis de onde se a(u)toriza. A autoria do ato, sabemos, é do significante, mas apenas o desejo do analista possibilita que o significante venha aí produzi-lo, o que por sua vez só ocorre se houver um que sustente esta função. Reconhecido por alguns outros, certamente, sendo o primeiro aquele que se produziu por este ato.

Justo por ser uma função e não um ser, o analista que aí está é, em outra instância, um sujeito que pode se propor a outros ofícios, agenciando outros discursos. Entendo que só há analista na situação analítica em que uma analisante o constituiu enquanto semblante de seu objeto causa de desejo, em um discurso causado pelo saber no lugar da verdade. Aí e só aí. Com sua família, no concerto, no futebol, no hospital, no laboratório, na reunião de pais, na universidade, circula um sujeito, na melhor das hipóteses. Um sujeito e seu modo de operar, sua sexuação, seu nome e um estilo, e também, na melhor das hipóteses, alguém que pode sustentar e responder por sua existência. Enfim, um falante, não mais um falado, que deixou para sempre o lugar de ‘ventríloquo do Outro’, não sem percalços é bem verdade.

É uma pergunta de Lacan (1969-1970) em O Avesso da Psicanálise o que seria dos demais discursos por ele formulados quando um sujeito constituído em uma análise voltasse para freqüentar os outros discursos de onde fora negado ou forcluído. A pergunta de Lacan é interessante, na medida em que ele questiona não apenas as conseqüências sobre os outros discursos, mas sobre o próprio discurso do analista. Este de que ele disse, cujo saber tem conseqüências, a mais evidente, o próprio sujeito.

Para que haja um analista, o terceiro possível e necessário é o Es que advirá eu, nenhum outro. Portanto não vejo como uma análise poderia estar como profissão. O lugar da psicanálise é estar à margem, este é seu território, mas o que está à margem não se confunde com marginal. Como, é óbvio, não há margem sem o marginado, o topos é uma geometria de relação e não das formas. Se há possibilidade do exercício da psicanálise é porque ela, apesar de estar neste topos, fez-se reconhecer socialmente como de algum valor, foi capaz de fazer um laço social com seu discurso. Os arautos do fim dos tempos já estavam em seus inícios, ela durará o que durar. No meu entender, o discurso do analista não necessariamente não operasse sem que se o soubesse, como diz Lacan (1974) em Televisão; sabê-lo não garante que opere, o que é necessário é que um saber no lugar da verdade possa causá-lo. Exige condições.

Formularia a psicanálise como um ofício e não uma profissão, tal como nas artes liberais medievais. Lacan, antes de formular a psicanálise como práxis, o que o faz no Seminário XI, pensava-a como arte e o analista como um artesão, dentro das artes medievais, pois é uma prática que só se transmite de um a um. Como sabemos, Lacan sempre ultrapassa conservando. Assim, conservando-a como práxis e, depois, como ciência do real, que é exercida como ofício e não como profissão. De novo recorremos aqui ao saber da língua em Ernout e Meillet:

Opifex fait sur opus, ouvrier, artisan opifico opificium officium;
Officium trabalho, execução de uma tarefa ou tarefa a executar;
No direito público, obrigação de uma incumbência;
Filosofia - to aqon "o dever";
‘service rendu’ ;
Sec. XII função.

"Opus" traduz-se por obra, trabalho, ato, atitude e ainda por coisa necessária. No entanto, há quem distinga obra de trabalho. Na obra estaria o sujeito, o trabalho se reduziria à funcionalidade ligada às necessidades de manutenção da vida e mesmo sua perdição no caso do proletário que oferece sua mais valia ou dos técnicos – como peça de engrenagem. Ademais, esse ofício não advém da necessidade e sim da contingência, o que distingue aqui o real em causa.

Assim, ofício parece-me uma palavra justa para o estar do fazer do analista, do século XII recupera-se o sentido de função, seu produto é obra – o sujeito. De beleza quase poética nesse discurso em que por haver um sujeito que se disponha a ocupar o lugar de semblante de objeto para aquele que demanda, o sujeito advenha. Há ainda a referência de um dever, inclui-se aí um estatuto ético, como convém ao inconsciente, do dever, enquanto o devido (da lei) distinto de dívida e da obrigação. E obrigação é a de uma incumbência que ambos contratantes, analista e analisante, justamente se incumbem ainda que e por força dos lugares assimétricos.

A um oficiante de uma psicanálise assim formulada corresponde um lugar que necessita um sujeito que se proponha a essa função, qual seja, ocupar o lugar de semblante de objeto e fazer reinar o desejo de obter a pura diferença. Eis a falta no lugar de operar, talvez se possa dizer um dos nomes do desejo do analista. Para quem ocupa assim este lugar, haverá exigências para freqüentar outros discursos, sob pena de incoerência que revela a inconsistência das posições. No caso de, além da função de analista, agenciar outros discursos, por exemplo, qual psiquiatria poderá oficiar?

A psiquiatria, dita socialmente uma profissão, cujo ato médico é regulado não apenas pela ética médica, advinda do mítico Hipócrates, mas que recentemente recebeu aprovação na Câmara dos Deputados para leis que regulam suas incumbências e atos, e que podem ser processados quando seus atos extrapolam seus códigos. Ainda assim acho que é possível pensá-la como uma techné (ciência, técnica e arte), no sentido hipocrático, oposto à episteme, da ciência dita pura, e dar também a ela um estatuto de ofício e não só de profissão. A ética implicada nessa práxis excede a condição de profissão, é também um ofício. A tradição hipocrática, uma das aceitas pela comunidade médica, permite-me esta posição, mesmo sendo patente que nem toda medicina seja hipocrática, como já tive ocasião de assinalar em outros lugares (Baltazar, 1993, 2005). O médico hipocrático, para preservar sua ética e conseqüentemente sua prática, não pode ser ‘um profissional’. Pratica a douta ignorantia, sua techné não se firma na doxa, opinião, exige argumentos como reza o primeiro aforismo de Hipócrates:

"A vida é curta, a "technè" é longa,
o momento oportuno[kairos] é fugaz,
o empirismo é perigoso,
o arrazoamento (argumentos) é difícil.

É necessário não somente se fazer o devido,
mas ainda ser secundado pelo doente,
pelos que o assistem e pelas circunstâncias externas."
(Hippocrate, 1934)

O método hipocrático está fundado sobre dois princípios complementares: a percepção (aisthesis) e o arrazoamento, argumentos (logismos). Essa percepção não se liga apenas ao que os olhos vêem, mas ao exame da inteligência, supõe um "discernir com critérios" e a partir da interpretação dos dados observáveis.

O médico hipocrático fixa-se menos no nome das enfermidades e mais no estado geral do enfermo, na evolução do processo mórbido nas suas relações com sua natureza, sua cultura, seu meio e sua história. Seu exame profissional dos sintomas o conduz a emitir um prognóstico sobre a evolução do enfermo e decide sobre a possibilidade ou não do tratamento, não promete o que não pode, reconhece seus limites.

Aqui, o sujeito da história não é a doença (enquanto realização de um tipo abstrato), mas o paciente com sua natureza individual e seu organismo humano.

Postulo que ética não é um conjunto de normas que legitima ou legaliza uma prática, como muitas vezes é definida, mas sim uma posição perante o real desta prática, que a determina.

No artigo Psicanálise e Psicofármacos (2005), tivemos ocasião de assinalar as diferenças entre a medicina hipocrática e a que chamamos cnídica, que estiveram sempre presentes na prática médica desde a sua fundação. Uma correspondendo ao discurso do mestre e a outra, por regressão, ao discurso universitário como aponta François Morel, em seu artigo Une fiction de psychiatrie, publicado no número 5 de Acheronta.

Nossas análises convergem em muitos pontos com este autor, exceto o fato de que esses modos discursivos na medicina, ao nosso ver, não surgem a partir do sec.XIX, como Morel atribui às conseqüências da entrada do método anátomo-clínico na prática médica. Diríamos que essas tradições sempre estiveram em toda história da medicina, predominando uma ou outra, conforme as contingências. A importância do reconhecimento dessas tradições é poder perceber suas diferenças. Na tradição hipocrática há um lugar para o sujeito (ainda que não seja o postulado pela psicanálise) e na outra há a sua forclusão. No que chamaríamos psiquiatria cnídica, incluímos a psiquiatria formulada pelos códigos, cujo diagnóstico se faz pela soma de sintomas e suas conseqüentes comorbidades, que procede a redução do corpo à carne; aí não há mente, apenas cérebro; o destino de sua terapêutica é a polifarmácia e a sua psicoterapia é uma espécie de reeducação do autômato cartesiano. E esta espécie de suicídio da psiquiatria só pode florescer porque havia um lugar para ser ocupado neste campo. Em nossa tese de doutorado (1997), em que estudamos os temas de investigação, métodos, os modos das práticas psiquiátricas, enfim a estrutura e conteúdo da produção psiquiátrica na literatura específica, tivemos ocasião de observar que os psiquiatras que se dedicavam a buscar as funções psíquicas em cada milímetro da massa encefálica, que usavam testes emprestados da psicologia para mensurar os sintomas, abraçaram com paixão essa "nova" psiquiatria que trazia com ela não apenas seus manuais, mas seus testes, suas escalas, felizes em encontrar no seu próprio campo seus instrumentos de medida, o que repercutiu nas casas universitárias, nas publicações associadas à indústria farmacêutica. Mas, apesar das aparências, até 1997, fazia barulho, mas não dominava, havendo uma outra psiquiatria que, apesar de não ter caixas de ressonância a seu dispor, com esforço, fazia e se faz tão presente quanto.

Valendo-nos das formulações realizadas por Morel, ensaiamos um quadro estrutural das diferenças discursivas dos discursos que marcam estas tradições e que aqui reproduzimos.

Estas éticas fundam clínicas distintas com distintos modos de operar com e sobre o sintoma, e mesmo de conceber o sintoma. Assim, formularíamos o seguinte quadro em que contemplam as duas tradições psiquiátricas e a psicanálise.

- Aniquilar o sintoma sem decifrá-lo.

- A ética é livrar da morte.

- Decifrar o sintoma para curar, aliviar ou consolar.

- A ética é a conservação da vida e /ou do ser em toda a sua
complexidade e qualidade.

- Reduzir o sintoma como conceito de cura.

- A ética é a do desejo e a do bem-dizer.

Estas clínicas têm diferenças marcantes. No entanto, há diferenças que são inconciliáveis. Não vemos como a clínica psicanalítica poderia se articular com uma prática que forclui o sujeito tal como a esta que chamaríamos de cnídica. Dessa forma, acho possível a um psicanalista ser também psiquiatra, desde que sua escolha recaia por uma psiquiatria que conserve a possibilidade da emergência do sujeito, que tome em conta o simbólico, cuja consciência da linguagem permita distinguir seus conceitos das realidades que ele abarca, livre desta doença dos olhos que é acreditar que o que vê é real, ou que as coisas são como as vejo, que não considere que o real enquanto tal é inapreensível. Uma clínica que forclui o sujeito não só toma por objeto os sujeitos que trata, como não permite aos que a professam a ousadia do sujeito. Estes, assim tomados como objetos nesta prática, a que desejo servem? Quem usufrui de suas almas seqüestradas?

Vemos na clínica psiquiátrica fenomenológico-existecial uma destas possibilidades, aí cobra-se do sujeito a sua responsabilidade, sobretudo por suas escolhas. Fortemente influenciada por Husserl, Jaspers, Heiddeger, Merleau Ponty, Sartre, filósofos que dispensam considerações à cerca de suas relações com as questões da linguagem. É tributária de toda a tradição pineliana, que por sua vez reintroduziu a tradição hipocrática no tratamento dos doentes mentais, e não era outra a tradição dos alienistas do sec XIX, como Esquirol, Morel, Règis, Capgras, Sèglas, Fauret etc. Esta psiquiatria tem memória, tem história, é cuidadosa com seus movimentos epistêmicos, nela surgiram Jaspers, Binswanger (que foi sensível às influências freudianas), Minkowski, Schneider, Kretschemer, Mayer Gross, Lopes Ibor, Lopes de Lerma, Honório Delgado e, mais atualmente, Gérman Berrios e, entre nós, Carol Sonenreich e outros. Mesmo Bleuler, porque não? Há outras, por exemplo, a fundada por Henri Ey e os do grupo Confrontation, atualmente bastante influenciados por Lacan.

Lacan, depois de se valer da psiquiatria fenomenológica, em sua tese de doutorado, não perde ocasião de criticar a compreensão, a explicação, a intencionalidade, Sartre e seu inferno, a liberdade, enfim. No entanto, há o elogio a Merleau Ponty, a quem o Lacan dos inícios tanto se assemelhava e que tantas inspirações lhe trouxe. Esta má vontade de Lacan, não conta com a mesma benevolência que permitiu extrair do automatismo mental de Clérambault a sua cadeia de significantes. No entanto, esfriando a necessidade de diferir, de separar o imaginário do simbólico e do real, outros pontos igualmente profícuos poderão ser obtidos. Por exemplo, que tal pensar a compreensão fenomenológica como respeito ao referente comum e capacidade de metaforizar? Pode ser instrumento importante de distinção entre neuróticos encobertos sob uma patoplastia psicótica que os do DSM não hesitariam em elencar como esquizofrênicos. Apenas um parêntese para demonstrar que pode haver aí uma profícua articulação não suficientemente explorada. Mantendo-se o acordo de que quando um analista "compreende seu analisante" perdeu uma boa ocasião de interpretar.

Lacan (1958), em A Psicanálise verdadeira e a falsa, faz constar de seu ensino seminários, a apresentação clínica e supervisão terapêutica à época ligada ao serviço do Prof. Delay. E, no Ato de Fundação (1971) da Escola Francesa de Psicanálise, a que veio a ser Escola Freudiana de Paris, propõe a Seção de Psicanálise Aplicada (o que significa de terapêutica e clínica médica) que admitiria grupos médicos, analisados ou não, desde que estivessem em condições de contribuir para a experiência analítica. Esperava desse grupo um trabalho crítico de toda a clínica, no aspecto nosológico, nosográfico e terapêutico. Sabe-se que até o fim de seus dias esteve na "Présentation des malades". Há hoje diversos escritos que tentam teorizar esta atividade de Lacan como um ato analítico simultaneamente ligado à cura e ao ensino. Seria necessário um pouco mais para julgar a justeza destas formulações, por exemplo, as intervenções de Lacan que efeitos geraram sobre os sujeitos em questão? Quanto ao ensino, os quantos ali estiveram presentes testemunham sua eficácia.

Lacan nunca fugiu à questão da cura na clínica psicanalítica, redefiniu-a muitas vezes, mantendo uma clara diferença da cura psiquiátrica. Podemos dizer que para Freud e Lacan a psicanálise era uma clínica, e é dentro desta perspectiva que é possível uma articulação entre ambas as clínicas, desde que se guarde seus limites e diferenças. Ao oficiante cabe detectar em que lugar é chamado em cada demanda, e à qual responde, pois não lhe será dado ocupar ambos os lugares ao mesmo tempo. Discursos diferentes fundam diferentes laços sociais, pedem distintos elementos em lugar de agente, têm distintas produções. A diferença é estrutural, não pode ser simplesmente no hospital, psiquiatra e, no consultório, analista. Enquanto que no hospital a falta do gesto de pagamento pode não permitir que se instaure o discurso do analista.

 

A função do dinheiro na análise

"Nesses assuntos de dinheiro, eu sou intratável".
(Lacan respondendo a Pierre Martin(1984))

"O desejo implica a necessidade; é o apetite do espírito,
que é tão natural quanto a fome é para o corpo.
É daí que a maioria das coisas tiram seu valor."
(Nicholas Barbon(1696) apud Martin,P (1984))

O dinheiro, na análise, intervém como um significante mestre, móvel do gesto de pagamento.

Na psicanálise, não importa o quanto [em dinheiro] se paga, mas o quê e como se paga. Vale dizer, que este pagamento possa de fato significar algo da castração, represente a perda de gozo na incidência da lei, tornando possível que se pague o devido onde se deve.

Conforme Pierre Martin

"O dinheiro na transferência analítica mobiliza, no lugar de significante mestre, a elaboração desse fantasma [da morte do pai, pelo qual se tenta denegar a angústia de nascer (naître/ n’être)], é nisto que ele é o poder do Outro, e significante radical da falta. É (está) a este título na lembrança (convocação) [rappel] do pai morto enquanto significante da Lei, reencontro repetitivo da deiscência do ser. Instrumento do ter enquanto que significante de um mercado de saber, ele se abre no fim da análise sobre o nada da demanda". (1984:116)

"Sobre o ‘fundo perdido’ do gozo, todo trabalho, toda produção repete a castração original. Talvez isso reapareça no discurso do analista de transpor a ordem na dimensão humana de sempre, aquela em que, no gozo renunciado, o falo positivado é significante do apelo do ser" (1984:126)

O gesto que articula o ato de pagamento é mediador do corpo e da linguagem, é elemento da transferência, parte faltante à imagem especular, metonímia da castração original. É, na relação analítica, o que porta algo de real. Daí a importância do pagamento em dinheiro e por vez. O pagamento em cheque reveste-se de um valor imaginário e introduz um terceiro indevido na situação analítica, imaginariamente pode converter-se em números que saem de uma conta para outra, no registro do contrato social, sem haver o pagamento real-simbólico no que respeita à castração. Igualmente por aí seria calculável a intromissão dos convênios de saúde, bem como a questão da análise nos serviços públicos. Sabe-se dos efeitos para o "Homem dos lobos" o não ter pagado sua análise com Freud, cuja incidência pode constatar Ruth Mac Brunswick, comentado por Lacan no Seminário I e em Função e Campo da Palavra, como um dos elementos desencadeantes de sua psicose.

Entre outras razões, eis porque a psicanálise não é uma profissão. O analista sabe ou deve saber o que cobra, cabendo ao analisante saber o que paga. Lugar de economia reversa, em que se paga para perder, ganhando-se um certo saber e ainda mais um não-senso, o precioso real.

Lacan respondendo a filósofos sobre a questão do pagamento e se a psicanálise é ou não classista, nos diz "o fato da psicanálise ter que ser paga não implica que ela seja uma terapia classista, mas as duas são tudo o que resta atualmente da ironia". Tenha-se em conta que a ironia aqui referida é uma categoria filosófica que pode ser pensada na psicanálise como um operador que pode convocar o sujeito, usada por Lacan para dirimir cristalizações imaginárias e colocar o sujeito em questão.

Em uma análise opera-se a passagem do dinheiro como objeto fálico ao dinheiro como significante fálico. Do valor fálico na economia libidinal como objeto à positivação do falo enquanto significante. Elemento privilegiado da transferência, em cujas incidências permite observar os diversos deslocamentos da posição do sujeito. Sua economia está para além da circulação de mercadorias, faz parte da estratégia e não da tática na direção da cura; e lembrando Lacan, o analista é mais livre em sua tática do que em sua estratégia, constituindo-se a estratégia de operadores que implantam o dispositivo analítico.

Quando preparávamos este trabalho, topamos com uma tese de doutoramento, cujo título é Proposição de um dispositivo de formação para o psiquiatra clínico de Isidoro Eduardo Americano do Brasil (2001). Psiquiatra e psicanalista, com prática de ensino em ambas as disciplinas, formaliza este dispositivo recorrendo a Lacan. Por motivos semelhantes aos nossos, também vê essas práticas como ofícios.No entanto, utiliza para formação do psiquiatra clínico formulações que incluem o discurso do analista, de maneira rigorosa e com exigência de análise. O inconveniente que vemos nesta proposta é o apagamento das diferenças das duas clínicas. Alguém com mais de trinta anos de trabalho em ambos os campos, membro de uma instituição psicanalítica do Rio de Janeiro e também professor de psiquiatria, e que produz esta tese quase como um testamento de seu longo caminho, como dizem suas palavras: "Esta tese se reveste de um caráter testamentário. É o que suponho ser uma contribuição, um legado, aos nossos contemporâneos e sucessores no ofício, onde dedico minha existência de trabalhador decidido, o campo da doença mental." Percebe-se a posição de alguém que introduziu a questão do sujeito em sua prática psiquiátrica e por um viés que nos parece novo, embora problemático no que tange aos limites e diferenças dos campos. Pois não só se vale do discurso do analista como também de algumas propostas de Lacan para seu ensino tais como o passe e o cartel, utilizados para formalizar o seu "dispositivo de formação para o psiquiatra clínico", que concebe sob a forma de uma transmissão. Deixa clara a sua pretensão: "Quero também encontrar uma condição de possibilidade para a interseção Psicanálise/Psiquiatria onde a Psicanálise ofereça meios à Psiquiatria para a transmissão de seu campo". Foi sua forma original de resolver as aporias que surgem àqueles que exercem ambas as práxis e que não se viu obrigado a entrar na lógica do ou excludente.

Este autor, como nós, observa a proleterizacão do chamado campo da ‘saúde mental’. Em finais dos anos 70 e início dos 80, na esteira das lutas contra a ditadura, vimos surgir os chamados ‘trabalhadores da saúde’, esta espécie de esquerdismo que efetua as políticas da direita de diminuição dos gastos com a ‘saúde mental’. E que, pretextando democracia, anula diferenças por pensá-las como uma questão aritmética, esconde sob algumas de suas boas idéias e práticas a luta pela ‘reserva de mercado’ e a inveja dos que supõe poder. O autor procede a uma crítica desse posicionamento a partir da ‘bela alma’ e da ‘lei do coração’. São interessantes suas observações. Quanto a nós, desde o surgimento dos tais trabalhadores nos perguntamos quem seriam seus patrões, pois sempre pensamos a medicina, e com ela a psiquiatria, como um assunto entre o médico e seu paciente, nisto que chamo ofício no contexto das artes liberais, seja onde seja que se encontrem, nos hospitais públicos ou privados, nos ambulatórios, nos consultórios etc. Enquanto cidadãos, prestamos contas às leis que regulam as profissões, bem como às associações de classe, mas repetimos que entre o médico e seu paciente o que vige é a ética de sua práxis, conforme tivemos ocasião de formular mais acima.Trago aqui este feliz encontro que, tal como os trabalhadores da saúde, que não estão sós, também nós, embora sós, não estamos sós, e bastaria dois, que aliás não se conhecem, para que isto já constituísse um campo. Nele podemos ler os efeitos de um certo real que, enquanto tal, nos questiona.

A psicanálise, enquanto ofício, tem seus modos particulares de transmissão. Sabemos que ela se dá de um a um e o puro discurso do mestre ou o universitário não conseguem transmiti-la, ainda que ela possa deles se valer.

Distingo transmissão, ensino e difusão da psicanálise. Formulo a transmissão como a transmissão do "discurso do analista", o que se daria apenas em uma análise, como já assinalamos anteriormente. Enquanto que seu ensino diz respeito ao "saber do analista" o que pode se dar em várias instâncias; o próprio Lacan nos diz que a melhor forma de transmissão deste saber seria pelos matemas, que sempre implica que alguém possa falar deles. O saber do analista e não mais o discurso do analista, se transmitiria através dos matemas, modo que ele achou mais próprio para escrever o real que a experiência da análise deixa como resto, pois, indo além de Wittgestein, Lacan postula que aquilo que não se pode falar se escreve, não de qualquer modo, mas pelo matemas ou pela poesia.

Esta equivocidade provocada por Lacan pelo uso da palavra transmissão, como sempre, nos faz trabalhar. Que espécie de saber se transmite com a transmissão do discurso do analista? Basta dizer que é um saber ler no escutado? O desejo de saber mencionado por Lacan na Nota aos Italianos? é isto, também, no entanto, por estranho que possa parecer, transmite-se um não-saber, um real, "há saber no real", como nos diz Lacan. A transmissão desse não-saber implica que cada análise seja única, implica também que cada analista ‘reinvente a psicanálise’. É um algo que apenas a passagem pela experiência pode nos tributar. Não se deve ao analista e tão pouco ao analisando, advém do próprio funcionamento do discurso do analista, como uma espécie de resto não simbolizado em cada análise. A conseqüência lógica dessa transmissão foi a instituição do passe, não como nominação, pois se uma análise chegou de fato a seu termo, um sujeito que aí se produziu estará sob o essaim (S1) que o identifica e, ainda que não o determine, lhe permite seguir o percurso de sua análise em que recebe um nome próprio, distinto do nome do pai. Esta nominação lhe permitirá dar sustento à sua existência, responder em nome próprio junto a outros. Nominação esta que o impossibilita de estar sob outras, pois ficaria em dívida ética com o seu desejo e assujeitado a alguma fascinação imaginária, e se um sujeito não tiver como sustentar sua existência não hesitará em fazê-lo justamente, pagando onde não deve com o que não deve.

Não é de nominação e nem de garantia o do que se trata e, sim, de algo que necessita ser simbolizado, não sendo, contudo dirigido ao próprio analista enquanto depositário do sujeito suposto saber, posto em deposição, mas a um espaço que permita uma possível simbolização. Sendo uma das formas possíveis, talvez não a única, a formulado por Alain Didier Weil (2006) como o ‘lugar de insistência’, cuja transferência diz ser não topográfica, mas topológica, lugar efêmero e de uma temporalidade do só-depois, regido por uma transferência para o real. Finalmente, podendo produzir significante(s) novo(s) que responde (m) a este furo no saber(S(ÿ)), jamais simbolizável inteiramente e de uma vez. O crer no inconsciente, amor não narcísico da Bejahung. Considero esta a mais inestimável transmissão. Dela se esperam os significantes novos, a reinvenção da psicanálise que nos compete enquanto analistas.

A transmissão na análise implica um ato que coloca o sujeito inapelavelmente frente a uma lei por ele aceita e que lhe exige uma renúncia, não necessariamente uma perda. A figura mítica do solitário ato de Abrahão que transmite a fé a Isaac, ao levá-lo para o sacrifício a pedido de seu D’us, que lhe exige a renúncia, mas que não efetua a perda impedida pelo anjo a seu mando, pode se oferecer como a imagem mais próxima deste ato de transmissão. É bom notar que o ato consiste em se dispor a cumprir o pedido e não em consumá-lo, pois se Isaac fosse morto se provaria, mas não se transmitiria a fé. E se provaria a fé de um pai assassino, então melancólico, e num Deus igualmente assassino. A transmissão se dá no além das barganhas e trocas imaginárias e mesmo simbólicas, pois é de um real que se trata, um real que possa não ser forcluído, como na psicose. Eis o paradoxo da dialética da transmissão e sua ética do sacrifício do sacrifício. Aqui, Isaac filho-falo, uma vez perdido enquanto tal, ressurge enquanto outro, alteridade ali então futura que recebe, no depois de sua constituição, a transmissão da fé.

Lacan (1973),em L’ Etourdit, postulou que o discurso do analista é justamente aquele capaz de fundar um laço social livre de qualquer necessidade de grupo, no que o efeito de grupo acresce de imaginário ao discurso.

Visando diminuir os efeitos de grupo, para o ensino Lacan formulou dois modos.

Estruturas que buscam outras formas de associar-se que não o grupo, cujas formações imaginárias são peças de resistência ao saber inconsciente. Razão suficiente para a afirmação de Lacan de que os analistas não devem se associar sob a forma de grupo. Sabemos desde Freud que a estrutura de grupo se prende à identificação de um traço do líder, tomado enquanto ideal de eu. Freud asseverava que as instituições se estruturam sob a forma da igreja ou do exército, a primeira pelo Eros desarticulado de Thanatos e a segunda no viés contrário. Freud constituiu a sua no primeiro viés, Eros sem Thanatos, une, mas burocratiza; teriam os lacanianos escolhido o segundo? Sabemos que a pulsão de morte desarticulada de Eros, ao invés de separar e/ou simbolizar, destrói ou leva à ruptura. As contínuas cisões dos grupos lacanianos não sugerem isto?

Ao nosso ver, os analistas, quando se associam, seria mais próprio que o fizessem em torno de seu objeto o a, causa de desejo, no caso o de saber, mais propriamente a vigência do não-saber ou do furo no saber. O que só se torna suportável se se atravessou momentos distintos da castração, o próprio fantasma, e de cujo sujeito acéfalo das pulsões se tenha chegado a este amor não narcísico – "o crer nele" - no inconsciente, após a bem-dita nomeação, o que lhe permite não se desviar desse furo no saber, desse incognoscível que é o real.

A psicanálise assim formulada é não-toda, que está sempre a advir nos desafios e impasses que o real desta clínica lhe coloca. Para Lacan, transmitir a psicanálise é contribuir para o saber analítico em que há sempre um "insabido", sendo o analista aquele que trabalha com sua falta, a saber, o que foi reiterado na sua Carta aos Italianos (1974): "Tudo deve girar em torno dos escritos que estão por vir". Associações em que não interessaria o amor e tampouco o ódio, mas o objeto em causa.

Em uma análise uma das questões, das mais dolorosas, que surge é a da existência, que uma vez não formalizada pode perpetuar um Outro consistente [ e seus representantes] que garanta a existência do um.

Ivete Villalba (2008), em seu artigo Outra razão – Ser Falante formaliza esta possibilidade do suporte à existência do sujeito podendo então prescindir do amor ou do ódio do Outro. Um sujeito, uma vez questionado pela pergunta Quem sou eu?, persiste sem o sentido de sua determinação e sem a significação de sua existência, pois, ao se identificar a um atributo – um significante (o que não é idêntico e sim diferente de si mesmo), perde sua existência ontológica, só podendo recuperá-la no passo de uma das operações descritas que é a da decisão [ é isso, não é isso] da asserção sobre o juízo de existência, dita nominação. Só então poderá aceder à sua existência. Operação que só se torna possível quando se separa a razão da causa, após a emergência do o objeto causa de desejo. Há uma passagem da lógica atributiva para a lógica de predicado, que é a da estrutura do sintoma. Da causa material, o significante que produz e barra o gozo, pela causa formal, que define uma coisa e faz com que ela seja o que é; pela operação da causa eficiente o sujeito separa a representação da percepção e do mundo externo e pela causa final, a questão do gozo, em que o sujeito encontra a razão de seu ser no discurso de que participa, "pois é impossível existir por si mesmo, sem o outro".

A autora elenca a seqüência das operações em uma análise.

Da interrogação e implicação, as perguntas:

Villalba conclui: "Assim, uma análise é terminável quando há saber bem dizer, que é um fazer. Nessa posição, o ser falante poderá voltar-se mais para o que produz, haver-se com a realidade do humano, dizer-se causado por um conceito [objeto causa] e designado por um nome".

Nossa posição é a de que o passe, enquanto nominação (AME, AE, AP, etc.), no interior de uma instituição, pode proporcionar uma ocasião de sutura deste furo e de esquecimento deste real, o que às vezes pode estar sendo necessário a alguém para dar conta de sua existência.

Isidoro Vegh (2005) propõe –se a avançar sobre o terreno da lógica das estruturas coletivas, articulando a questão do próximo, que Lacan define como "a iminência intolerável do gozo" (Lacan, 1969). "Da inconsistência do Outro e do impossível esgotamento do real funda a demanda necessária do outro" (p. 92) e teria um antecedente na demanda incondicional do Outro primordial.

Vegh formaliza algo sobre o amor ao próximo (distinto do semelhante) como o amor imotivado do Outro, em resposta à pergunta de Lacan, "de como um sujeito após a travessia de seu fantasma pode viver a pulsão". Para o autor, este amor ao próximo seria fundado no Real do Outro primordial e se transmite no Real para o sujeito, há uma transmissão no real, na afirmação do ser enquanto vida e que traz o gosto do encontro com o outro. Aponta uma via de como um sujeito canaliza o seu gozo, uma vez percorridos os extremos da experiência de análise, como invoca os outros, os que ele reivindica no lugar de próximo.

O próximo, exemplifica Vegh, é aquele seu amigo que você não vê há anos e quando o vê continua a conversa como se fosse ontem.

Para mim, amigo é aquele que lembra a você quem é você, quando você se esquece, atento a seus descarrilamentos sem dor sem esforço. E mais, você o ouve sem mágoa, sem conflito, agradecido e com alegria. No meu entender, a amizade é talvez a única das relações humanas que exige a ética para existir, pois anda longe de Eros, das paixões .

O amor do próximo é distinto do altruísmo contra cuja agressividade nos adverte Lacan. Segundo Vegh, o próximo proporciona o reencontro com o nosso ser de duas maneiras distintas:

Esse amor não se funda nos méritos do objeto, nada tem a ver com a justiça, o que não quer dizer que prescinda da lei.

Para Vegh, este além da travessia do fantasma, o chamado o sujeito acéfalo da pulsão não seria uma questão para depois da análise e sim seu questionamento deveria se dar no interior do próprio processo analítico. Haveria que se acrescentar uma etapa: que o sujeito investigue como distribui seu gozo, uma vez que sai da fixação de suas formas privilegiadas. Que investigue como canaliza seu gozo, os diferentes modos como invoca os outros. O sujeito deveria estar advertido dessas diferenças, vale dizer entre o que sabe e o gozo que põe limite a este saber. Invocar o outro do melhor modo poderia permiti-lo situar como próximo. Termina dizendo "nossa estrutura não se fecha sem a distribuição do gozo que o outro nos propõe".

Ora por quê trouxemos para o lugar do ensino estas duas últimas referências, sendo que ambas tratam de questões da clínica? Porque detectamos uma sintomática que perambula pelos lugares em que os analistas se reúnem e que pensamos tem algo a ver com estas questões, como deixamos entrever ao comentá-las. Assim, tomar estas questões em consideração pode apontar novos caminhos no que se refere à transmissão e ao ensino da psicanálise. Elementos que trazidos podem otimizar as possibilidades dos analistas poderem se reunir em torno deste que é o objeto da psicanálise por um lado e, por outro, melhor advertidos para invocar os outros em condição de próximos, já que este furo no saber que é da nossa conta exige-nos trabalho.

Quanto à difusão da psicanálise, é auto-explicável, trata-se da entrada da psicanálise no mercado das práticas e dos saberes, ao meu ver, sempre uma faca de dois gumes. Se, por um lado, difunde a psicanálise, é de se perguntar, por outro, o quanto não a dissolve, criando fechamentos e resistências ao discurso do analista.

O mesmo se poderia dizer da assim chamada profissionalização da psicanálise. Penso que, por todos os arrazoamentos acima expostos, fica claro nosso ponto de vista, de que pela especificidade e exigências de implantação deste discurso seria uma impossibilidade para psicanálise. Diríamos de modo sucinto: ou bem psicanálise ou bem profissão.

 

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