Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O divã na rede
Paulo Medeiros

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Dux femina facti
Uma mulher comandou a ação.

Vergilius

Segundo ponderação de Jorge Luis Borges, o problema da literatura popular foi resolvido pouquíssimas vezes, e nunca por autores do povo. Esse problema não se reduz (como crêem alguns) à correta imitação de uma linguagem rústica. Comporta, antes, um jogo duplo: a correta imitação de uma linguagem oral e a obtenção de efeitos literários que não excedam as possibilidades dessa linguagem e que pareçam espontâneos.

O Outro

Como esquecer, com efeito, que Freud manteve constantemente e até o seu fim a exigência primeira dessa qualificação para a formação dos analistas, e que ele designou na universitas litterarum de sempre o lugar ideal para sua instituição? escreveu Jacques Lacan (A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, 1966, p.497).

Uma Psicanálise é uma situação de escuta. Uma escuta que denominamos inconsciente, quando a fala de um repercute em ambos, naquele que fala e no que ouve, numa situa-ção em que a relação entre-dois é intermediada pela palavra em sua dimensão simbólica.

A escuta nesse contexto é a rememoração de algo que não é lembrado de outra maneira. É um contexto no qual as palavras tentam descrever desde a pré-história existente sobre o sujeito que veio a ser, até sua situação atual em confronto com a vida e com a morte, havendo passado pelas impressões registradas quando no interior do corpo materno, e, no exterior, pelos gestos, pela voz, pelo olhar, pela imagem e pela linguagem desse grande Outro, lugar da intermediação primeira entre o sujeito e seu universo real: o simbólico linguageiro.

Desse corpo originário, intermediação primeira do grande Outro, materno - o qual permanecerá para sempre enquanto um obscuro objeto do desejo -, ao grande Outro, Simbólico, permeado pela Cultura, faz-se Psicanálise; do mesmo modo que da Cultura se extrai Literatura, também dela elabora-se a Psicanálise.

Psicanálise é uma forma de ordenamento de um dizer do sujeito descrevendo sua relação com um não-saber sobre seu desejo subjacente a um saber camuflante, numa situação na qual ele é portador, um porta-voz, uma porta a uma outra voz. É um dizer que advém de um Outro lugar, demandando a intermediação de um semelhante, um outro, para retornar, ao lugar de origem, esse Outro lugar. Por isso um psicanalista é procurado como sendo alguém suposto sabedor sobre aquilo ainda a ser dito pelo sujeito, como se esse saber estivesse em outro lugar. O analisante atribui, a priori, ao psicanalista – seu interlocutor – ser um Sujeito-suposto-Saber, constatando a posteriori ser ele mesmo esse sujeito suposto ao saber, condição própria do sujeito face ao inconsciente. Ao psicanalista, então, demanda-se uma palavra de saber antes que de uma escuta outra, diferente. É uma demanda por um saber a ocultar o desejo conduzido pelo sujeito. Por isso, a Psicanálise tem sido denominada de ciência do desejo, sendo, no entanto, sua ciência aliar-se à arte de indicar ser o desejo do sujeito proveniente desse Outro enquanto lugar de inscrições enigmáticas a serem decifradas na fala, como um texto a ser lido num outro sistema linguageiro.

Na Psicanálise, o momento inaugural da formulação teórica do processo de leitura do texto inconsciente, inscrito no sujeito, ocorreu com o escrito de Freud denominado Die Traumdeutung (Sobre a onirologia). Esse texto foi elaborado no contexto de uma situação entre-dois, entre dois sujeitos em sua dimensão imaginária permeada por significações para ambos, sendo essa relação objeto de acurada análise por parte de Freud em sua dimensão simbólica. O que ocorreu na relação entre Freud e seu interlocutor? Essa ocorrência fundamentou o corpo teórico da Psicanálise, sendo impossível precisar seu momento de origem. Mas dela temos testemunho através das Cartas de Freud a Fliess. Um momento inaugural é mítico, pois o tempo lógico do inconsciente prescinde do tempo cronoló-gico formado pela sucessão discursiva; o tempo lógico é um tempo simultâneo, onde o presente é uma atualização passada, repetindo-se, e o futuro é o passado presentificado, sonhado. Assim, a história da Psicanálise, tanto quanto a história individual, pode ser iniciada como nos contos: Era uma vez...

Porém, como em todo campo do saber que surge pretendendo-se científico, existiu uma desco-berta, sua comprovação, e um modelo experimental — um sonho psicanalisado, sonhado na noite de 23 para 24 de julho de 1895. Um sonho no qual Freud realizou seu desejo de demonstrar que os sonhos têm sentido. Sonho que só encontrará seu sentido no contexto da vida daquele que sonhou. Assim, a Psicanálise, enquanto saber, exige do sujeito a pensá-la ser ao mesmo tempo o objeto do seu próprio pensar. No exemplo trazido por Freud seria como um cirurgião a ope-rar-se a si mesmo.

Isso descobriu Freud numa ocorrência transferencial, quando diante de um interlocutor ao qual se revelava nas suas mais recônditas aspirações. E Freud buscou nesse outro um reconheci-mento, não integralmente obtido, para as suas descobertas, apesar de Wilhelm Fliess desenvolver interesses científicos amplos, muito além do seu setor especial, particularmente em Medicina e em Biologia. Fliess era descrito como havendo sido um conversador brilhante e interessante em várias matérias, e ambos haviam recebi-do educação humanística e assim podiam fazer alusões tanto à Literatura clássica quanto à moderna. A formação científica dos dois era bastante parecida, semelhante.

Freud sempre sublinhou o fato de que Fliess, seu privilegiado interlocutor, era um excelente médico, e não deixou de apelar em muitos pontos à [sua] superior cultura científico-naturalista. Tal constatação pode ser observada mesmo em se abstraindo os exageros que uma rela-ção transferencial produz, e, no caso de Freud, que produziu a Psicanálise. Freud, porém, preten-deu indicar a Fliess a necessidade de utilizar-se dos recursos literários de que dispunha, no sentido da formação de um estilo no tratamento das questões humanas diferentes dos conceitos puramente acadêmicos da época. Em 1893, endereçou-lhe um escrito, o Manuscrito C, cujo conteúdo versa sobre algumas apreciações que fez a respeito de um trabalho que Fliess apresentaria num Con-gresso de Medicina interna. Destacamos do escrito em referência a seguinte passagem:

Agora o que diz respeito à questão sexual. Creio que a tal respeito conviria assumir, de certo modo, a atitude de um vendedor literário. Com efeito, expõe a etiologia sexual de uma forma que pressupõe no público um conhecimento que está tão somente latente nele, pois o público sabe, mas age como se de nada soubesse.(Manuscrito C, Correspondência a Fliess, 1893, p.45).

Algo os distinguia, apesar do interesse comum e de uma formação semelhante, e essa dife-rença Freud a ressaltou em sua correspondência com ele, dizendo:

O pensamento de que ambos estamos trabalhando numa mesma obra é, no momento, o que de mais feliz eu poderia conceber. Vejo como empreendes o amplo caminho através da medicina para materializar o teu ideal de origem — a compreensão fisiológica do homem —, da mesma forma como eu acalento secretamente a esperança de alcançar, pela mesma via, meu objetivo original, que é a Filosofia. Tal foi, na verdade, minha ambição primeira, quando não havia contudo chegado a compreender para que me encontrava no mundo (Carta a Fliess, 1º. Jan. de 1896)

Essa carta é o indício do divisor de águas entre ambos, pois Fliess manteria até o fim de sua vida seu interesse médico-biológico, e Freud mergulharia cada vez mais no âmbito psíquico, denominando seu trabalho, na ausência de equivalentes, Metapsicologia, Psicologia Profunda, e, finalmente, Psicanálise, palavra empregada pela primeira vez em francês na Revue Neurologique, em 30 de março de 1896, e em alemão, dois meses depois.

A Psicanálise ocorreu diante desse interlocutor, no decorrer de um período de quase quin-ze anos, e, nesse proceder, Freud autorizou-se como primeiro psicanalista da história sem que seu interlocutor disso se desse conta. No contexto daquela relação e da de seus atendimentos, Freud deu lugar à Psicanálise, enquanto expunha seus desejos, lendo seus sonhos, lançando os alicerces do seu edifício, a Psicanálise. E, para elaborar teoricamente a sua experiência na formulação da Psicanálise, utilizou-se de todos os seus recursos literários. O próprio método de associação livre, adotado por ele, pode ter sido resultado da influência de um texto escrito por um certo Ludwig Börne para servir como uma espécie de manual aos escritores.

Assim, o inconsciente — essa outra ordem de saber no sujeito, por ele não-sabida - encontrou sua explicitação científico-literária, e isso através da linguagem pertencente ao romantismo germânico, associada à vox populi e às suas tradições, em íntima vinculação aos Clássicos da Antigüidade. Num certo sentido, Freud empreendeu uma recuperação da tematização desenvolvida por Schiller, Goethe, Hamnn, Jacobi, Herder, Schleiermacher, Fichte e Schelling, Hordelin e Lenz como os mais significativos.

Freud não foi um literato no sentido de fazer literatura, pois seu escrever concernia à ver-dade enquanto desejo contido no sujeito, e não à estética ou à ética. Mas seu estilo inscreveu-o literária, ética e esteticamente. No dizer de Thomas Mann (Freud, Sigmundo, Obras completas, Imago, vol.1, p.20) a respeito de Totem e Tabu: em sua estrutura e em sua forma literária, uma obra-prima relacionada e vinculada a todos os grandes exemplos de obras ensaísticas alemãs. Essa inscrição literária manteve-se enquanto seu desejo, e ele ressaltou-a ainda em sua juventude, ao escrever para um amigo, informando-lhe sobre o anda-mento dos seus exames de Matura, que denominava jocosamente de martírio:

Aliás, o meu professor me disse — e é a primeira pessoa que ousou dizer-me isso — que eu possuo o que Herder tão sutilmente chama de estilo idiomático, isto é, um estilo ao mesmo tempo correto e característico. Fiquei convenientemente impressionado com esse fato espan-toso, e não hesito em disseminar o feliz acontecimento (...) a você, por exemplo, que até agora provavelmente não havia percebido que se tem correspondido com um estilista alemão. E agora o aconselho, como amigo, não como parte interessada, a conservar minhas cartas — a mandar encaderná-las, a cuidar bem delas ... Nunca se sabe o que pode acontecer (Carta a Emil Fluss, 16.6.1873).

Contava então dezessete anos de idade... Mas, se nessa época já se notabilizara por seu estilo, naturalmente que seu percurso tivera início bem antes. Podemos situá-lo na infância. Relata-nos Ernest Jones:

Possuía um dom con-siderável para línguas, de que mais tarde foi somente um exemplo o ter-se tornado um mestre reconhecido da prosa alemã. Além de sentir-se completamente à vontade no latim e no grego, adquiriu um perfeito conhecimento de francês e de inglês; como acréscimo, aprendeu por si mesmo italiano e espanhol. Evidentemente haviam-lhe ensinado hebraico. Gostava particularmente de inglês, e certa vez confidenciou-me que durante dez anos não lera mais nada senão livros ingleses. (...) Leu repetidas vezes Shakespeare, de cuja obra tomou conhecimento aos oito anos de idade, e mostrava-se sempre pronto a formular uma adequada citação de suas peças. [E, até os treze anos de idade] ele já havia lido os clássi-cos alemães. (Jones, Ernest – Vida e obra de Sigmund Freud, Zahar Editores, RJ, 2ª Edição, 1975, p.56-57).

Édipo Rei, de Sófocles, já era texto conhecido para Freud. No seu exame de grego no Matura, o ponto que caiu para tradução foi o que continha vinte e três versos daquela peça. Enfim, seu apreço pela Literatura era de tal ordem que afirmou: tanto o literato (Dichter) como o médico, ou compreendemos o inconsciente com o mesmo erro, ou com o mesmo acerto. Essa conclusão se processou após sua leitura do texto de Wilhelm Jensen, Gradiva - uma fantasia pompeiana, texto que lhe fora indicado por Jung em 1906. Nesse momento havia também a preo-cupação de Freud pela aproximação de Jung, desejada na medida em que a Psicanálise poderia, por seu intermédio, transpor as fronteiras judaico-vienenses, e espraiar-se por uma Europa mais cristianizada, via Zurique, ao mesmo tempo em que poderia ser alguém que substituísse Fliess como interlocutor. A decepção de Freud foi amarga, pois seu escolhido para tal tarefa veio a mitificar de tal modo a doutrina freudiana que a desnuclearizou, não obstante indicar a Freud outras leituras pertinentes, a exemplo Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber.

Mas Freud já havia caracterizado o processo final de sua transferência através da pluralidade de interlocutores, absorvendo a defecção de Jung através de outros: em 1902, ele convidou qua-tro colegas, para, em sua residência, reunirem-se, com a finalidade de discutirem seus trabalhos. Desde então o movimento psicanalítico tomou o vulto que hoje testemunhamos. Para expansão desse diminuto círculo inicial foi que Freud vislumbrou a intermediação de Jung; este, porém, parece haver confundido uma verdade científica com uma ideologia judaica, atrapalhando-se no seu julgamento cristianizado. Foi, portanto, um alento para Freud a amizade de um outro suíço, pastor protes-tante, Oskar Pfister; este permaneceu ao lado de Freud até o fim, e a ele Freud confiden-ciou:

Eu não sei se você detectou o vínculo secreto entre (meus livros) "Análise Leiga" e "Ilusão " [Futuro de uma Ilusão]. No primeiro eu tentei proteger a Psicanálise dos médicos e, no segundo, dos sacerdotes. Eu gostaria de transmiti-la a uma profissão que ainda não existe, uma profissão de curadores leigos de almas, que não têm de ser médicos, e não deveriam ser sacerdotes (Carta a Oskar Pfister, 25.11.1928).

Assim demarcou a diferença entre Psicanálise e outros campos do conhecimento.

Uma outra característica substitutiva da interlocução transferencial foi o escrever. Freud escreveu até o fim de sua vida. O escrito, se já lhe era característico, passa a ser o seu estilo de interlocução. Seu estilo o inscreveu entre literatos, mas, diferentemente de Jung, por exemplo, não foi para abrandar o impacto de suas descobertas, mas sim para ampliar o rol dos seus interlocutores. E fazer Psicanálise permanece sendo esse diálogo perene com Freud, através da leitura de seus textos, intermedi-ada por nossa própria experiência de análise, no contexto de uma transmissão oral e escrita, no âmbito da Cultura.

A literariedade impõe-se então ao psicanalista enquanto estilo tanto quanto possível o mais próximo do que Freud transmite nos seus textos. Se, fora do universo dos círculos menores das instituições psica-nalíticas, houve alguma forma de reconhecimento da Psicanálise, convém lembrar que não se pode omitir o fato altamente significativo de ter Freud recebido durante toda a sua vida um único prêmio: o prêmio Goethe da cidade de Frankfurt, isto é, um prêmio de Literatura. E, no texto que escreveu para a ocasião, nove anos antes de morrer, e lido por sua filha Anna, Freud esclarece que não há nível de subordinação entre o conhecimento psicanalítico sobre o inconsci-ente e a descrição da alma humana elaborada pelo escritor. Associando aquele discurso ao texto sobre Gradiva, neste Freud registrou que, para o escritor, a alma humana é, na realidade, seu campo mais legítimo, isto é, o literato desde tempos imemoriais tem sido um precursor da ciência e, portanto, também da psicologia científica (1907, p.50).

Em Die Traumdeutung (Sobre a onirologia), o primeiro capítulo é dedicado à literatura concernente aos sonhos. Na análise que Freud fez dessa literatura, encontramos um nome precursor que é o de Aristóteles. Precursor de Freud num duplo sentido: por haver dado um tratamento científico ao fenômeno do sonhar, e, em assim fazendo, inaugurara, num mesmo movimento, uma linha de pen-samento a respeito. A formulação aristotélica pode ser encontrada nos escritos Sobre Psyché, um trabalho que abrange pelo menos nove livros, sendo que, destes, três se referem ao sono e aos sonhos. São textos atuais, sobretudo se pensarmos que livros, quanto mais antigos, melhores, no dizer de Jorge Luis Borges. Freud, ao retomá-los, indica sua inscrição numa linhagem de pen-samento que se quer nos parâmetros das determinantes do modo de pensar ocidental, no sentido hegeliano proposto em Fenomenologia do Espírito (apesar de Freud haver considerado obscura a filosofia hegeliana).

Já Lacan, declarando haver sido seu trabalho compreender o que Freud havia feito, formalizou seu ensino com a inclusão de Hegel, o pensador mais citado por ele - só superado pelo próprio Freud -, e sob o signo do matema lingüístico. De certo modo Lacan beneditinizou a Psicanálise, ampliando a proposição do campo freudiano da universitas litterarum, pois não seria demais pensar a formalização de seu ensino sendo próxima à composição das Sete Artes Liberais: o trivium da gramática, da retórica e da lógica, e o quadrivium da aritmética, da geometria, da astronomia e da música. A topologia aí se incluíria prosseguindo a topografia anatômica inicial, ampliando-a com os recursos da tropologia.

Essa formulação lacaniana foi uma tentativa de demonstração de uma proximidade maior com o objeto da Psicaná-lise, o objeto do desejo, de forma hiperbólica, isto é, enquanto algo impossível de se atingir, por mais próxima que esteja qualquer formulação a seu respeito. A explicitação desse movimento de aproximação do objeto, no caso, objeto do desejo, encontrará sempre na literariedade seu des-dobramento infinito, e, na decodificação de suas representações matemáticas, e de um resto permanecendo, um limite, tanto quanto o cálculo da quadratura, em um cír-culo, de um pi. Em ambos os casos, matemático-topológico(s) ou literário(s), deparamos com o impossível da própria metaforização da vida diante da morte ou esgotabilidade do desejo, mantendo-se, contudo, através de uma longa caminhada simbolizável.

Caminhada. Ainda os pés, do bípede, que, ereto, se destacou da Natureza e formou a Cultura pela via da Sociedade através da palavra, recalcando seus instintos, transformados em pulsões. Dos pés inchados, de Sófocles - tradução possível para Édipo, àquela que reluz ao caminhar - tradução possível para Gradiva, ou Bertgang (de bert ou brecht no alemão e gang escocês, derivado de go em inglês). Em ambos os casos, Freud aplicou o que poderíamos denominar de Psicanálise de textos. No entanto, que deno-minação pode ser dada à leitura de textos pelo viés da Psicanálise? Psicanálise textual? Psicolei-tura? Analeitura? Textanálise?

Independentemente da denominação a ser dada, o modelo será sempre aquele que Freud aplicou a partir da análise dos sonhos, pois a estrutura que lhe deu, e como foi por ele aplicada nos casos clínicos e na leitura de textos, ainda prevalece. No seu modelo notamos que, realizando seu desejo original, seu trabalho foi pendendo muito mais para os nomes relacionados à Literatura e às Artes do que para outras ciências, para efeito de suporte teórico na aplicação prática de sua clínica. É suficiente examinarmos suas obras posteriores, além dos nomes, mais de trezentos, citados na bibliografia sobre os sonhos. Nem por isso afastou-se dos ditames do rigor científico, acrescendo-o com a atenção dada à Filo-logia, à Antropologia, à Arqueologia, à Mitologia, além da oralidade das tradições populares. Basta citarmos alguns textos, escolhidos ao acaso de nossas associações para verificarmos suas fontes: Os Chistes e sua relação com o Inconsciente (1905), escrito simultâneo aos Três Ensaios sobre Sexualidade; Psicopatologia da Vida Quotidiana (1901), que tanto o popularizou; Leonardo da Vinci (1910); A Significação Antitética das Palavras (1910); Os Sonhos no Folclore (1911). Sobre Shakespeare dedicou várias passagens, mas, além de Hamlet, citado em análise em Sobre o sentido dos sonhos, um outro trabalho baseado no Mercador de Veneza merece destaque: O Tema dos três Escrínios (1913); Grim foi alvo de sua atenção em A Ocorrência, em Sonhos, de Material Oriundo de Contos de Fadas (1913); Goethe foi apreciado em Uma Recordação de Infância de Dichtung und Wahrheit (1917); As Resistências à Psicanálise (1924) refere-se a Schopenhauer; Dostoievsky e o Parricídio (1924) resume uma temática daquele autor; Moisés e o Monoteísmo, como vimos, é uma das mais acuradas análises do Pentateuco e da origem do povo judeu, alinhando-se ao nível de eminentes teólogos. Há ainda Thomas Mann, Stefan Zweig e Einstein, dentre outros, como seus correspondentes.

Desse modo, Psicanálise é outra coisa na abordagem do sintoma, não o tendo por objeto orgânico ou psicológico, mas psíquico, isto é, pertencente à alma humana:

Psychê é uma pala-vra grega que pode ser traduzida em alemão por alma. Assim, tratamento psíquico signi-fica tratamento da alma. Pode-se, portanto, pensar que esteja subentendido: tratamento dos fenômenos patológicos da vida da alma. Este, contudo, não é o significado desta palavra. Tratamento psíquico quer dizer muito mais: tratamento que se inicia na alma, tra-tamento — dos distúrbios da alma ou do corpo — com medidas que atuam em primeiro lugar e imediatamente sobre a alma do homem. (Freud, Sigmund, 1905, p.297).

Isso acentuou Freud, situando-o em outro nível, e indicando-o, antes de mais nada, como palavra. Palavras que, no campo teórico, se já pelas traduções são traídas, o são também pelas ideologias. Basta frisar que a expressão Die Seele, em toda a obra de Freud, foi traduzida por mente. Acresçamos a tais dificuldades mais uma, que foi uma observação de Freud (Onitologia, 1909, p.106-7) de que os sonhos se acham tão intimamente relacionados com a expressão lingüística, que Ferenczi (1910) corretamente observou que todo idioma possui sua própria linguagem onírica.

Na linguagem, a particularidade que as sutilezas sonoras da voz propícia e às quais o psicanalista atenta em sua escuta perpassa o falante. O falante comporta-se como se estivesse lendo um texto em voz alta, como se existissem, pelo menos, seis personagens à procura de um autor, autor que, ao fim e ao cabo, é um Outro, escrito , de onde, ambos, analisante e psicanalista, pretendem ouvir o que foi dito antes.

Em relação à escrita de Freud, infelizmente, já o destacamos acima, as sutilezas no seu estilo nos são inacessíveis por conta do descaso literário com que a sua obra nos foi traduzida. Uma tradução feita por não-literatos. Os exemplos são inúmeros e já têm sido divulgados. A importância de se destacar tais pontos deve-se ao fato de a literalidade de Freud ter sido seu utensílio de trabalho, artesanal, que, enquanto artista, criou e usou para moldar a sua ciência; serviu para ultrapassar os limites impostos pelo discurso médico-acadêmico. Através de seu estilo pôde ir além do que a ciência e a técnica da época dispunham, mesmo porque, por sua própria natureza, à Psicanálise podemos atribuir, para seu ensino e transmissão, todo um valor ao estilo.

A palavra incontida, aprisionada ao orgânico pelo sintoma, encontrou ressonância em seus ouvidos. Até então o sintoma impunha-se ao corpo; a partir de então encontrou sua via eva-nescente na fala-e-na-escuta, permitindo-lhe acesso ao Simbólico. As representações inconscientes passaram a ser faladas, escritas e lidas; os sonhos se transformaram em textos para leitura. Esse é o sentido para a escrita e para a leitura no trabalho psicanalítico. Ler-escrever é a forma pela qual o psicanalista traduz a sua escuta, de aprendizado interminável e de reconhecimento da inesgotabi-lidade do texto inconsciente; lê o ouvido, tentando escrever o dito de Outro lugar. Qualquer grau de saber do psicanalista lhe serve para indicar seu gradus de não-saber sobre o falado pelo sujeito, sobre o sujeito assujeitado a uma historiografia impres-sa no corpo.

O estilo de Freud, isto é, sua literalidade, foi seu instrumental para recuperar uma certa tradição abandonada em função de um cientificismo acadêmico. O preço que pagou foi a marginalização universitária. Ao aliar-se ao romantismo germânico, Freud não separou suas des-cobertas científicas de sua tradição cultural. Desde então a Psicanálise está a oscilar entre o sinto-ma per se, como deseja o discurso médico, à compreensão conforme propõe o discurso psicoló-gico, ou a compor-se enquanto palavra-a-ser-dita na sua função de fala no sujeito, como propõe a Psicanálise. O sintoma é a forma pela qual o sujeito tenta realizar, por esse ato, um desejo não reconhecido através da palavra. A grande tentação, diabólica, para o psicanalista, continua sendo a de querer calar o sintoma, assim como o médico, que, no seu desejo de curar o sujeito-suposto-curável, acaba drogando o desejo, tanto quanto o sacerdote tenta, com a ilusão da fé, aplacar os demônios da alma, ou como o cientista tenta apropriar-se do objeto de estudo e o filósofo, com os artifícios da lógica, tenta ordenar a razão. No entanto, aí, nesse lugar de falta, falta-a-falar, compete ao psicanalista salvaguardar esse lugar - fal(t)ante - e que deverá permanecer como um folha em branco, onde o sujeito possa inscrever sua história e seu mito; o psicanalista suspende o gesto, não o completa, como se parasse sua mão numa pausa entre uma nota e outra, para que permaneça a pausa e haja, de sua parte, silêncio. Silêncio de morte, diante do qual se narram inventivas histórias de vida, tal qual Schahrazade, que evitou o termo de sua vida durante mil e uma narrativas por mil noites e uma – como o quer assim traduzido Jorge Luis Borges - em mil ses-sões e uma... Ou como disse Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas: Assim, o senhor já me compraz. Agora, pelo jeito de ficar calado alto, eu vejo que o senhor me divulga.

 

A Outra do Outro

Será que fez uma confissão completa?

(Freud)

Numa situação psicanalítica, o psicanalista é o auditor de uma fala falada através do sujeito, inconsciente, que se quer falada. Para tanto, tal fala se oferece à intervenção da palavra proveniente da articulação de suas próprias associações diante de um interlocutor suposto sabedor desse dito. O inconsciente vai assim tornando-se, no decurso de uma análise, em um texto parcialmente passível de leitura por ambos, psicanalisante e psicanalista. Não será uma mesma leitura, pois não se tratará de um mesmo texto. O psicanalisante lê-lo-á de uma forma e o psicanalista de outra, de acordo com as particularidades produzidas pelo desejo articulado na combinatória dos significantes de cada um. Uma leitura que se efetua sobre o que é fal(h)ado.

Na literatura deparamos com um texto escrito, isto é, com os sons e senões (pontuação, entonação, concordância etc.) das palavras fixados na materialidade pictográfica. O interlocutor da escrita é o leitor, além do próprio escritor, tanto quanto o da fala, em análise, é o psicanalista, mas também o falante. De qualquer forma, um texto escrito interfere no sujeito-leitor, não tanto, supomos, quanto à interferência da fala em ambos, psicanalista e psicanalisante. Existe, portanto, uma diferença de leitura e de escritura entre o texto literário e o texto psicanalítico, mesmo em se considerando a proximidade da Literatura à Psicanálise. A Psicanálise distingue o texto de uma sessão psicanalítica e o texto resultante de uma tentativa de teorização a respeito, mantendo-se, no entanto, ambos, clínicos, seja a elaboração do psicanalista, seja a construção do psicanalisante reinventando sua história, daí a práxis psicanalítica, cujo resultado teórico é a formulação universal do estritamente singular; não do particular, mas do singular. A palavra inverte seu sentido, sua direção de leitura, se ouvida pelo psicanalista, ou se elaborada pelo escritor, pois para o psicanalista a palavra é som e imagem que se querem em letra, enquanto para o escritor ela é letra que se quer em imagem. Existe de comum entre o trabalho de ambos a tentativa de revelar um texto, escrevendo-o, sendo a diferença a indagação sobre o lugar de proveniência do texto, onde ele se articula, correspondendo na Psicanálise à constatação da articulação do desejo nesse Outro lugar, sob a tríade simbólico, imaginário e real e sua relação com o sujeito falante. À Literatura a Psicanálise indaga sobre essa função na escrita e sua inscrição na letra.

Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, é um texto inspirador também para a Psicanálise, por ilustrar, numa escrita, uma situação comparável à analítica, ao descrever a relação narrativa estabelecida entre a fala e a escuta, permitindo-nos, inclusive, a partir de outro texto do autor, situar tal relação num lugar outro, na terceira margem de um rio: a palavra. Ressalta a particularidade de indicar os elementos da fala, da escuta, da escrita e da leitura de forma muito próxima à pretendida pela Psicanálise no uso dos mesmos elementos. E o autor o faz através da simulação de um interlocutor, uma personagem inominada em todo o texto, mas referida em quase todas as páginas do livro. É o interlocutor de uma narrativa oral, transcrevendo-a a posteriori, formando uma escrita, supomos, para o leitor. A narrativa se d irige ao leitor, intermediada pelo interlocutor-escritor. O leitor aí está enquanto um Outro para o escritor, na forma incógnita de quem o lerá. É a partir do leitor que o escritor é sujeito à interrogação do ouvido, esse Outro ocupando, na escrita, o lugar de tal interlocução, constituindo-se a escrita um lugar. Se a escuta do interlocutor promove a articulação do discurso do sujeito que fala, então há resposta afirmativa no desdobramento da fala. No texto de Guimarães Rosa, a articulação pretendida parece ser a da Língua na fala, para receber dimensões esquecidas dessa Língua, recriando-a a partir dos seus registros mais arcaicos. É uma tentativa histórica, que é o que a Narrativa nos indica, de buscar no Sertão a epopéia da Língua descrita numa fala, enquanto sujeita à fala, corporificada no falante Riobaldo. Riobaldo é escritura , isto é, ponto de convergência resultante da relação entre a Língua e o estilo, do que o escritor tenta dar conta. Já para o psicanalista, a escritura é a tentativa de dar conta, no estilo, das dimensões da fala: simbólica, imaginária e real.

Real, se assim intentarmos resumir, o que não é tão simples, refere-se, na Psicanálise, à realidade inconsciente, psíquica, numa dimensão na qual há uma suspensão de toda e qualquer possibilidade de algo ser falado, mas que sustém, ao redor do impossível de ser dito, toda uma fala. Resta a letra, a instância da linguagem materializável, linguagem proveniente da articulação do simbólico, onde o sujeito se encontra inserido num universo linguageiro. Mesmo não sendo suficiente reduzir, em oposição, real e realidade, para se designar a realidade psíquica, provisoriamente, poderíamos sugerir como real tudo o que é potencialmente linguagem, para além da realidade, sendo esta imaginária, resistente ao universo simbólico.

Diante da dimensão real na fala, o Outro não existe enquanto possibilidade de um conjunto completo que contenha todos os elementos da Língua ou da linguagem, mas é um dos elementos de sua estrutura. Isso indica também não existir um discurso completo sobre o sujeito em nenhum dos discursos que formam disciplinas, incluindo-se aí a própria Psicanálise. Na Psicanálise, o Outro teria a função de unir o desejo à Lei: Lei Nome-do-Pai, enquanto ordenamento do Simbólico na articulação da cadeia de significantes que apreende o sujeito. E, na Literatura, qual é a função do Outro? Uma leitura do texto Grande Sertão: Veredas parece indicar o Outro como referência ao universo simbólico enquanto sendo toda nomeação possível a tudo o que ocorre, sendo tudo o que ocorre no mundo campo da realidade física e psíquica enquanto descritiva dos estados da alma. O Outro entendido então como escrituração possível do real simbólico, a realidade nomeável – o Sertão, o Sertão rosiano, onde tudo o que ocorre na natureza e no humano é nomeado num simbólico da Cultura. No texto, contudo, não há a nomeação do interlocutor, salvo por alusões à sua função, ressaltando-o, na medida em que se trata de um texto no qual a nomeação é imprescindível. Se o interlocutor possibilita a Narrativa, além de transcrevê-la, passando-a de oral para escrita, não sendo nomeado, isso indica pelo menos um elemento não-nomeável, por mais extensa e completa que seja a possibilidade de nomeação. Alguma coisa resta para ser nomeada. O interlocutor, aquele que ouve e escreverá, é o elemento mediador a permitir a simbolização pela fala, como algo restando a ser nomeado.

A Narrativa é determinada por fatos; é fática e fatídica. É o fato que se faz fala: No princípio, foi o Ato, lembra-nos Freud, citando Goethe, invertendo o escrito do Evangelista: No princípio era a Palavra. O inverso não é o contrário, é o reverso. A palavra é um ato, humano, tanto quanto um ato condensa todo um discurso. Ações? O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo, afirma o narrador do texto. E a fala desse narrador é uma tentativa de recuperação do ato originário, se entendermos por rememoração a tentativa de dar sentido aos fatos através da palavra, a tentativa de recuperar o arcaico referente à coisa primeira designada, e as múltiplas referências na mesma palavra designante. Por exemplo, a letra O de Outro e a palavra Outro. Se disséssemos ao narrador do texto que o Outro não existe, seria possível que suspirasse aliviado, mas possivelmente indagar-se-ia sobre com quem então teria pactuado nas Veredas-Mortas, pois o Outro é a grande indagação do personagem narrador-narrado em Grande Sertão: Veredas. O Outro é, para ele, o Diabo, O-Muito-Sério, o Oculto, O-Que-Não-Existe, O-Que-Não-Ri, O-Que-Não-Fala, O-Que-Nunca-Se-Ri. Enfim, a simples menção da letra O, maiúscularizada através do tom de voz ou do contexto, seria suficiente para indicar, no mínimo, oito referências a uma mesma palavra. Só a letra O. Mas no total Riobaldo estaria associando um conjunto composto por noventa e seis nomes referentes ao mesmo ente, distribuídos por quase todas as letras do alfabeto.

A possibilidade de se acompanhar ao máximo os deslizamentos propiciados pelo engendramento dos significantes em suas múltiplas articulações num outro Outro, o da Psicanálise, conduz à simbolização numa situação de análise. E a simbolização bordeja o real, anda ao redor de. No caso do Sertão, o simbolizado é o mundo, isto é, tudo o que ocorreu ao narrador. E simbolização nos conduz a transpor, comparar, considerar, conferir, ponderar, encontrar, inverter. Assim, poderíamos pensar em simbolizar enquanto algo sendo transposto para, mas ao mesmo tempo em que transpõe, reverte e espalha, dispersa, ajudando-nos a compreender o fenômeno clínico por excelência para a psicanálise: a transferência. Riobaldo parece corroborar tal sentido: O senhor, mire e veja, o senhor: a verdade instantânea dum fato, a gente vai departir, e ninguém crê. Acham que é um falso narrar. (...) O fato fazia fato. Nada mais. A palavra, em narrativa, aí está para recriar o fato, departindo-o, para trazer à lembrança a história contida nos fatos, mas dispersa:

Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas — de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas as horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.

Dentre todos os fatos um se destaca como tendo sido possível início da ação, isto é, da história: Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro, diz-nos Riobaldo. Esse fato é o acontecimento sobre o qual se desenvolve toda a magia posterior da narrativa, conduzindo o viver de Riobaldo, viver perigoso:

Aí pois, de repente, vi um menino (...) eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. (...) Ali estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola baixada, e se ria para mim. Não se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele.

A evocação desse menino, chamado Reinaldo, sendo o próprio narrador nominado Riobaldo, já nos indica uma proximidade sonora entre os nomes, e os sons das palavras se constituem, em última análise, em nossa escuta, isto é, a palavra em sua não materialidade escrita, mas em sua origem de existência. Se é entre os sons de palavras e imagens correspondentes, formadas por tais sons, que nos tornamos sujeito, o suporte dessa representabilidade está indicado no menino, isto é, no infantil. Nem significantes somos, mas complexo intervalo entre significantes, lugar não de sentido, mas de direção, como vetor, e é o infantil que fixa essa posição ou esse lugar de articulação. No infantil, tempo mítico, está o tempo lógico, instalando-se, no cronológico, como campo próprio para repetição. E o encontro com aquele menino repetir-se-á mais tarde, quando, só então, saberá que aquele Menino do Porto se chamava Reinaldo. Já estão ambos crescidos, adultos para a luta, e foi Reinaldo quem afiançou o valimento de Riobaldo para pertencer ao pessoal brigal de Joca Ramiro. Joca Ramiro, J. R. (João Rosa?).

Se a narrativa de Riobaldo é um vaivém, tal qual os movimentos de sua rede e a instabilidade de seu nome, ele esclarece: Comigo, as coisas não têm hoje e ant'ontem amanhã: é sempre. (...) E a gente, isso sei, às vezes é só feito menino. O fato inesquecível, que foi o encontro com o meninoNão me esqueci de nada, o senhor vê. Aquele menino, como eu ia poder deslembrar? -, transforma-se em sonhação, como tudo o que acontece a ambos no Sertão. O sonho é a lembrança, a lembrança daquele Menino, o mesmo que tempos depois irá indagar a Riobaldo se ele tem saudade de seu tempo de menino. É de um tempo o de que se trata, o tempo da lembrança, da memória instaurada pela palavra associada, temporizada pela narrativa, transformada em histórico, cronológico, através da sucessividade da fala. O cronológico recria, pelo imaginário infantil, o registro lógico. O fato é impossível de exatidão descritiva factual. Para interpretar o fato, há toda uma inventiva pessoal, imaginária, permitida pelo universo simbólico, o da palavra. O fato passa a ser lembrança, lembrança que tenta se reportar a algo perdido; perda que instaura a saudade, isto é, o desejo de recuperação de algo: Para mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Além do que toda saudade é uma espécie de velhice. A saudade indica uma distância entre o falado associado como lembrança sob o registro do desejo; a fala de outrem contida no Outro quer ser falada pelo sujeito nessa composição.

O Menino, fato primeiro, Reinaldo, sabe sobre quem é o seu pai, mas não conheceu sua mãe; Riobaldo, o narrante, fala de sua mãe feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer, mas o pai nunca soube autorizado o nome dele. Será a herança dos bens do padrinho que se constituirá em um reconhecimento de filiação por parte desse padrinho. As posições que invertem na ordem da filiação. Um vê o outro como estando sendo visto pelo outro, e ambos conduzem uma indagação quanto à filiação. Riobaldo-Reinaldo são desdobramentos a partir de um mesmo ponto, ponto divisível, encontrando no imaginário campo próprio e necessário da alienação de uma separação fundante. Eu era dois, diversos? O que não entendo hoje, naquele tempo não sabia. Esse Menino, Reinaldo, encanto de Riobaldo, é Diadorim. Diadorim, nome segredo entre os dois. Código. Palavra-senha que oculta durante todo o tempo uma relação e um corpo, cuja verdadeira natureza só será revelada com a morte, para desespero de Riobaldo, pois ao segredo do nome se associa o segredo do corpo, que era um escondido.

O Menino, adulto, transformar-se-á no mais aguerrido combatente do bando, conduzindo Riobaldo para a luta final contra o Hermógenes — sinônimo da encarnação do próprio Demo — ; era uma menina, feita mulher, seguidora do pai, Joca Ramiro, líder inconteste nos Gerais do Grande Sertão, assassinado pelo Hermógenes. A campanha de luta, o móvel de toda a trama guerreira, é o desejo de morte, desejo de vingança pela morte do pai. Reinaldo/Diadorim é a filha a vingar a morte do pai, identificação cujo ideal lhe custará a própria vida. É o seu desejo que conduz o outro, Riobaldo, apesar de ser este o chefe do bando, ocupando um lugar de pai sem saber sobre seu próprio pai. E Riobaldo martiriza-se por um desejo que não entende:

Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também — mas Diadorim é a minha neblina ... (...) As vontades da minha pessoa estavam entregues a Diadorim. (...) o que compunha minha opinião era que eu, às loucas, gostasse de Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível dele gostar como queria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele.

Revelar, por antecipação da leitura, a natureza feminina de Diadorim é retirar o conteúdo-mistério que envolve toda a trama. O mistério é o feminino, o que cria e recria a epopéia: a palavra falada na narrativa. Diadorim é metáfora, palavra-segredo, só pronunciada entre Riobaldo e Reinaldo. O Diá pode ser abreviatura de Diabo, o Outro: Diadorim suscita uma relação diabólica em seu desejo de vingança, mas seu nome verdadeiro vem de Deus: Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins, que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor. E seu nome, tanto quanto seu corpo, só são revelados com a morte, morte encontrada na realização do desejo do pai.

Após testemunhar a morte de Diadorim, ser do seu querer, Riobaldo, desnorteado e enlouquecido, não só pela morte, mas por aquilo por ela revelado, não será mais um guerreiro, mas um cancioneiro. Cancioneiro dos feitos que o fizeram ser o que foi. Feitos narrados no range-rede, rede onde o corpo oscila sem se mover, permitindo o especular idéias:

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp'ro, não fantasêia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range-rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O Diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. (...) "Sossego traz desejos".

Desejos de um sujeito cujo nome oscila tanto quanto sua rede, pois baldo quer dizer, em sua origem árabe, inútil; no português antigo, alguém sem modo de vida, e permanece significando falto, falho, carecido, carente. Rio baldo quer dizer rio sem rumo. E, além do nome Riobaldo, era também cognominado de Tatarana e Urutu Branco.

A rede de Riobaldo, de onde passa a especular idéias, lembra-nos um divã, se levarmos em conta o contexto da situação, tanto quanto a sua narrativa pode ser comparada a uma rememoração em busca da verdade, feita para uma testemunha não de seus feitos, mas de sua palavra, palavra que os recria. Se os fatos se esgotam no momento de sua ocorrência, deles permanece o enigma de sua tradução ou interpretação. Interpretação para o narrado sobre o havido é a solicitação de Riobaldo ao seu interlocutor:

Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Apre, o que eu ia dizendo, no meio do som de minha voz, era o que o umbigo de minha idéia, aos ligeiros pouquinhos, manso me ensinava. E era o traçado. Conforme foi. Eu conto; o senhor me ponha ponto.

O passado mantém sinais enquanto registros a requererem leitura, uma leitura difícil, mas exigida no âmbito da palavra, requerida pela própria narrativa: Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E, para Riobaldo, não se trata de qualquer ouvinte a lhe permitir compor sua narrativa, pois ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Nem mesmo o protagonista, proto-agonista, sabe por exato sobre sua fala, sobre o acontecido:

Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.

Assim, o texto narrado está a solicitar fineza de atenção. E o que mais é preciso? A narrativa é desconcertante numa primeira leitura, pois a Língua se apresenta numa fala diferente. Ela ocorre entre o universal — a língua —, que é a do Sertão, universo simbólico, e o particular — a fala — de ser tão jagunço nesse Sertão. Sertão que é do tamanho do mundo, e onde, miúdo a miúdo, caso o senhor queira, dou descrição, diz o jagunço Riobaldo. Há uma dimensão próxima de transmitir uma certa impressão onírica, quando tem horas em que penso que a gente carecia, de repente, de acordar de alguma espécie de encanto. As pessoas, e as coisas, não são de verdade!.

O narrador é o lugar onde se trava a luta epopéica de um não-saber. É o narrador querendo ser o que é narrado. Sujeito ao que diz, querendo ser o sujeito do dito, sua posição narrativa o coloca sempre como um ser-de-falta, mesmo sendo um guerreiro vencedor, o herói do texto, numa dimensão moral na qual busca ser aquilo que diz e dizer aquilo que é, e por isso mesmo é que a escrita pode estar condenada ao fracasso, na medida em que nunca a palavra superará a distância entre o existir e o pensar ou falar a existência. Nesse sentido, nem a experiência literária nem a experiência psicanalítica eliminarão a hiância do ser, antes a indicarão. O viver, para Riobaldo, é muito perigoso, pois seu viver foi conduzido por um não-saber sobre seu desejo por Diadorim, e por uma indagação sobre o Outro. Viver é muito perigoso, indicando: cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo!. Diante da mãe morte, convencido de que a morte de cada um já está em edital, o medo, o medo não é de ver a morte, mas de ver nascimento. Medo mistério.

A Narrativa é o Lógos que abrange tudo o que da natureza sobre o humano o formou, e tudo o que do humano sobre a natureza interferiu. É o Sertão, o Simbólico, o universo da Palavra. Os gregos, perenes, denominavam Phýsis e Éthos a tudo o que Lógos abrangia. Uma Teoria da Natureza e uma Teoria dos Costumes poderiam ser formalizadas por Lógos. O Sertão permite que a Narrativa, Lógos, descreva a Natureza, Phýsis, e elabore os Costumes, Éthos. Sabe o senhor? sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. O Sertão recebe várias descrições: a de Sertão, lugar, estando em toda parte, universal; a de pensamento, é dentro da gente; a de tempo, sendo a-temporal, o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera, onde me vinha idéia de tudo só ser o passado no futuro. Imaginei sonhos. Me lembrei do não-saber. É terra de sonhos e de um não-saber em feitos querendo ser narrado. Narrado para ser escrito; escrito heróico, histórico, erótico. Escrito enquanto algo perdurável, por ser da fala sobre um desejo impossível de realização: Diadorim. Escrito a perenizar o ato, superando-o, pois se a ação de escrever tem um fim, o escrito não. O escrever é uma ação que visa à permanência do escrito, relacionando-se à angústia de morte, própria ao ato de criação da vida. A escrita é sexualizada, trava uma luta de vida e morte, sendo por isso dramática. A letra pretende-se escrita, gerando um sentido, e conduz o sujeito ao outro, pela linguagem. Uma linguagem proveniente da ordem simbólica, localizando o sujeito enquanto feminino ou masculino: Riobaldo-Reinaldo/Diadorim, mas a partir do feminino da Língua falada e nomeadora enquanto ato de criação. O escrito, masculino, pretende ser guardião da narrativa, da palavra falada.

O interlocutor está aí para ser passagem, vereda, entre o ouvido — a fala — e o lido — a escritura. Ele intervém no discurso, apesar de não haver nenhuma de suas palavras registradas (lembra-nos as cartas de Fliess a Freud, que desconhecemos, perderam-se). No entanto, as referências ao interlocutor são inúmeras: o senhor ouviu, o senhor ri, o senhor tolere, o senhor sabe, o senhor pergunte, o senhor estude, o senhor entenda, ao senhor lhe digo, sei que é bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos. Este senhor é referido em quase todas as páginas, sendo solicitado a ouvir e esclarecer a narrativa:

O senhor aprova? Me declare tudo, franco — é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido; Mas, não diga que o senhor, assissado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela (...) Lhe agradeço; Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração.

Este senhor intenta deixá-lo para prosseguir viagem em sua andança pelos Gerais, mas Riobaldo o detém:

Eh, que se vai? Já Já? É que não. Hoje, não. Amanhã, não. Não consinto. O senhor me desculpe, mas em empenho de minha amizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta de-manhã-cedo, o senhor querendo ir, então vai, mesmo me deixa sentindo sua falta. Mas, hoje ou amanhã, não. Visita, aqui em casa, comigo, é por três dias!

Na velhice, feito fazendeiro, em terras herdadas do pai, fica no range-rede, por três dias, a contar sua história:

O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, talvez, por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que vem ouve e logo longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?

A função desse senhor parece ser evocativa, permitindo ao sujeito compor sua história, isto é, (re)lembrar o dito a conduzi-lo. E o protagonista o faz no conto:

Falo por palavras tortas. Conto minha vida, que não entendi. O senhor é homem muito ladino, de instruída sensatez. Mas não se avexe, não queira chuva em mês de agosto. Já conto, já venho — falar no assunto que o senhor está de mim esperando. E escute.

O que promove a narrativa, oral, é a possibilidade da escuta do interlocutor, transcrevendo-a, dirigindo-se ao leitor, ou seja, à sua leitura. A narrativa escrita é obtida da narrativa oral, tanto quanto a narrativa oral advém dos feitos, de uma epopéia. E epos, em grego, querendo dizer usar a palavra certa. É a tentativa de Riobaldo, cancioneiro, diante de um interlocutor que nem tem calo no coração para escutá-lo, um interlocutor que não cala os ouvidos, apesar de silente.

Se a função de interlocutor no texto de Guimarães Rosa nos permite uma analogia com a escuta do psicanalista, por estar este num lugar ao qual se indaga sobre algo a requerer sentido e reconhecimento, a forma pela qual se compõe a narrativa reforça tal analogia. Contudo, não deixa de ser uma afirmação temerária, pois não sabemos do próprio autor seu pensar a propósito dessa relação. Guimarães Rosa conheceu a obra de Freud, disso sua biblioteca nos dá testemunho. Uma outra mensagem — do conto Cara-de-Bronze — sugere alguma aproximação pelo nome Moimeichego, o qual, decomposto, sugere moi-me-ich-ego. Exemplo típico do lidar de Guimarães Rosa com as palavras. No entanto, seria muito difícil comprovar que ele tenha experimentado uma psicanálise, pelo menos nos termos com que a designamos, pois sempre se manteve muito discreto em matéria de assuntos pessoais. Porém, será lícito tentar fazer com que a Psicanálise se imiscua pelas páginas literárias e na vida dos escritores? Nas diferenças e aproximações entre Psicanálise e Literatura, o que há a ressaltar é que ambos, tanto o psicanalista quanto o escritor, tentam revelar um texto, o que exige de ambos muita arte aliada à técnica. Mas sobretudo arte, para a qual a técnica se constituirá em mero instrumento. Ambos, psicanalista e escritor, são interlocutores, e o interlocutor é um demiurgo, um mediador entre o texto e a sua leitura, uma leitura requerida pelo próprio texto. Um texto cujo conteúdo, origem e destino indagam o sujeito que o conduz.

Grande Sertão: Veredas é um texto que, tanto quanto Fédon, de Platão, ou Totem e Tabu, de Freud, elabora certas questões a um nível só possíveis de serem tratados no plano mítico. É um texto que pode ser lido enquanto representação da Língua recuperada na sua origem, próxima à ação e às coisas designadas: a fala de um sertanejo. O fato de se querer sendo narrado é o fato lingüístico, recuperado pela metáfora de um romance: O que é para ser — são as palavras!, resume shakespearianamente Riobaldo.

A Língua, herança cultural mais arcaica e definidora do ser-tão brasileiro, subsistirá através de interlocutores. Para a Psicanálise, indica a possibilidade de a Literatura Brasileira se constituir em sua interlocutora, ser a Outra no campo simbólico da Cultura, da qual o Sujeito extrai os elementos que compõem o seu Outro.

Só quando se tem rio fundo, ou cava de buraco, é que a gente por riba põe ponte...? ensina Riobaldo. A origem do tema, que serve de motivo ao texto, perde-se no tempo e no espaço, acentuando a origem mítica da narrativa. Diadorim é uma personagem, cuja origem mais remota pode estar numa balada chinesa chamada Mu-Lan, e aparece em Boa, ex-colônia portuguesa na Índia. Espalhou-se nas canções populares pela Europa Central, Itália, sul da França, Espanha, Portugal, e, aí está retomada de maneira original, por Guimarães Rosa.

Mas o que queria Riobaldo com sua narrativa? Talvez, citando-o, um rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo; ou, então, por um gosto especial em especular idéias. Bem poderia ser também por essa epopéia de que uma vida só vale sendo narrada.

Recife, 1985.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 25 - Diciembre 2008
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