Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
a-cessos ao real
Gilda Vaz Rodrigues

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Após mais de um século da descoberta psicanalítica, não podemos dizer que a psicanálise continua a mesma. Hoje, o trabalho de interpretação, de deslizamento da cadeia significante por meio da associação livre, da cifração dos pontos de repetição e fixação em que o analisante se agarra exigem de nós, analistas, um outro modo de operar. Já não se faz análise como antigamente, como no tempo de Freud, e... nem precisamos ir tão longe, já não analisamos mais como há vinte ou trinta anos atrás.

E o que mudou?

Os avanços teóricos, principalmente a partir do ensino de Lacan, trouxeram outras perspectivas e outros recursos para lidarmos com os impasses em que o tratamento psicanalítico esbarra. Impasses que não só se referem ao final das análises como às entradas em análise.

Muitas vezes, procura-se um analista para se atenuar o sofrimento, mas, nem sempre, tal procura redunda numa análise.

A entrada em análise não se dá de imediato e, por vezes, o tratamento não vai além da melhora terapêutica. O efeito catártico, o desabafo, a localização e nomeação daquilo que acarreta sofrimento acabam por amenizá-lo, e o cliente se dá por satisfeito e nem chega a entrar em análise propriamente dita.

Se nos contentarmos com isso, o destino da psicanálise estará fadado a ser mais uma técnica terapêutica, elidindo a especificidade de seu discurso.

Como manter aberta a porta de entrada ao discurso psicanalítico?

Ao remetermo-nos a Freud, constatamos que a entrada em análise está relacionada à transferência. Lacan, porém, desde 1953, em Direção da cura..., já indagava sobre essa relação entre transferência e entrada em análise. A final, é preciso aguardar que a transferência se instaure para interpretar ou é a interpretação que instaura a transferência?

O que se constata é que a transferência que leva o cliente ao analista não é a mesma que promove a entrada em análise. Busca-se um analista, às vezes, como se procura qualquer outro objeto de consumo que possa aliviar o sofrimento. O próprio analista pode ser tomado como um bem de consumo, no mundo de hoje.

É preciso que se crie a transferência própria ao discurso psicanalítico. Como? Pela interpretação. Mas não é qualquer interpretação. Ela deve tocar em algum ponto da estrutura do sujeito para promover efeitos de transferência ao trabalho analítico. Tais efeitos são abordados por Lacan como efeitos de sentido e, não, de significação. Sentido aqui deve ser tomado como direção ( no sentido horário, por exemplo) na perspectiva do giro dos discursos.

E...que direção é essa?

De um modo geral, podemos considerar os sintomas como porta de entrada para o trabalho analítico. O sintoma é o elemento-chave que conecta a transferência ao campo do Outro. Entretanto, a rigor, o sintoma não se dirige ao Outro. Freud já havia assinalado o seu caráter de formação fechada em si mesma. Como tal, o sintoma não se conecta ao Outro, à transferência; ele articula uma forma de gozo refratária à transferência.

Temos, então, um impasse logo na entrada: como criar a transferência, preparando o campo para a operação analítica, se o núcleo do sintoma não articula, não entra, persiste fora, ex-siste?

O mundo de hoje, esse mundo dos fast-food, como bem assinalou Maria Auxiliadora Bahia em uma das cartas publicadas no livro Entre cartas e recortes – a psicanálise no cotidiano, não absorve mais essas análises longas, como se tivéssemos todo o tempo pela frente. Além do mais, o custo das análises, hoje, já não favorece tratamentos longos. E, o mais importante, é que o ensino de Lacan redundou em avanços teóricos que ajudaram no manejo dos pontos de fixação de gozo encarnados no sintoma desde o início das análises, abreviando o tempo para se chegar ao núcleo da questão de cada um.

O sintoma, como porta de entrada, é também uma fixação de gozo e não podemos esperar anos e anos para operar sobre o gozo, deixando-o para um final, e não se tem garantias de chegar lá.

Se, anteriormente, o que se priorizava nas análises era a vertente metafórica dos sintomas, aquela que se articula na transferência e desliza metonimicamente por meio da associação livre, hoje, esse trabalho ainda constitui o estofo de uma análise, porém, a direção, cada vez mais, se orienta para o real.

O real, entretanto, não é o mesmo em diversos momentos de uma análise. Os próprios obstáculos e limites de uma análise assinalam as marcas do real que servem de guia na direção do tratamento.

Colette Soler, em El sintoma y el analista, (curso dado em Paris nos anos 2004 e 2005 e publicado pela Formations cliniques du champ lacanien), assinala que há o real que depende do simbólico, definido como impossível e o real que desde sempre está excluído do simbólico, que não entra no trabalho de transferência. Este real se apresenta como um sinal, a angústia, e evoca a divisão do sujeito. Divisão esta que bascula entre a articulação significante e algo que resiste à entrada do significante. Este algo que resiste teria a ver com o etwas, que Lacan, remetendo-se a Freud, formula no seminário A angústia ao dizer que a angústia não é sem objeto, ela é angústia diante de algo.

O sintoma se encontra na porta de entrada da análise e vai passando por metamorfoses na medida em que a análise vai prosseguindo. É a angústia, porém, que nos indica o campo em que se deve operar. O surgimento da angústia demonstra a impossibilidade de o sintoma fazer uma completa contenção da angústia, uma vez que ele é construído, justamente, para dar conta da angústia com relação ao desejo do Outro, mais precisamente, sua falta, S (), que evoca a pergunta Che vuoi?

A fantasia se conecta aí como resposta, com uma função defensiva. Mediante a fantasia, sintoma e angústia se conectam, se enodam, por meio de um ponto: o objeto a.

A partir do seminário A angústia, livro 10, Lacan vai formalizar essa questão que irá orientar suas elaborações posteriores.

Assim, o que articula sintoma e transferência, para introduzir o discurso analítico, está no enodamento da divisão do sujeito.

Esse nó fica evidente na angústia, o aperto no peito, que indica a presença do objeto a, objeto incognoscível, retido, agarrado no peito. Trata-se do estatuto corporal do objeto formulado no seminário A angústia, além de seu estatuto lógico e topológico. Destacar o estatuto corporal do objeto a vai ao encontro do que resta de corpo, que não passa pelo significante, resistindo à operação simbólica. Além disso, é o que condiciona a abertura do ser ao imaginário e ao simbólico, uma vez que a angústia porta um saber que dá a entender a direção do objeto.

O que nos parece bastante pertinente e difícil ao mesmo tempo é introduzir o objeto a na entrada em análise. Estamos acostumados a pensá-lo como o objeto que cai no final das análises. Por isso mesmo, Lacan utilizou a topologia para cerni-lo.

Esse objeto está presente desde o início, de forma latente, e constituirá o suporte da transferência.

Colette Soler sustenta a tese, a partir de sua leitura de Lacan, de que o analisante entra em análise pela extração do objeto a, que toca exatamente no ponto da divisão estrutural abrindo-se em duas dimensões: uma, significante, evocará o real como o impossível (o impossível só tem sentido no simbólico) e, outra, que não entra em cadeia, permanecerá fora da linguagem, surge como angústia e resta como pedaço do corpo excluído do simbólico e, portanto, incognoscível. É essa última dimensão do real que Lacan privilegiará em suas elaborações finais.

Esse real já estava lá desde o estádio do espelho quando Lacan fala da prematuridade do vivente, que o impele ao imaginário e ao simbólico, mas que permanece fora não se inscrevendo no Outro. Essa parte será tratada por Lacan, no seminário A angústia, como objeto cedido, objeto que se solta como uma parte de si para não ser consumido todo como objeto de gozo do Outro.

A cessão separadora é uma solução frente à ameaça de captura total no campo do Outro, que a formulação freudiana sobre o narcisismo aborda muito bem.

Esse a, como pedaço do corpo, como parte não escrita no significante, permanece, no entanto, como real.

Como tratar esse real?

Há uma frase de Lacan que diz: " [...] a verdade, a recalcamos, ao real, nos habituamos". ( SOLER, 2005, p. 75).

Isso indica que o real não desaparece, continua a evocar interpretações, nomeações e fazendo com que os discursos continuem a girar, criando cultura e fazendo avançar a ciência e todos aqueles saberes que tentam apaziguar a angustia de castração que o real provoca.

Como nomear aquilo que, por natureza, é inominável ?

As nomeações têm como efeito um apaziguamento da angústia existencial. A civilização se cria, justamente, em busca de um nome para esse etwas, esse algo que angustia o homem como ser vivente.

No entanto, o corpo está aí para mostrar que nem tudo é nomeável. Mas, mesmo assim, é preciso tentar dizer. Essa é a ética formulada por Lacan a partir do L’étourdit: ética do bem dizer.

É por isso que a função paterna é tão presente nas elaborações finais de Lacan, como função de nomeação. Pois a nomeação produz uma certa contenção da angústia. No seminário A angústia, Lacan dirá que "[...] só há superação da angústia quando o Outro é nomeado". A nomeação a que ele se refere não é, aí, a articulação significante e, sim, a transmutação de A em a. ( ele utiliza o sufixo aíza).

Outra frase de Lacan, a respeito. "A nominação faz passar o a anônimo à história". (SOLER, 2005, p. 102). Esta frase enigmática é interpretada por Soler (2005) como se referindo à passagem do objeto a à história por meio da transferência. Nessa passagem, ao mesmo tempo em que há um movimento, um deslocamento, algo que passa ao significante, há algo que se deposita e que estabelece uma certa estabilidade. Esta estabilidade é necessária para não se cair num deslizamento infinito tal como na fantasia sadeana. Podemos entender essa estabilidade como um ponto de mesmidade, marcas do real que fazem um sulco num espaço topológico. É aí que a função paterna estabelece uma barra. A função de nomeação operada pelo pai vai além da nomeação pela metáfora paterna. Trata-se de uma nomeação da ordem de um dizer que põe barreira ao desejo infinito e pontua um desejo finito e seletivo. Não é qualquer coisa que pode funcionar como causa de desejo, portanto, causar, fazer o sujeito advir, o mundo girar e transformar esse algo, que causa angústia, em vida.

O manejo da clínica nos questiona o tempo todo sobre o como operar com o objeto a para fazer com que ele tenha a função de causa de desejo para o sujeito.

As formulações introdutórias a respeito do objeto a como operador da entrada em análise vão ao encontro de sua própria posição de agente no discurso psicanalítico.

Sabemos que todos os quatro discursos formulados por Lacan no Avesso da psicanálise guardam, em sua combinatória de letras, uma impossibilidade. Freud já havia se referido a isso ao destacar as três profissões impossíveis: governar ( discurso do mestre), educar ( discurso universitário) e psicanalisar ( discurso analítico). Acrescenta-se, com Lacan, mais uma impossibilidade que é a de se fazer desejar, sem resto ( discurso da histérica). Portanto, não se pode governar, ensinar, analisar e capturar o real. Cada discurso opera a preservação precisa de uma impossibilidade específica. Assim, qualquer discurso porta esse impossível. Como bem diz a letra da música de Chico Buarque de Holanda:

"...que será que será que dá dentro da gente, que não devia? O que será que será que não tem limite nem nunca terá, o que não tem governo nem nunca terá. O que não tem juízo?"(1)

O discurso do analista, que privilegiamos aqui, preserva o impossível de se analisar tudo; há sempre um resto que escapa à captura significante da operação analítica. Trata-se do real, nome deste resto que escapa à captura discursiva.

A psicanálise, hoje, tem como enfoque esse resto. O campo das possibilidades não precisa ser esgotado, como preconizava Píndaro: "Ó! minh’alma, não almeje a imortalidade, mas esgote o campo do possível". Para a psicanálise, atualmente, o que interessa é justamente o campo das impossibilidades, pois o que é possível de ser falado, analisado é também fadado ao esquecimento operado pelo recalque. O impossível resiste e insiste e é com ele que temos de nos virar. Além disso, o discurso analítico é um novo discurso que Lacan, ao formulá-lo como discurso, oferece à cultura da vida contemporânea, uma resposta além do édipo freudiano.

Também a atenção de Lacan recai, no final de seu ensino, sobre isso que resta , e o nome do que sinaliza o que resta da operação analítica é objeto a.

Operar com o resto implica fazê-lo passar da condição de mais-de-gozar para a posição de causa de desejo, na posição de agente do discurso. E como isso se opera? É preciso captar esse resto e operar com ele como isca, semblante. Remetemo-nos à conhecida frase de Hamlet : "...com a isca da mentira, fisgarás a carpa da verdade".

É preciso, para isso, captar o que o a vem a ser, sua consistência lógica, fazê-lo pareser (parêtre), jogo que Lacan faz com parecer (paraître ) causando, assim, efeitos de estrutura.

Como, porém, nomear o a, se ele é, por estrutura, perdido, incognoscível e inominável?

Para pensar essa questão, reportamo-nos ao RSI, em que Lacan atribui ao pai a função de nomeação por um meio-dizer. Assim, cabe à função paterna apontar para a direção do objeto a como causa de desejo. Não que ele o saiba, mas, dá a entender. Não se trata do objeto como parceiro sexual e, sim, do objeto causa do desejo, equivalente a perda, a uma subtração. O que se busca no parceiro é, justamente, esse objeto como mais-de-gozar, para compensar essa perda.

Lacan fala da função paterna, nesse sentido, como o que permite cernir o objeto. Detemo-nos , aqui neste termo: cernir.

O dicionário o define como: peneirar, joeirar. Há ainda o sentido figurado de: saracotear, requebrar. A etimologia vem do Latim: cernere, separar. (FERREIRA, 2001). Bom, não precisamos ir muito longe nas associações que esse termo evoca, pois as referências que temos já nos dão uma idéia do tipo de manejo que o termo cernir implica.

Assim, trata-se de um manejo, que tem como efeito a cessão do objeto, ou seja, sua queda. Tal queda é, antes de tudo, um ato de ceder, de deixar cair. Isso, porém, ainda não é o final, é preciso que se possa, por ter-se ido o bastante longe em seu desejo, reintegrá-lo em sua causa, no que há de irredutível na função do a. Como para a psicanálise o saber não é da ordem do conhecimento, o saber de seu a não implica conhecê-lo, O desconhecimento do a, portanto, deixa uma porta aberta para uma Outra coisa, instaurando-se, também, uma Outra lógica no manejo da vida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAHIA, Maria Auxiliadora. Entre cartas e recortes – a psicanálise no cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica. 2006.

LACAN, Jacques. O seminário. A angústia. Livro 10. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar. 2005

--------- RSI. Inédito.

--------- O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar. 2003.

----------A direção da cura e os princípios de seu poder . In: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 1998.

----------O seminário. O avesso da psicanálise. Livro 17. Trad. Ari Roitman. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

SHAKESPEARE, Willian. Hamlet. São Paulo: Abril Cultural. Editor Victor Civita. Teatro Vivo. 1976.

SOLER, Colette. El sintoma y el analista – Curso 2004-2005. Formations Cliniques du Champ Lacanien – Collège clinique de Paris. Trad. Montserrat Pera y Xabier Oñativia.

VEGH Isidoro – Os discursos e a cura. Rio de Janeiro: Companhia de Freud. 2001.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 24 - Diciembre 2007
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