Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Transferencia(s), desidentificações
e estrutura da maldade
María de Lourdes Manzini-Covre

Imprimir página

Desenvolvemos, no presente texto, reflexões sobre a questão de transferência(s), relativa à pacientes nos quais identificações parentais perversas estão muito arraigadas. Transferências essas que são experienciadas no processo analítico com o paciente Tom.

Freud (1917) diz da existência de transferências positiva e negativa, e também diz dessas terem elos à figura materna e figura paterna. Com Winnicott (1975), encontramos no analista a função do feminino (ser) e do masculino (fazer). Quanto a transferência negativa, cabe no caso, uma ênfase desse caráter, como maligna (Bolas, 1997).

Com Laplanche e Pontalis (1996), seguindo Freud, podemos ter por transferências como reimpressões, cópia de fantasias que emergem na análise e que devem ser tornadas conscientes no processo analítico, e no qual o analista é o destinatário substituto do quê foi sentido pelo paciente por pessoa(s) anteriormente conhecidas. Poderia se dizer, ainda, ser a transferência o "re-viver" de um conjunto de afetos, vividos principalmente na infância e adolescência com outra(s) pessoa(s), que o paciente projeta na figura do analista, que uma vez conscientizados podem ajudá-lo a ir em direção à realidade. Vale ainda, assinalar com Freud(1912) sobre a predisposição à transferência, pois é normal que a catexia de alguém esteja parcialmente insatisfeita, uma catexia que se acha preparada antecipadamente para se direcionar para o analista.

Contudo, no caso aqui em foco, cabe ter em mente uma inflexibilidade familiar, atada à constelação de identificações edipianas patológicas. A hipótese é que a analista de Tom, um rapaz de 24 anos, preso à essa trama, só pode avançar até um certo ponto, pois ela (a analista) só pode estar como uso do objeto e não como retaliação do objeto (Winnicott, 1971), pois nesta segunda situação, ela poderia recair na armadilha da estrutura da maldade (Bolas, 1997).

O rapaz formou-se em advocacia, mas, até o período inicial da análise, não havia ainda se credenciado, não passara no difícil exame da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, o qual já tentara duas vezes. Não trabalhava e vivia de mesada. Tinha um rosto inexpressivo e, principalmente no início, o contato com ele, em muitos momentos, causava-me estranheza, certo mal estar. Um riso nervoso e desagradável, possivelmente uma forma de lidar com sua angústia. Suas reclamações de impotência sexual, da "perseguição" do pai, de que "sou um advogado sem trabalho", de não ter namorada traduziam-se para mim como –uma impotência para a vida, "eu não existo". Poderia dizer que ele era/tinha um falso self que defendia o self verdadeiro, percebido nele como potencial (Winnicott, 1990).

Tom vive, como dito, em uma trama edipiana patológica. A mãe (professora) protetora/invasiva não abandona o controle do filho; o pai (executivo aposentado), deprimido (já havia tentado o suicídio), é trazido como cruel. No início do trabalho, a irmã, quatro anos mais velha, estava prestes a se casar e vinha obtendo êxitos na carreira executiva. Tom tinha forte ciúme da irmã em relação ao pai, ao mesmo tempo em que era muito ligado à mãe, que o "protegia" das intempéries paternas. O pai, por sua vez, tinha muito ciúme do filho, pois, pelo relato deste, a mulher dava muita atenção ao rapaz.

Estamos diante, pois, de uma configuração edipiana e a necessidade de sua dissolução –um mito que Freud (1924) caracterizou como estruturador de nossa sociedade. É a Lei da castração simbólica que permite a convivência humana. Green (apud J. Abram, 2003) diz "Winnicott observa que este relacionamento conduz a um enunciado paradoxal. O complexo de Édipo é visto como a realização da saúde (relacionamentos envolvendo pessoas). Winnicott vê a angustia de castração como uma bênção, pois ela permite que a angústia anterior siga outro caminho que não a da agonia impotente". Podemos dizer que a angústia impotente é a que caracteriza o sentir de Tom, originada nessa configuração familiar edipiana, pois na situação familiar em pauta, há dificuldade de aceitar a Lei e não se consegue avançar no sentido de, dentro do possível, superá-la (Freud, 1923). Daí as identificações negativas, que deverão se atualizar na transferência com o analista, em algum momento.

Freud (1937) sinaliza que a definição sexual já é sentida como traição ao sexo oposto. Barenger et al. (1989) dizem como são difíceis as tentativas para desidentificações espontâneas diante do caráter contraditório dos processos identificatórios, dada a própria dualidade sexual dos objetos primários. A criança tende a ter alianças com o pai ou com a mãe. Cada aliança excludente marca uma traição ao outro, com a conseqüente culpa, organizando no ego atitudes traiçoeiras. Essas práticas "propiciam uma estruturação defeituosa do complexo de Édipo que dificulta a aceitação da castração e sua elaboração posterior para uma sexualidade relativamente madura".

Isso vem ao encontro de umas das queixas do paciente em questão, que dizia "ser impotente". Pelos relatos dele, entretanto, percebia-se que não conseguia ter uma relação completa com uma garota não por ser impotente fisicamente, pois ele dizia ter ereções e orgasmos; o que não conseguia era estabelecer uma relação humana com seu par.

Creio que vale antecipar duas lembranças emblemáticas que Tom me relatou logo no início da análise. Uma delas era catastrófica, tendo ocorrido quando, em torno dos 9 anos, não indo bem nas tarefas escolares, o pai ameaçou expulsá-lo de casa se não tirasse notas melhores. Cabe ter em mente o que Bolas (1997) diz sobre a humilhação das crianças quando são surradas, ameaçadas, castigadas desmesuradamente. Segundo o autor, esses episódios levam à vivência de uma morte psíquica, a migração temporária da alma da criança de seu corpo, inserindo-se no que nomeia "estrutura da maldade". Esta implica em duas pessoas em "atuação intersubjetiva maligna", destacando-se a intersubjetividade com as crianças, cuja vulnerabilidade é grande: " ...es la internalización por parte del self de una situación de la primera infancia que el adulto lleva consigo y puede actuar2" (p.3). O autor diz que todos passamos por isso, sendo que o nível de gravidade da situação depende de quanto o meio ambiente criou repetidas mortes do self. É por essas repetições que passa Tom.

Uma segunda lembrança do paciente me foi relatada quando insisti sobre o que mais gostava na infância, pois não se lembrava de nada e finalmente me disse: "bem pequeno, estar deitado no vão da escada, onde batia sol". Penso no vão como um colo, um acolhimento acoplado ao calor do sol. Um lugar protegido que ele não tinha com os pais? Embora tenha tido um "colo" com a mãe, ela era também invasiva pelo que pode se assinalar no decorrer do processo.

À história familiar na vida de Tom agregam-se as histórias míticas que ele me relatou, criadas no início da adolescência. Diziam respeito a dragões e a figuras que podiam representar. O paciente me falou particularmente de dois dragões: o preto (que era malvado e traiçoeiro) e o vermelho (que tinha boas intenções, mas era fraco). "E com qual deles você se identifica?", indaguei, e Tom respondeu: "Ao vermelho". Continuei: "E o outro?" Tom – "É meu pai".

Mas Tom trouxe também uma idealização expressa não diretamente, a de ser um dragão potente, que lutava contra o mal. Em nosso diálogo sobre esse processo de simbolização pôde-se criar algum possível aceno à passagem, com Freud (1914) do eu ideal (da fusão sempre reiterada de certa forma pela mãe) para o ideal do eu: "eu sou este, mesmo fraco, sou contra o mal". Ainda, no decorrer do processo analítico, o paciente também se referiu diversas vezes aos mitos de Campbell(1990) e, particularmente, à saga do herói que luta para si e para todos. Cabe ver que, com a cultura infantilizadora contemporânea e com os traços visto do jovem, estamos lidando com um adolescente "prolongado"

A esperança ainda estava lá quando começamos a análise, a esperança de encontrar um espaço de intersubjetividade que o levasse a encontrar mais a si próprio, ao seu Self.

I. Transferência Positiva (primeira etapa e primeiro ano)

O rapaz estava inserido numa trama edipiana problemática, que suporia um setting standart. Mas, pelo que observei de sua impotência de vida, a imagem do "colo" no vão da escada, numa primeira fase, pareceu-me fundamental a composição do setting winnicottiano do holding, sem descuidar do setting standard quando aí emergia condições para interpretações. Refiro-me aqui ao retorno a uma dependência, agora na transferência com a analista, que se adapta às necessidades do paciente, sendo capaz de se identificar com ele (1975). Suponho que as regras que Tom queria jogar (brincar) comigo tinham como sentido fortalecer o dragão fraco. Acolher o desvalido/a criança que queria ser um dragão forte.

Na aparência de Tom era bastante evidente a rigidez que marcava o seu rosto, o seu jeito tenso de se movimentar. Percebia nele uma forte agressividade retida. Estimulava-o, então, a falar com o pai para voltar ao aikido, atividade física que havia abandonado porque o pai deixara de pagá-la. Ele falou, mas não com o pai, e sim com a mãe, que então resolve o pagamento com o pai. O corpo refletia a personalidade de Tom, presa a um eu ideal infantil, a uma situação primária que aparecia quando falava dos afetos, dos relacionamentos, principalmente em família.

Apresento a seguir um fragmento de sessão que sinaliza alguma possível renúncia rumo a um ideal do eu.

Relatando sobre o relacionamento em sua família, Tom recaía sempre na dificuldade que tinha com o pai: "Minha mãe me aceita como eu sou, meu pai não me aceita. Mas ele aceita minha irmã". O tema então era o ciúme que sentia da irmã pela forma como o pai a tratava. Indaguei como era seu relacionamento com ela: "Pouco falo com ela, ela está fora todo o dia no trabalho. Não temos quase o que falar", e especificou uma reclamação: "Estamos todos na sala, ele [o pai] diz sempre boa noite à minha irmã ou às vezes passa no quarto dela antes de dormir", rematando: "Ele nunca me diz: ‘Boa noite, Tom’".

Indaguei, então: "Que espaço você dá ao seu pai para que ele se aproxime? Sua irmã parece dar esse espaço, é mais fácil para seu pai". Ele respondeu: "Mas eu sou assim". Essa fala marca a inflexibilidade de Tom, uma identificação narcísica rígida. Seguimos na conversa, e vimos que ele repetia o mesmo comportamento do pai. Contou então como era difícil lhe dizer "bom dia" quando levantava e o encontrava pela manhã. Eis certa identificação paterna infantilizada, penso, e sigo apontando-lhe que há aí uma identificação (dele com o pai) a ser desidentificada. Os dois sofrem. É como se dissessem um para o outro: "Não preciso de você".

Mas como tornar possível a troca, já que, na realidade, ambos precisavam um do outro? Tornar consciente a Tom como estava repetindo com o pai o que este fazia com ele: "Veja como faz o mesmo ato que seu pai. O mal estar que você teve de noite, sentindo-se excluído, seu pai sente de manhã, quando você aparentemente o ignora". Debatemos um pouco essa questão, para que talvez ele pudesse perceber que, junto com o garoto ressentido, havia também um adulto que tinha certo poder e condições de atuar e criar outro espaço com seu pai. Isso significava ter em mente que a identificação é inconsciente, a consciência desidentifica, conforme Outeiral (2004).

Barenger et al. (1989) dizem que a passagem do ideal do ego infantil ao ideal do ego adulto tem de superar "(...) uma série de crises que assinalam a estruturação da personalidade e que se acompanham de sentimentos de perda, de solidão, desamparo e vergonha; por isso é tão freqüente a queixa dos analisandos de não haverem tido pais ‘como se deve’".

Tom trazia muito o pai às sessões, e pouco a mãe, que ficava como uma eminência parda. Sobre ela, as informações eram generalizadas, tais como: "como ela controlou minhas namoradas, não deixo que saiba se estou tendo algum relacionamento porque ela fica pondo defeitos, etc". O pai era, então, o objeto de ódio, mas, na verdade, também de amor – foi o que lhe disse numa sessão em que me contou sobre uma música (dentre as várias que trazia, parte do processo transicional entre nós) emblemática de seu ressentimento, The Wall da Banda Pink Floyd. Tom mostrava ter forte identificação com ela, fazia parte de seus mitos de vida. Nesse momento, lembrei dos seus dois dragões e indaguei: "como podem se olhar, e mesmo se confrontarem, se há este grande muro?".

Um evento familiar ocorrido um tempo depois dessa sessão pareceu mostrar que era possível começar a romper o muro, se eles (Tom e pai) percebessem outros afetos além da raiva. Tom relatou a ida da família ao Nordeste para o aniversário da avó, para quem escreveu um poema. No dia da festa, ele o leu em voz alta para todos. De longe, observou o pai emocionado com a leitura, com uma lágrima nos olhos. Falamos então sobre o ocorrido de modo que Tom percebesse que o pai tinha sim um espaço para ele; que não era tudo para a irmã, como sentia. Sempre que o material trazido possibilitasse, trabalhávamos como o paciente poderia separar o pai, que ele tinha como pai dele, do pai "real" (Sr. Deo), tendo Deo como uma pessoa com suas dificuldades, para poder elaborar outro pai dentro de si; ou seja, trabalhamos aqui com as desidentificações com essa figura de pai só cruel.

Nesse tempo, Tom começou a falar, de certo modo, de um outro "pai", o Mestre do aikido. Relatou-me como este lhe passava a filosofia oriental, aconselhava-o, acompanhava-o, às vezes tomavam algo juntos. Assegurei-lhe que cultivar a companhia do mestre era muito bom. Penso como isto o ajudava a ter melhor consigo a imagem do masculino, alguém que o estimulasse para o mundo, além de mim, de um modo que ele conseguisse escutar.

Depois de um tempo da análise, a mãe de Tom me telefonou para fazer reclamações sobre o rapaz: "Ele tem brigas com o pai... Ele não nos cumprimenta, não nos abraça, nos trata mal. Não conta o que vai fazer da vida, não conta seus planos". Pelo diálogo que vinha estabelecendo com o paciente a partir de seus próprios relatos, não me cabia lidar com essa situação nos termos da mãe. Minha preocupação era também melhorar a vida de Tom em casa, então abordei a dificuldade, nos momentos possíveis, mais ou menos desta forma: "assim como você se sente abandonado, seus pais também se sentem desvalidos como pais". Retomei The Wall: "manter-se com esse muro de ressentimento divisório não está sendo bom para você mesmo. Você sofre e não sai do lugar". Aproveitei então o que Tom me contou sobre como o cigarro era seu companheiro e que, às vezes, ele e o pai fumavam juntos na varanda do apartamento: "Isto já é um estar junto, você deve aproveitar esse momento para se falarem", sugiro para esse espaço.

A Desconfiança – The Wall

A postura identificatória de Tom a The Wall era a de quem havia sido "traído" e vivia na desconfiança. Discorrendo sobre o caso Sarah, Winnicott (1975) indica a presença de distúrbio de tipo paranóide quando a paciente sinaliza que sente ter algo que a persegue, que tem gente atrás dela.

Embora Tom não expressasse isso claramente, havia como que um pressuposto disso expresso na sua constante desconfiança. Era, de fato, possível deduzir de seus relatos que tinha uma atitude dúbia com a mãe: "ela me aceita", dizia Tom, mas também adotava certa postura defensiva diante da atitude invasiva e de controle que ela desenvolvia. Essa desconfiança não se resumia ao relacionamento com a família (exceção feita à avó materna, que ele adorava, mas que morava no Nordeste); estendia-se aos "amigos" e "namoradas", de tal modo que ele não tinha realmente amigos, nem uma namorada. Sendo assim, áreas que justamente muito o ajudariam a viver melhor –a amizade, o apaixonar-se– ficavam truncadas. Ressalto que o consultório e todo o setting era, então, para Tom um "nicho"quando não precisava estar em constante defensiva; podia relaxar, ser ele mesmo. E ele pôde então trocar aspectos afetivos com a analista.

A aliança perversa com a mãe tornava o paciente "traidor’ do pai. Outras trocas de afetos estavam contaminadas por essa relação primária. Tom ficava traiçoeiro", suas outras relações ficavam transpassadas de desconfiança – ele estava sempre ameaçado de ser traído, projeção que fazia nas moças e nos amigos. Sobre os amigos dizia: "me procuram porque precisam de alguma coisa que posso dar". Entretanto, esperava os e-mails deles e também das moças, "para não ficar tão sozinho". Uma forma de não estar só era fumando maconha com os amigos na praia.

No que dizia respeito à situação dos afetos com as moças, havia uma única que Tom considerara ter sido sua namorada, Débora. Estava, então, com 20 anos, muito apaixonado, mas, em vez de reviver o encantamento/ilusão da situação primária, a da mãe e bebê/criança-Tom, quando o apaixonar-se é um momento de crescimento, de certa aproximação do Self real, vivia, em contraponto, a repetição do sofrimento de desconfiança. Tom não tinha uma mãe "suficientemente boa", assim (inconscientemente) escolheu alguém que poderia traí-lo: "Ela [Débora] começou a ‘ficar’ com outros rapazes, me enganando. Mentia pra mim em várias situações. Até que terminamos", relatou várias vezes. Tom nunca havia "transado" com ela, por medo da "impotência", ou seja, de não ser bem sucedido. Ainda, no momento, relata que se falavam por telefone: "Ela é interesseira, me telefona pra sair quando não tem ninguém com quem sair". Tom deixava-se usar por ela, não conseguia dizer não porque queria vê-la. Saía com ela e acabava por se sentir mal.

Neli era outra moça que aparecia no material para análise. Ela sempre procurava Tom. Ele dizia que não gostava dessa moça, mas se relacionava com ela sexualmente. Havia algum traço da estrutura da maldade expresso aí? Relaciono isto, agora, com um sonho que me contou, do qual só lembrava que, no sonho, era uma pessoa má. Contou-me isso perplexo – como ele podia ser ruim?! Vejo, hoje, o que não pude perceber desse sonho, pois este enunciado do Inconsciente, ficava sem elo com o que se tinha da vida do paciente, do que se desvelara até então Ele (Tom) se apresentava como o adolescente desvalido, que teme não chegar ao que esperam dele. Cabe lembrar Lacan (1953, p.269) quando assinala que "o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado,mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido pelo outro". Era de mim que ele esperava manter a esperança acesa para seguir para crescer, ser reconhecido?

Vale deter-se mais sobre seu relacionamento com Neli, com o sexo. Durante a terapia, várias vezes relatou estar com Neli quando os pais viajavam, pois o apartamento ficava só para ele. Mas ele próprio não chegava ao orgasmo. O orgasmo ele o tinha, se masturbando. Segundo Tom, o terapeuta que o havia atendido anteriormente "o forçou" a persistir em uma relação com Neli, no intuito de que chegasse à plenitude sexual. E até que ponto o rapaz persistiu a partir dessa "sugestão"? Se assim foi, esse profissional me pareceu o porta-voz dos pais. O pai já o levara à casa de prostituição, e o filho, com muito esforço, acabou tendo um orgasmo, que diz ter detestado. Tom também, me relata, que ficou sabendo por esse psicólogo de uma fala da mãe (pois, ela às vezes, a visitava esse profissional no consultório): "queríamos um filho macho". Primeiro, penso o controle que essa mãe tem sobre esse filho. Penso depois de ouvir a frase acima: "mas ele ainda está na criança, preso ao colo dessa mãe, não está liberado para outras mulheres".

Indo ao encontro desse pensamento, há também um sonho que Tom me contou: vai se relacionar com uma moça, mas, ao abordá-la, o chiclete duro na boca o impede de falar, fugindo envergonhado para o banheiro.

Dentro do possível dessa estrutura perversa com essa mãe, estávamos buscando no processo clínico em que aspecto Tom poderia melhorar sua vida, diminuindo sua angústia impotente. Chegou então a época de prestar exame de novo na OAB. Tom se sentia o advogado/não advogado, vivia de mesada do pai, um "ninguém". Tinha medo de prestar o exame. Não um medo comum, mas o temor de passar pela humilhação de não ser aprovado e ter a retaliação que o pai estava sempre pronto a fazer – pelo que compreendo de seus relatos, o que o deixava assustado e mesmo inerte. Repetir humilhações era reviver mortes psíquicas que pertenciam à estrutura da maldade. Seguimos trabalhando uma possível desidentificação de Tom daquele que é vitima.

Em uma dessas sessões, enfatizei que prestasse o exame; se não passasse, prestaria de novo, e não estaria só - teria o nosso espaço para persistir na luta. Contei-lhe o caso de uma moça, filha de amigos, que já prestara duas vezes e não desistira, e novamente, como ele, inscrevera-se para o exame. Queria dizer com isso que outros jovens estavam passando por uma agonia semelhante, e que ele não estava só nessa busca. Na sessão seguinte, ele me disse: "Você tem razão, se eu não passo, prestarei de novo. Fiz minha inscrição". Penso então: "que bom, uma (boa) identificação com a moça". Tom disse também: "estou estudando não por meus pais, mas porque eu quero". Vive uma fase de rompimento com a inercia!

De fato, o relato de seus sonhos confirmavam que estava mais confiante. Processo longo de estímulo. Tom prestou o exame da OAB e passou na primeira fase - foi uma primeira vitória. Estando comigo, "comemoramos" no consultório. Ele, porém, não contou o fato ao pai, só à mãe, que falou para o pai. Depois, prestou a segunda fase e logo recebeu a notícia de que havia passado. Nesse dia, me deixou recado, e telefonei em seguida. O pai atendeu e me disse que eu era a primeira pessoa para quem Tom queria contar sobre a vitória, que ele falava muito em mim etc Estamos no momento da transferência positiva, quando o paciente tece elogios ao analista, desenvolve um lado amoroso (Freud, 1917). Ou segundo Winnicott(1975), estou no lugar, sou naquele momento aquela "mãe" suficientemente boa.

Depois, no consultório, o paciente relatou como o pai o abraçou, mas que não conseguiu lhe devolveu bem o abraço. Havia ficado surpreso. Ficou também feliz, pois sentiu um encontro com o pai. Comemoraram, tomaram vinho, e assim houve um período de conciliação com o pai, e consigo mesmo.

Porém, sabemos que a vida não pára. Tom idealizava a situação/encontro com o pai, "imobilizava" a vitória, como se tudo, de agora em diante, fosse ser diferente: "meu pai me tratará diferente". Logo se frustrará, porém, viverá a desilusão, porque, mais adiante, ele e o pai voltaram a brigar, por algo banal. Ele conseguiu dizer ao pai: "você não liga para meus problemas". O pai retrucou: "eu estou me lixando para seus problemas".

Retomando a situação, disse a Tom que estava sofrendo porque idealizava o pai: "quer seguir querendo ter um pai que tem em sua mente?". A desilusão fez pensar, a pressão da realidade (as falhas dos pais), com a ajuda clínica, pode ajudar a aproximação ao eu ideal adulto. A esse respeito, Barenger et al. (1989) dizem: "a história de vida do sujeito é, em parte, história de suas desilusões". Mas a família de Tom era mais complexa em suas patologias

Depois de alguns meses do credenciamento pela OAB, o pai deixou de pagar a análise e a mãe assumiu o custo, diminuindo as sessões (ela também começou a fazer terapia). Mais adiante, outro telefonema da mãe: o pai ameaçava, no próximo aniversário de Tom, 25 anos (que seria no mês seguinte), cortar a mesada do filho. O sentimento do paciente foi difuso. Depois disse ter sido bom: "porque assim eu vou ter que me virar". Bem, um pai que não conseguia "levar o filho ao mundo", nesse momento colocou um limite, mesmo que não soubesse exatamente o significado deste.

II. Transferência Positiva - "Masculina": o fazer, o estar no mundo

Depois de credenciado pela OAB, Tom viveu e expressou também a frustração: "sou advogado, passei na OAB, mas não tenho emprego". A mãe mandou que concorresse a este e aquele trabalho, e Tom, acabou escolhido para atuar no recenseamento do IBGE. Começou a trabalhar, reclamava, dizendo que "poderia fazer coisa melhor, afinal sou advogado, etc". Como lhe passar o que nos diz Freud (1914) de que é através das dificuldades, dos infortúnios que uma pessoa se torna sagaz. Pensemos que se trata de fazer Tom crescer. No que diz Freud (1912), pela transferência fazer o paciente ajustar seus impulsos emocionais às condições de sua vida e ver o seu valor psíquico. Nessa ocasião, lhe "traduzi" sua postura, dizendo-lhe que me parecia falta de humildade de sua parte. Tornando-o consciente de que não tinha nada antes, agora estava trabalhando. Pouco a pouco, pudemos debater como essa atividade profissional era-lhe importante, por mais difícil que fosse, por mais mal pago que fosse, e como estava podendo desenvolver um pouco sua sociabilidade, o contato com pessoas diferentes, que o estava ajudando a ver os outros e a se ver melhor, como nas situações que vivia com sua chefe ou com pessoas difíceis de serem entrevistadas.

Tom vinha de fato tendo melhor percepção das situações – o que tinha a ver com ele, o que tinha a ver com o outro - e também desenvolvendo certa criatividade, desenvolvendo mais seu "eu" em contato com tantas pessoas, de humores de diferentes, de caracteres diferentes. De certo modo, pode-se dizer que passou pelo teste de desilusão sobre si mesmo, de sair mesmo do casulo – do eu ideal auto-bastante para o sofrimento (e certa satisfação) de que tem de haver o outro/o terceiro (as pessoas com as quais lidou e também o pai). O seu rosto mudara, estava mais vivo, mais bonito. Nesse tempo da análise, coincidentemente, encontrou o padre que costumava visitar sua família, que lhe disse: "Nossa , você está diferente, está com outro rosto!". (Penso –Tom teve outro olhar, pode-se mirar nesse outro espelho). Quando me relatou o episódio, Tom agregou o que eu dissera igualmente da mudança em seu rosto. Aprendera a fazer uma certa troca, viver certa alteridade, não estava mais vivendo só da desconfiança. Vale reter aqui o que diz Lacan (1953) de que o ser humano aprendeu a dizer Eu (Je) porque existe um "tu", um "outro". Ele começava a perceber que também podia ser reconhecido pelo outro.

Nessa ocasião, também me contou, feliz, do primeiro "não" que havia dito à ex-namorada, Débora. Na realidade, nas três vezes em que ela lhe telefonou, Tom disse não ao convite que ela lhe fizera, podendo expressar, com isso, a sua raiva de quando ela lhe telefonava por não ter outro rapaz com quem sair. Aqui também, pelo avesso, estava se fazendo reconhecer como um rapaz que se respeita mais, com certa auto-imagem positiva.

Ainda nessa fase, cabe ressaltar que Tom pôde perceber também um afeto positivo do pai para com ele. Os pais faziam terapia de casais, vinculada à Igreja que freqüentavam, sendo a reunião na casa deles. Certa vez, o tema era os filhos. Um tio de quem Tom gostava estava nessa reunião, e ele escutou-o (atrás da porta) dizer que lidava com os filhos de modo a não repetir problemas que tivera. Então, Tom escutou o próprio pai dizer que queria abraçar o filho, mas não conseguia. O rapaz refletiu comigo: "Então meu pai gosta de mim. Mas percebo que não mereço esse amor, eu fui muito desobediente". Sua criança falando, junto com o adolescente?

Penso em duas interpretações possíveis para sua expressão, quais sejam: "devo ser castigado pela "traição" (inconsciente)" e "preciso de limites, meu pai quer o meu bem (mais consciente)". Creio que as duas estavam com ele. Tom continuou dizendo: "Você tem dito de um pai dentro de mim. Mas acho que eu tenho um pai dentro de mim que é parecido com meu pai. Perguntei-lhe então:"Qual dos seus pais? O que te ama, ou o que te ameaça? Ou ainda os dois?" Em diálogo conscientizador sobre isso, percebeu-se que nada era imutável, que ele poderia ensaiar ser amoroso consigo mesmo e com os outros, lembrando o que o ouvira o tio dizer sobre a família. Estamos pensando que alguém (Tom?) pode interromper esse processo geracional – no caso, o muro de ressentimento(a estrutura da maldade).

O termo geracional presente ali no setting me fez recordar a seguinte fala do ex-terapeuta de Tom, por este relatada: "é raro em uma estrutura familiar como a sua um filho chegar a uma terapia".

Era um bom aviso do que viria mais à frente, como prever? Entramos no segundo ano de análise (com horários precários). Tom procurou outro emprego. O mestre do aikido conseguiu que um advogado da academia indicasse-o para uma vaga numa empresa de advocacia. O paciente foi, sabendo que o trabalho seria de office-boy – o dia todo na rua, no Fórum, buscando papéis e ganhando pouco. Mas tinha esperança de que, mais adiante, lhe fosse oferecido um trabalho melhor na empresa. Com o tempo, vai ficando desanimado. Ele queria um caso jurídico que pudesse estudar. Mas fez bem o seu trabalho e dizia que se percebia diferente. Por exemplo, para conseguir algo no Fórum, sorria (o que antes não fazia) para a moça que deveria liberar os papéis. Com isso, creio que, nesse momento, o paciente indicou que vinha incorporando melhor o falso self normal (Winnicott, 1960) necessário para se viver em sociedade. Isso se assemelha a dizer que estava desenvolvendo procedimentos pelo processo secundário.

Desidentificação e nova imago paterna?

A ligação entre o mestre de aikido e Tom vinha promovendo um processo formativo de uma imago paterna para o paciente. A preocupação em ajudá-lo, como por meio dessa indicação para uma empresa de advocacia, e a própria filosofia do aikido eram bastante orientadoras. Tom me explicou certa vez como esta se expressa na luta – o cuidado com o outro, em suas palavras, "para não machucar o outro". Reafirmei na ocasião que ele devia ter isso como modelo para viver, um modo de lidar com seu pai, de se relacionar com ele sem machucá-lo, mas de maneira a poder se defender dele. Tom contou então histórias do mestre que eram metáforas da criatividade diante da dificuldade. Lembrei-lhe então aspectos de sua criatividade – na coleta de dados do IBGE, das pessoas que não queriam lhe atender – e de como sentiu certo orgulho de ter conseguido os dados dessas pessoas, enfatizando-lhe como conseguiu lidar com elas e também com as suas próprias dificuldades. Lembrei-lhe ainda que conseguiu aproximar-se de sua chefe, o que no início não lhe parecia possível. Disse-lhe também dos aspectos criativos que teve na empresa de advocacia.

Tom pôde trocar um pouco de mitos. Ficou então outra figura de pai. Tom dizia: "O mestre é tão o contrário do meu pai!". Esse mestre permitiu uma desidendificação e uma certa nova identificação da figura paterna.

Mas outra imago parental que emergiu do inconsciente do paciente pôde ser observada no relato do seguinte sonho: ele está em uma reunião, relaciona-se bem com uma figura masculina (que parece Robert De Niro, artista de cinema), mas que tem cabelos longos e ruivos (feminino?). Durante o relato, Tom se voltou para mim, indagando: "Você, tem cabelos ruivos, não é?". Então, ele compôs a figura de pai-mãe interna através da minha figura – imago do ser e do fazer? Ou vivenciava mais a transferência do Masculino na analista –aquela que o impulsionou em todas as atividades de trabalho e de aceno a "namoro" com as mulheres?

Na relação de Tom com a analista, vale ter em mente o que diz Winnicott(1969) - por tudo que Tom passou de muito seu para a analista, os erros dela terão um enorme peso para ele.

Finalmente, chegamos a uma fase em que Tom pôde ter "aquela boa conversa" com seu pai (o sr. Deo), falar de seus planos. Conversa possível porque melhores figuras internas o suportavam e porque encontrou, um pouco, o rumo de seu desejo.

III. Paradoxos: avanços e retrocessos. A transferência perversa e o limite da analista.

Nessa fase de nossos encontros, Tom falava de largar a empresa em que trabalhava, pois estava cansado e queria estudar para concursos, visando a carreira de juiz. Penso que, nesse momento, estava próximo do seu ideal de eu adulto – o herói – que atende a justiça para si e para os outros conforme sua leitura (há dois anos) da saga do herói de Campbel (1990). Como estava contente por ter decidido isso! Freud (1921) assinala o júbilo da pessoa quando realizações de sua vida tocam parte do ideal do eu. Tom disse que falaria com seu pai sobre seus planos. Nesse momento, o dragão ("bom", não mais tão frágil) vai ao encontro do dragão "ruim", já não visto bem assim – pois muitas desilusões lhe revelaram mais o pai (Sr. Deo). O paciente conversou com o pai, compartilhou planos, conseguiu estabelecer certa aliança paterna para realizá-los. O pai pagaria o cursinho preparatório para os concursos, e assim Tom deixaria de trabalhar e voltaria a estudar. O dragão bom convenceu o outro, "adversário". Tornaram-se aliados nessa ocasião.

De momento, imagino ficar-lhe inconscientemente –com o pai protegendo,"não preciso mais da análise, lugar perigoso2"

Logo depois, Tom me trouxe um livro com dedicatória, agradecendo o que havia feito, dizendo algo como: "depois do mestre, chegou a hora de seguir sozinho". Comunicava, assim, que havia achado o caminho e iria parar a análise, pois não tinha dinheiro para isso também. O pai pagaria o aikido, que era barato. Marca-se aí a resistência –o que Tom tem ainda para enfrentar, ao que resiste? Não adiantou comunicar-lhe essa situação. Restou-me desejar que tudo corresse bem e lembrar que poderia me telefonar se necessário. Estamos aqui no que Barenger et al (1989), usando a metáfora "como a luva dissimula a mão", dizem: pensamos que avançamos no tratamento do paciente, contudo há muito ainda por emergir.

Falamos mais a frente por telefone e Tom me contou que não estava conseguindo estudar como queria. Sugeri então que retomasse a análise, que eu o aceitaria sem nenhum pagamento, até que arrumasse emprego. Por que fiz isso? Pela minha crença de que poderia ajudá-lo a continuar no rumo sinalizado anteriormente, e queria ver isso encaminhado; ou seja, meu ideal para o rapaz! A minha contra-transferência aí presente! Não tinha "soltado" esse vínculo ainda. Realmente, nosso contato propiciou que Tom conseguisse retomar os estudos com mais persistência.

Pude perceber vários avanços decorrentes do processo que vinha ocorrendo há dois anos. Tom me trouxe informes sobre a irmã, que, tendo em conta traços da trama familiar, pudemos melhor compreender. Ela então já havia se casado (Tom gostava muito do cunhado, que, por tudo que me contou, esse poderia vir a ser modelo de figura masculina para ele), mas perdera o emprego, estava deprimida e havia começado a fazer terapia. Essa irmã, suponho, casando-se, começou a projetar as questões familiares no relacionamento com o marido, o que também contaminou a sua atuação profissional. Para Tom, então, ela deixou de ser aquela pessoa que estava sempre "bem", tão diferente dele, e passou a deixar um espaço para ele se aproximar, por alguma identificação de problemas, mesmo não mencionados. Ao mesmo tempo, ele estava nesse outro momento de sua vida, havia encontrado um elan, sentia ter algo de seu. Enfim, tudo isso permitiu que os irmãos tivessem mais comunicação, que conversassem um pouco mais do que antes.

Nesse momento também, levando os estudos com mais afinco, de algum modo (consciente ou inconscientemente), Tom satisfez o desejo do pai, mas também o próprio desejo. E certa aliança com o pai persistiu, tornando-se ainda mais clara por ocasião de uma viagem feita pela mãe, para estar com a avó no Nordeste. Os dois passaram então a falar muito um com o outro, saíam juntos. A empregada da família disse a Tom que havia contado para a mãe dele como ele e o pai haviam se dado bem; sobre isso, a mãe do paciente falou: "Será que tenho de deixar mais os dois sozinhos para se entenderem?". É o que ele pode me relatar. Cabe dizer que ela(a mãe) não precisava sair para deixar esse espaço, mas sim mudar a forma de lidar com o marido e com o filho. Sobre isso, vale lembrar o controle que a mãe exercia sobre o espaço do filho, e em várias ocasiões ele me relatou que sua mãe tinha ciúme da analista.

Contudo, fatos pareciam indicar que Tom crescia em direção ao ideal do eu adulto, ou ainda no desenvolvimento de um Self. Em uma sessão, trouxe alguma preocupação ("concern") com o pai. Uma noite, chegou em casa depois do cursinho e viu o pai na sala semi-escura, abatido; pensou então como ele não estava bem, que tinha depressão e, antes, já havia tentado suicídio. Green (apud Abram, 2003) diz como "a capacidade de preocupar-se (‘concern’) implica a consciência da existência do objeto e algum tipo de preocupação por sua integridade". Tom estava "vendo" mais seu pai; estava mais próximo de seu Self e pôde, assim, ver o(s) outro(s).

Mais um exemplo disso surgiu em um relato sobre Débora (a "namorada" e por quem se sentia traído). Nessa ocasião, passaram a falar um com outro, estavam mais amigos, havia maior comunicação entre eles, e ela lhe contava os problemas pelos quais estava passando em casa e no trabalho. Mas Tom não conseguia tê-la como namorada, ela já não era a mesma para ele. E coube-me dizer a Tom: "E você também é outro agora".

O distúrbio da trama familiar

Chegou o período de inscrição para os concursos que Tom pretendia prestar. Ele alcançou boa classificação, mas não o suficiente para conseguir estar nas vagas oferecidas. Continuou estudando e logo prestou outro concurso, passou e conseguiu ótima classificação, quase certeza de ter emprego. Mas ainda precisava esperar um tempo para saber o número de vagas. Dessa vez, a demora do resultado moveu a trama familiar em suas relações perversas. Suponho que, estando agoniado, vendo o pai impaciente, Tom retornou mais para o suporte da mãe, o que provocou ciúme no pai. Este tinha também suas enormes dificuldades, e os dois acabaram, novamente, brigando por qualquer motivo.

O pai passou a repetir aspectos da estrutura da maldade, dizendo que tinha meios jurídicos de colocar o filho para fora de casa. Uma outra desilusão na vida de Tom, mas ele reagiu como um adulto, agora é ele que põe limites na loucura do pai, dizendo a ele: "Tudo bem, você já me mandou embora aos 9 anos de idade, agora você agüenta mais um pouco que vou conseguir o emprego e vou embora". Foi o que me relatou. Tudo parecia me dizer – ele cresce!

Logo depois, saiu o resultado da vaga e, portanto, de um trabalho mais definitivo e mais próximo do que o paciente pretendia fazer da vida (tinha muito ainda para estudar, muitos concursos para chegar à carreira de juiz). Mas, antes de saber o resultado, moveu-se mais outra parte da trama familiar.

Certo dia, a mãe me telefonou e deixou recado, pedindo que eu retornasse, pois queria falar do filho. Não telefonei imediatamente, pois, imaginei que fosse me falar da questão da espera do emprego (iria querer vir ao consultório, o que nunca conseguiu), queria ouvir primeiro o paciente. No dia seguinte, foi a vez de Tom me deixar um recado, pedindo para que eu lhe telefonasse em casa, pois queria contar melhor sobre o resultado do concurso. Retornei a ligação, e foi a mãe quem me atendeu, indagando se eu havia recebido o recado dela; respondi que sim, mas que não fora possível retornar e supunha que seria sobre espera do emprego, que então, nesse momento, já se resolvera. Então ela retrucou: "mas eu sofri muito".E isso terá suas conseqüências, como veremos

Tom começou a trabalhar. Sentiu então algum medo, dificuldades, mas foi se adaptando melhor com relação a outros lugares onde havia trabalhado. Imaginei e aguardei então que ele voltasse a me pagar. Primeiro ele assinalou que continuaria vindo apenas duas vezes por mês; em seguida, começou a criar problemas por causa do pagamento. Depois, começaram as dificuldades para fixarmos as datas das sessões. Lembro novamente a metáfora mão e luva (1989); diria que a mão começou a aparecer para além da luva. A transferência negativa está ali desde o inicio do tratamento(Freud, 1917), contudo não se pode prever a que nivel de negatividade. A transferência na análise é a resistência mais poderosa, nos diz Freud (1912).

Segundo Etchegoyen (1987), há circunstâncias em que o método psicanalítico falha (ao mesmo tempo em que o confirmam). Destaco uma delas –a da resistência externa a uma ofensa, pequena injustiça.

Eis minha "ofensa". Tom passou a ter um celular, que, na verdade, era do pai, mas ficava com o paciente para que recebesse recados. Um dia, precisei desmarcar nosso horário, e deixei recado nesse celular. Mas ele não ouviu minha mensagem e esteve no consultório. Procurou então o zelador do prédio do consultório; este, posteriormente, me contou que o rapaz havia ficado bravo com minha ausência. Essa minha "ofensa" deve ter sido sentido como humilhação, tendo em vista a sua história de vida.

Isso desencadeou mais o aparecimento da mão sem a luva. A analista -aquela que era boa ficou a má. Foi detonado então um processo de "inimizade" e de retaliação. Perdi a aliança com o ego do paciente (Freud, 1937). Poder-se-ia também refletir, de início, como isso desencadeou o que Winnicott (1971) denomina uso do objeto – a possibilidade de o paciente expressar a sua raiva no analista (da raiva original nele retida). Mas é o próprio autor que também diz do uso do objeto, não da retaliação deste. Com a retaliação, já se está no processo da estrutura da maldade, processo esse que vinha se ponteando.

Inspirados em Bolas (1997), observemos a relação de Tom com o pai, sendo que este portava ao filho um processo geracional da estrutura da maldade. O pai, que já se identificara com o avô nessa estrutura, ora era vítima (o deprimido) ora o malvado, e então era Tom quem cumpria o papel da vítima. Mas vale perceber, ainda com o autor citado, que o par também teve suas reviravoltas, pois o paciente, quando adolescente e também "adulto", por vezes deve ter "enlouquecido" o pai, já possuído da mesma estrutura. Quero dizer que essa estrutura estava aí latente sempre. Ela só emergiu comigo agora, pela transferência. Por essa situação compreende-se bem mais a acuidade do que diz Freud – sobre a compulsão a repetir como forma de recordar. Agora ele tinha de "recordar" aquele perverso na transferência, mas sem o saber. Ainda com Freud (1914) – como "recordar" algo que não pode ser "esquecido", pois nunca fora consciente? Lembremos os dragões bom e ruim.Os dois eram de Tom. O seu sonho sobre ser ele era malvado, era inacreditável para ele. E no momento, mesmo para mim, pois eu tinha um adolescente desvalido diante de mim Fortaleceu-se o bom/fraco, e pode emergir o dragão cruel?

Levanto a pressuposição – na medida em que Tom adquiriu um trabalho fixo (como funcionário público), tem em principio a garantia de que não ser despedido ("não ser mandado embora"), adquiriu um falo/poder (igual ao pai?). O "dragão" mudou de lado – deixou de ser a vítima e passou a ser o algoz!

Havia também o ciúme da mãe. Tom vinha vindo estranho, eu já me tornara um pouco a estranha para ele; em uma sessão, foi particularmente desagradável: acabou contando que a mãe lhe falara do recado telefônico não respondido por mim (E penso: ’traindo’ você, Tom, não lhe contando a ‘aliança’ com sua mãe"?). Mais uma ofensa de minha parte? Lembro do opressor fazendo do outro a vítima – e que melhor candidata do aquela que Tom projetara em sonho pai/mãe (figura De Niro de cabelos ruivos), aquela para quem ele contou todos os seus segredos? Aquela que "errou", "traiu" nas "ofensas"? Tratava-se então de nela humilhar o pai, de poder expulsá-la de casa(do lugar que ocupa). Tom estabeleceu um "maltrato" comigo: para falar com ele, não deveria ser pelo celular de recados, como combinado anteriormente; eu deveria telefonar na hora de seu almoço, e sua mãe se encarregaria de chamá-lo. Já se vê querer dominar o outro, malignamente.

Enfim, nessa ocasião, Tom não compareceu à uma sessão e deixou recado para que marcasse um outro horário. Mas fez isso como uma ameaça, em mensagem na secretária eletrônica do consultório - "precisávamos falar porque eu tenho outros planos", que eu telefonasse para sua casa no horário de almoço. Se ele pagasse o tratamento talvez tivesse a "moeda" a contrapor contra o "poder" da analista e seguir a análise. E alçar força para romper a resistência de enfrentar o seu "dragão ruim". De meu lado, percebi que eu já passara dos meus limites suportáveis, mesmo como analista. Com a análise, ele já conseguira muito para sua vida, título de advogado, emprego, dinheiro, auto-estima, relacionamentos melhorados etc. Gostaria de poder seguindo na sua próxima etapa analítica, mas passei a não gostar do mal estar que eu estava sentindo.

Era preciso pôr um limite. O paciente não vindo ao setting, nada eu poderia fazer. O setting é, de fato, uma proteção para o analista, ainda mais nessas circunstâncias (Winnicott, 1975). O limite foi expresso na mensagem que deixei em seu celular de recados, dizendo que ele já tinha alcançado muito pela análise feita, que seguisse então esses outros "planos" e que esperava que continuasse análise com outra pessoa, porque havia ainda caminhos a percorrer.

Tom gostaria de ser um herói conforme Campbel. Mas isso implicaria aprender muitas renuncias ainda. E Tom, ainda está enredado a uma trama familiar patológica, sendo preciso não só que ele faça renúncias, mas também outros membros da família, como a mãe, que tem de renunciar a esse filho. A clínica tinha de ser agora a clínica familiar.

Por fim, o que é limite da analista? É enfrentar ela também a desilusão, a renúncia, porque, como analistas, queremos que todos os pacientes consigam chegar até o fim mais próximo de suas análises e próximos do ideal que sentimos para eles. Limite aqui é saber e poder abrir mão disso. Desapegarmo-nos da onipotência, da idéia de que poderíamos ter avançado de modo diferente. Provocamos a vinda de tantos fantasmas e depois eles se voltam contra nós. É preciso ter em mente que não temos controle do processo analítico da maneira, que as vezes, imaginamos. Freud (1937) explicita isto muito bem pelo jogo de xadrez(1). E mais: sem que o paciente retorne ao setting, nada pode seguir nesse processo analítico, a não ser o que se fez no trabalho possível. De algum modo, o paciente (Tom) tem muito mais condições, do que antes, de fazer escolhas, de vir a se apropriar mais da própria vida.

Notas

(1) - A proteção do/no setting é essencial como suporte para o analista poder lidar com o ódio do paciente e conseguir encaminhá-lo para a fase seguinte conforme Winnicott (1975). Conseguimos dar esse encaminhamento para a fase seguinte no caso do paciente L.. Cf. Manzini-Covre, ML, Procedimento Analítico, Regressão e Análise terminável e interminável, in Pulsional (Revista de Psicanálise) ano XIV, nº 142, SP, Ed. Escuta, 2001.

Referências Bibliográficas

Abram J., André Green e a Fundação Squiggle , São Paulo, Roca, 2003.

Barenger W., Goldstein N., Goldstein R., Acerca de la desidentificación, in Revista de Psicoanálisis T. 46, n. 6. Buenos Aires: Kargieman, 1989 (tradução provisória de J.Outeiral)

Bolas C., La estrutura de la maldad, Buenos Aires, 1997 (mimeo para uso no Grupo de Estudos de Winnicott, coordenado por J.Outeiral).

Campbell J., Moyers B., O poder do Mito , São Paulo: Palas Athenas, 1990.

Etchegoyen H., Fundamentos da técnica psicanalítica, Porto Alegre: Artmed, 1987.

Freud S., Obras psicológicas completas, Rio de Janeiro: Imago, 1969.

Lacan. J Seminário 4 - A relação de objeto, Rio, Zahar Edit, 1995

Laplanche e Pontalis, Vocabulário da Psicanálise, São Paulo, Ed.Matins Fontes, 1995

Manzini-Covre, ML, Procedimento Analítico, Regressão e Análise terminável e interminável, in Pulsional (Revista de Psicanálise) ano XIV, nº142, SP, Ed. Escuta, 2001

Outeiral J., Desidentificação, São Paulo, 2004 (mimeo)

Winnicott D. W, O brincar e a realidade, Rio de Janeiro: Imago,1975.

Volver al sumario del Número 24
Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 24 - Diciembre 2007
www.acheronta.org