Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Transferência: articulações entre psicanálise e desconstrução
Charles Elias Lang

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Primeiras considerações

A Correspondência (1986) de Sigmund Freud a Wilhelm Fliess é ocasião em que podemos vislumbrar a "cozinha" do escritor de A interpretação dos sonhos (1900), o momento do anuncio de Freud, numa promessa, que o "livro dos sonhos" está pronto em sua mente. Se uma conversa vis a vis com Freud não fosse algo ficcional, talvez ele poderia nos contar o que estava pensando, qual era a grande linha de seu pensamento, as teses, os pontos fortes e fracos de seu livro, os principais argumentos.

O livro estava pronto, em sua mente. A fala, naquele momento, estaria mais próxima do que estava em sua mente?. Restaria ainda escrevê-lo, e o escrever seria suplementar, secundário?

O livro escrito seria um substituto do "livro na mente" e da fala?

Escrito e publicado, o livro chegou a nós, um século depois. Além de suplemento de uma ausência e de instrumento de telecomunicação da voz, atingindo destinatários para além da presença e do tempo presente, o livro eliminou a dialética da fala, da conversação. Possibilitou que Freud fosse compreendido de diversas maneiras, durante os últimos 100 anos, e o entregou à arbitrariedade interpretativa de cada leitor. Para além da fala, o livro criou o espaço em que Freud não pôde responder às dúvidas e inquietações do outro, o espaço em que o autor não domina os efeitos que sua fala e sua presença poderiam controlar.

O livro constituiu o espaço e o tempo do substituto.

A sabedoria de Platão (Platão, apud Derrida, 1997a) aconselhava a falar; e a evitar a escrita. O ideal de Platão seria manter o livro na própria mente, transmiti-lo somente pela via oral, fazer com que o outro interessado decorasse palavra por palavra, após a devida explicação do sentido a ser retido e do esclarecimento das dúvidas e mal-entendidos; só assim o sábio precavido poderia controlar a interpretação, evitar que suas idéias caíssem no domínio público e fossem distorcidas e banalizadas. Para Platão, o melhor é não escrever.

Pois bem, se a tradição ocidental tivesse dado ouvidos a Platão nesse aspecto particular, não haveria nem a obra de Freud, nem leituras, interpretações ou diálogos com Freud; somente a transmissão de palavras (decoradas) e de um sentido autorizado no interior de uma genealogia em que o primeiro e último termo seriam a Voz e o ouvido da palavra proferida pela boca do Pai da Psicanálise. Diferenças de sentido, se houvessem, seriam atribuídas à intervenção da subjetividade, de algo que ocorreu entre o recebimento e a transmissão da mensagem; não faltariam atores a reivindicarem a repetição do que Freud realmente disse. A repetição fiel de um Mesmo, de um Sentido, da Voz, da Fala e da Presença, sem subjetividade, seria a maior qualidade e o certificado de autenticidade e de fidelidade ao Mestre.

Postas as coisas assim, todos, que temos acesso àquilo que Freud escreveu e que foi publicado, poderíamos nos autorizar a ler e a interpretar Freud, já que chegamos muito tarde para ouvir a Voz do Mestre e quando qualquer leitura nunca é virgem nem ingênua, o que talvez nos permita ler Freud, sempre de um outro modo?

A estratégia de leitura-escritura desconstrutiva.

"Leitura" vem do latim medieval, lectura . "Ato ou efeito de ler, arte de ler, hábito de ler, aquilo que se lê ou o que se lê, considerado em conjunto". Ainda, "arte de decifrar e fixar um texto de autor, segundo determinado critério".

A leitura é um ato... e um efeito (de ler). Uma arte, um hábito, mas também algo, "aquilo" que se lê ou o que se lê. Podemos perceber que essa definição nos inclui, na medida em que estamos lendo estas palavras. Tu, que agora lês, és também, uma leitura na medida em que, de alguma forma, me lês; o que faz com que fracasse uma definição geral, um significado geral da palavra abstraída da experiência particular, da experiência da leitura.

A leitura é a impossibilidade de uma posição, de um lugar que já não seja uma relação, uma exposição a alguma coisa, a alguém ou ao outro. A leitura não é uma posição, mas uma relação ex-posta. Não existe um texto e um leitor, mas alguém que lê e, ao ler, constitui um texto ao mesmo tempo em que o texto o constitui como leitor. É mais uma relação diferencial do que pontos unificados.

Derrida chama de "desconstrução" 2, o trabalho pelo qual instituições, obras, textos são abertos à diferença ou à exterioridade reprimida dentro de si mesmas, às suas ex-posições, aquilo que em seu interior são movimentos eruptivos do traço; movimento que pela própria dinâmica do texto necessariamente oculta o traço e produz a sua auto-ocultação. Essa exterioridade, este ex-posto não é pura exterioridade, algo extra ou sobre institucional, mas uma contaminação necessária dos interiores e dos exteriores. A desconstrução é um trabalho que ocorre nas margens, nos limites dessa oposição organizadora e nomeia o movimento ou trabalho de abertura de textos para a diferença esquecida dentro de si. É algo que está acontecendo, indo e voltando, é algo que está ocorrendo, todas as locuções transitivas que deslocam os nós de qualquer presente estável.

No momento em que Freud começou a escrever o texto que, por fim, foi publicado com o título de A interpretação dos sonhos (1900), ele começou a "ler" este "livro na mente" mas, na medida em que ele escreve, o "livro dos sonhos" é apagado. O que dele resta é o é o traço. O livro publicado não é o "livro dos sonhos", mas a sua leitura-escrita. Apaga-se o livro quando se escreve um livro.

Nessa perspectiva, parece conseqüente pensar cada um dos textos posteriores escritos por Freud como uma leitura-escritura da Opus magna, o "livro dos sonhos". A desconstrução, portanto, não é, estritamente falando, somente uma estratégia de leitura, mas também a condição de possibilidade da produção de um novo texto. Como estratégia de leitura, sua peculiaridade reside em que ela recobra todo o trabalho de escrita. O que lemos do "pensamento" de Freud são os textos de Freud, o mecanismo textual – a regra de composição – que ultrapassa, ou que ultrapassou as intenções de quem produziu um texto, ou as intenções que pretende manifestar o próprio texto. Essa leitura trata de defrontar-se com o deslize textual em que se manifesta algo que ultrapassa o que o texto está propondo, que o texto é um modo de propor e que ele é uma estratégia.

A leitura não busca o que o texto queria dizer, mas respeita o princípio de que todo texto já é uma leitura e de que toda leitura só o é escrita. Assim, a leitura se dá entre o dizer e o querer dizer. O vouloir dire do texto se dá no depois de uma leitura: o que se lê depois vai significar o que se leu antes.

Assim podemos pensar em quatro princípios norteadores: 1) não há como se chegar à intenção e identidade últimas de um texto; 2) há, fatalmente, uma alteração do sentido; 3) o referente e a realidade têm a estrutura de um traço diferencial, e não se pode chegar a esse real a não ser por uma experiência interpretativa; 4) o contexto total jamais pode ser exaustivamente definido. Por conseqüência, o contexto da interpretação do texto assim como o texto interpretado, ainda que possam ser explicitados, jamais podem ser totalmente dominados.

Um texto tem uma força que lhe é própria, uma lógica, sua estratégia singular. A escrita, como differance 3 implica uma ruptura da presença, um certo absoluto da ausência; ausência que torna possível a legibilidade, sua repetitividade por qualquer outro. Abandonado a sua deriva, não por acidente, mas essencialmente pelo fato da ausência a si mesmo do pretendido autor, o mesmo é livre à sua repetição pelo outro a favor da iterabilidade do código.

A leituras desconstrutiva, em geral, detém-se nas zonas marginais do texto, às notas de pé de página, aos trabalhos pouco relevantes, aos lugares comuns, aos jargões, aos florões, às metáforas; lugares em que a vigilância de quem escreve poderia ter sido menor. O marginal é convertido em centro, centro e a margem se manifestam em um único território, o da textualidade. Deslizes textuais não são considerados meros acidentes da escrita como representação da fala, mas a essência da linguagem enquanto tal.

No caso de uma psicanálise, a escrita que temos é a fala de um paciente. No caso da leitura de um texto, o que temos (tradicionalmente) é um texto escrito em caracteres alfabéticos. Se, tradicionalmente, a escrita era considerada como um substituto ou uma representação vicária da fala, do ponto de vista desconstrutivista teremos que entendê-la como a base de toda a realidade e de toda linguagem. O valor de um enunciado não se encontra mais assegurado pela sua ligação a um emissário ou a um determinado autor. Como a escrita, o emissor e sua mensagem estão sempre necessariamente distanciados pela própria essência da linguagem.

Derrida (1973 e 1997a) ensina que a tradição ocidental concebe a fala como a representação da presença viva do pensamento, oposta à escrita (compreendida como uma representação secundária e imperfeita). A fala como o filho legítimo da alma, do Logos vivo, o mais próximo do pai; a escrita seria o filho bastardo, estaria localizada num "fora" do próprio sistema lingüístico porque seria uma imagem, uma representação que se opõe à realidade ou à presença da fala viva e da voz. Assim como a imagem não remete diretamente à coisa, a representação não repete, mas desdobra. O pensamento, a verdade, a razão, o logos se exteriorizam pela fala que estabelece uma ligação natural entre um conceito e um som, ou entre um significado e um significante. A escrita, em contrapartida, como representação mediadora, não permitiria uma remissão a uma origem simples, a uma consciência imediata, mas produziria uma fenda, tornando-se indesejável, violenta e maculadora da inocência da linguagem. Como o corpo e a matéria, a escrita, a letra, a inscrição sensível, sempre foram consideradas como exteriores ao espírito, ao sopro, ao verbo e ao logos. É o que Derrida chama de Logocentrismo. A fala seria transparente, não envolveria interpretação e haveria uma ligação direta (e natural) entre a voz, a alma e o logos; relação em que o significado se constituiria por sua proximidade com esse, com a verdade.

Freud pretende que Fliess creia que o "livro dos sonhos" está pronto em sua mente e, por conseqüência, a fala sobre o livro estaria mais próxima do livro, como se a fala estivesse mais próxima do "significado". A escrita conseqüente seria o trabalho ainda a ser feito. Mas se o livro estava pronto, escrever revelaria a sua incompletude. "Estar somente na mente" do autor é insuficiente; daí que o livro não estava pronto enquanto não fosse escrito. E mesmo escrito e publicado, o livro não foi o suficiente. É o que testemunha o contínuo trabalho de revisão e de adições, feitas por Freud, nas edições posteriores.

O livro escrito pode ser compreendido como a escrita de uma arqui-escritura (o livro na mente) e que, como trabalho de escrita, tanto um trabalho de leitura de uma arqui-escritura como a escritura de uma interpretação dessa mesma arqui-escritura. O livro dos sonhos, portanto, somente passa a existir como A interpretação dos sonhos; o que não implica que até então ele não tenha existido. Ele existia, mas como uma arqui-escritura, num estado de espera de uma leitura, de uma interpretação e de uma escrita. Freud, ao anunciar o "livro dos sonhos" e ao escrever A interpretação dos sonhos, realiza um trabalho de leitura, de interpretação e de escrita. É no só depois da leitura escrita do "livro dos sonhos" que se constituem, simultaneamente, A interpretação dos sonhos e a sua arqui-escritura.

A leitura-escritura desconstrutiva não é um trabalho de pura associação livre mas uma estratégia que estabelece como ponto de partida a distância entre o que o autor conscientemente intensionava ou pretendia dizer, o que comanda no texto, e o que ele não comanda e foge (no texto). É essa distância que a leitura desconstrutiva deve produzir. Ela transgride a proteção que a primeira leitura oferece, ao considerar que a coisa em si, o ser real, ou o significado transcendental – uma realidade objetiva, absolutamente anterior a todo trabalho do traço, um conteúdo semântico ou uma forma de presença garantidora de fora do movimento do texto em geral – não existem fora do texto. Assim, o acesso à coisa em si (o noumenon kantiano) já é uma interpretação (um fenômeno), e todo texto deve ser considerado como uma interpretação e não como uma descrição. Se Il n´y a pas de hors-texte, não há referência sem diferença, sem o recurso a sistemas diferenciais, e a aquilo que comumente chamamos de realidade é caracteristicamente textual; toda apreensão dessa mesma realidade, já é, em si, uma interpretação.

Ler e interpretar são atividades que se distinguem, se tomadas individualmente, mas que, relacionadas, guardam características comuns. Trata-se sempre de um texto que se constitui ä medida em que é lido, e toda leitura é uma espécie de tradução 4, de passagem, de modo que nenhuma leitura é tão cuidadosa quanto aquela que compõe a mais simples das traduções bem realizadas (Arrojo 1993, p. 54).

Psicanalisar e desconstruir: a poltrona e a escrivaninha

Como analistas, estamos na situação de um leitor quando lemos os textos de Freud, por um lado, e, por outro, como um leitor que lê (escuta) textos produzidos por pacientes em análise. Construções de pacientes, textos de Freud, de Derrida são, para nós, leituras-escrituras. Quando escrevemos "casos clínicos" ou sobre as leituras que realizamos de Freud, produzimos leituras-escrituras. Hills Miller (1995, p.52) nos faz acreditar que a interpretação de um texto literário e o tratamento de um paciente são tarefas análogas. O leitor-analista procura em Freud um auxílio para seu próprio trabalho, o outro busca em Freud fundamentos para a interpretação de obras literárias. Mas pode-se comparar um texto com um paciente? 5 Não! Aqui está a grande diferença a ser respeitada para que a analogia possa sustentar-se.

A analogia pode mostrar produtiva se a deixarmos funcionar de modo que se entreveja um duplo sentido. Quando Freud (no caso Dora) diz que uma transferência é uma nova edição de um texto antigo (o que chamamos de uma arqui-escritura) ele utiliza a palavra Übertragung. Mas há uma outra palavra próxima, Übertsetzung :

" (...)Tanto übertragen (transferir) como ubersetzen (traduzir) podem significar "traduzir" em alemão. Pela mesma razão, "traduzir" e "transferir" têm a mesma derivação em inglês (translate e transfer), do latim translatus; sendo que latus é o particípio passado supletivo de ferre, conduzir, carregar, transportar, daí trans-fer. Tragen, naturalmente, tem o mesmo significado, isto é, conduzir, carregar, transportar. Übertragen, übersetzen, transferir, traduzir: carregar para o outro lado – implicando alguma forma de transporte, que é novamente a "mesma" palavra: portare, transportar. Eis a razão pela qual Freud pode dizer com precisão clínica e etimológica que transferência é o veículo do sucesso da psicanálise, assim como em qualquer forma de tratamento" (Bass, In: Ottoni,1998, p. 88).

Para Michaud (In: Ottoni,1998, p. 96) o conceito de tradução (Übersetzung) é inseparável (devido à sua etimologia e sua rede semântica) das noções de metáfora e transferência (Übertragung). Mas, o que é uma transferência (ou transferências)? Em Miller encontramos uma citação de Freud que nos fornece uma elucidação:

“São novas edições ou fac-símiles dos impulsos e fantasias que surgem e se tornam conscientes durante o desenrolar da análise; mas elas têm essa peculiaridade, que é característica de sua espécie, de substituírem alguma pessoa conhecida pela pessoa do médico...Algumas dessas transferências têm um conteúdo que não difere em nada do conteúdo do seu modelo (Vorbilde) exceto pelo fato da própria substituição (Ersetzung). Estas são, portanto - para manter as mesmas metáforas (Gleichnisse) - meramente novas impressões ou reimpressões. Outras são construídas com mais engenhosidade; seu conteúdo foi submetido a uma influência moderadora – à sublimação, como vou denominá-la - e podem até mesmo tornar-se conscientes, quando se aproveitam, com inteligência, de alguma peculiaridade real na pessoa do médico, ou nas circunstâncias, e se agarram a ela. Estas, então, não serão mais novas impressões, mas edições revistas” (Freud apud Miller,1995, p. 54).

Metaforicamente podemos pensar um paciente como um texto. A fala de um paciente é um texto, mas não é apenas, um texto. Se o crítico literário confronta-se não com uma pessoa real, mas com um texto real, um certo número de traços sobre uma página, que jamais poderá sofrer ou reagir ao crítico, ou mesmo rejeitá-lo e dizer um “não”, o mesmo não se dá para o analista. Seu paciente é uma pessoa de carne e osso, a encarnação de signos como sintomas. Mas, mesmo assim, o analista e o crítico literário estão em situação semelhante. O analista – que está diante de uma voz (uma voz que não é a Voz, o Sentido, o Significado, mas uma leitura-escritura), diante do processo, da escritura de uma arqui-escritura, quanto o critico literário – que também está diante da escrita de uma arqui-escritura -, trabalham com textos. É o momento de introduzirmos uma distinção conceitual entre escrita e escritura. “Escrita” é o resultado, o semi-acabado. “Escritura” é o processo do qual resulta uma “escrita”.

O que Freud procura demonstrar com sua tese do inconsciente é que um texto pode ser separado de seu autor (assim como de suas intenções) e das circunstâncias concretas de sua criação (e conseqüentemente, de seu referente intencionado), flutuando no vácuo de um leque potencialmente infinito de interpretações possíveis. Mas não se estaria autorizado a dizer que ele pode significar qualquer coisa. Pode significar muitas coisas, mas há sentidos que seria despropositado sugerir. Se há algo a ser lido, traduzido e interpretado, isso deve falar de algo que deve ser encontrado em algum lugar, e de certa forma respeitado.

Esse lugar, as circunstâncias concretas nas quais o paciente se apresenta como um texto, não é simplesmente um contexto, mas também a condição de possibilidade (e de impossibilidade) de que algo apareça como algo. É uma situação concreta em que os processos mentais inconscientes encontram-se alienados nas dimensões psíquicas da linguagem, produzidos na fala modulada pela regra fundamental e sob transferência, quando o paciente é convidado a abandonar uma atitude de reflexão e passar a uma atividade de auto-observação, para dizer tudo o que lhe vem em mente tal como vem.

A partir da perspectiva psicanalítica, ao invés de uma transferência impessoal de significados, qualquer leitura/interpretação/tradução reproduz uma relação transferencial entre os envolvidos, na qual está em jogo uma rede (uma teia) de sentimentos contraditórios. Nisso o paciente não é um texto "exterior" à situação, mas participa de um texto que se constrói (uma escritura) a partir da relação transferencial na qual tanto ele como seu analista, estão envolvidos. Suleiman (1975, apud Arrojo, 1993, p. 38) redimensiona o conceito de transferência, a partir do que chama de emaranhamentos:

"Emaranhamentos entre pessoas, personagens, textos, discursos, comentários e contracomentários, traduções e notas de rodapé e outras notas de rodapé de histórias reais e imaginadas, cenas vistas e contadas, reconstruídas, revistas, negadas; emaranhamentos entre o desejo e a frustração, o domínio e a perda, a loucura e a razão (...) Resumindo numa palavra, amor. Que alguns chamam de transferência. Que alguns chamam de leitura. Que alguns chamam de escritura. Que alguns chamam de écriture. Que alguns chamam de deslocamento (displacemente), deslizamento (slippage), fenda (gap). Que alguns chamam de inconsciente".

A prática clínica é uma prática tensionada por dois vetores – a linguagem e a transferência, onde o inconsciente não é uma entidade metafísica ou abstrata, nem uma entidade biológica ou um substrato psíquico mensurável ou quantificável, mas estruturado como uma linguagem. Nesse sentido, a análise é uma prática de linguagem, uma escritura, que se sustenta na e pela transferência. Mas nem por isto estão ausentes elementos pré-linguísticos ou que fujam às configurações lingüísticas. A transferência constitui, organiza e projeta uma determinada dimensão psíquica, passível ou impossível de análise.

Freud descobrira que a neurose vulgar não é passível de ser tratada a não ser no registro da neurose de transferência 6; o tratamento só é possível numa dimensão constituída pela transferência, pela escritura, em que determinados elementos aparecem ou são obliterados..

Ler e escrever são lugares, posições. No par analista/analisando, aquele que fala ocupa uma posição distinta (assimétrica) daquele que escuta. O outro par é entrevisto na passagem daquele que escuta (a poltrona atrás do divã) para o lugar daquele que escreve à escrivaninha.

Algo sempre é construído topologicamente: lugares e posições são anteriores aqueles que os ocupam. Tanto aquele que escreve quanto aquele que lê (seja o analisando, seja o analista em sua poltrona ou em sua escrivaninha – ou computador) estão diante dos limites da linguagem. Limites que propiciam uma leitura-escritura.

Ao falarmos em lugares e posições, pensamos estar extraindo da própria situação concreta de uma psicanálise, e do dispositivo analítico, um modelo para pensar o locus do texto em psicanálise. Tal modelo permite apreender o lugar do texto que teoriza a escrita resultante da escritura psicanalítica, uma dimensão eminentemente transferencial na qual analista e paciente estão emaranhados.

Psicanálise e desconstrução

Jacques Derrida, em seu Resistências da psicanálise (1996) focaliza o problema da resistência à e o do da resistência da Psicanálise, para nos sensibilizar para o que ele chama de um "axioma de interminabilidade da psicanálise". Para Derrida, a psicanálise é uma prática que todo mundo realiza sendo psicanalista quando lhe dá na veneta (à ses heures), em certos momentos e de acordo com sua fantasia ou com seus caprichos. Isso vincula, como decorrência, a continuidade que, para ele, tem a análise (em geral) e a psicanálise (em particular). Daí surge a questão: análise (desconstrução) e/ou psicanálise?

Não é possível defender, pacificamente, uma conjunção; do mesmo modo que não podemos desvinculá-las como auto-excludentes. O caminho, então, é pensarmos a especificidade na Psicanálise e o que a exclui de toda generalização; e a defesa de uma concepção de Psicanálise distinta da de Derrida. Em Derrida se apresenta uma Psicanálise evidentemente desvinculada da particularidade do real da prática clínica, e ele sustenta, teoricamente, uma assimilação entre Desconstrução e Psicanálise.

O Derrida, "psicanalista quando lhe dá na veneta", mas nunca psicanalista quando um paciente lhe solicita uma primeira entrevista, Derrida desconstrutor como "analista", ocupa-se de formas des-subjetivadas (não psicanalíticas) da Memória, de seus arquivos e de sua aplicação em todo tipo de práticas, relacionando a Psicanálise com uma ciência geral e interdisciplinar do arquivo ou "arquivologia" 7. Assim, não se pode perder de vista a diferença entre uma ordem de problemas próprios da filosofia derridiana e o que corresponde a uma problemática freudiana. A escrita com que se lê não é da mesma ordem que aquela que constitui o escrito psicanalítico que é lido com a primeira. O modo como se articulam os escritos é distinto para a Psicanálise e para a Desconstrução.

Para a Psicanálise a leitura-escrita de um texto (seja ele um texto escrito e publicado de Freud, seja ele a fala de um paciente) se aproxima de um diálogo onde o analista leitor busca em Freud referências para seu trabalho ou pode confirmar a pertinência (ou não) de sua leitura pela aquiescência (ou não) de seu paciente. O filósofo, o crítico literário quanto o "analista" desconstrutor estão mais próximos de um monólogo (nem sequer de um diálogo, ainda que fosse de surdos).

Na Psicanálise, seja ela em "intensão", seja ela em "extensão" (termos de Lacan), seja ela na leitura do que ocorre num processo analítico, seja na leitura do tecido cultural ou na prática especulativa, há sempre uma precisão e limites de sua especificidade 8. Precisão e limites distintos daqueles da Desconstrução, ainda que em certos momentos ambas possam visitar-se, esclarecer-se, acolher-se. Momentos em que um interesse mais filosófico e o interesse estritamente psicanalítico do analista coincidem. Mas nem por isso o término de uma desconstrução (infinita por princípio) tem as mesmas conseqüências que o final de uma psicanálise (que tanto pode ser por abandono do paciente, por morte do mesmo ou do analista ou por uma determinada posição subjetiva alcançada pelo paciente). Uma leitura-escritura de textos psicanalíticos, por sua vez, e respeitando a especificidade e os limites da Psicanálise, iluminada pela estratégia desconstrutiva, não pode, em si e por si, ser infinita, mas pode encontrar seu termo onde o analista-leitor encontre-se satisfeito em suas questões (em seu "sintoma" da leitura, portanto).

Um grande exemplo, que põe em relevo a diferença entre a Desconstrução e a Psicanálise, pode ser extraído da leitura que Derrida (1996) faz da questão do "umbigo do sonho" apresentado por Freud em A interpretação dos sonhos. Todo sonho, quando se faz uma análise "completa", permite a interpretação como realização de desejo puro. Quando escreve sobre o " umbigo do sonho" no sonho da "injeção em Irma", Freud reconhece que não pretende haver desvelado completamente o sonho. Derrida assinala que, com isso, Freud marca um desconhecido absoluto e não um limite provisório a espera de ser alcançado pela interpretação, e o formula com uma tradução dos termos alemães Unergründlich e Unerkannten: "impenetrável, insondável, inexplorável, inanalisável". Para Derrida, isso denuncia não o "não conhecido" (Unerkannten), "o desconhecido ainda por conhecer", o limite da decifração, mas o "insolúvel", "o impossível absoluto de resolver e conhecer". Daí a impossibilidade de chegar a um termo, a um limite, donde surge o axioma derridiano da interminabilidade da análise, no qual se borra a distinção entre a análise (em geral) e a psicanálise (em particular).

No entanto, se tomarmos o "umbigo do sonho" na acepção mais próxima a de Freud, ele não aparece como o absoluto incognoscível ou como o centro do desconhecido, mas como o desconhecido ainda a conhecer, que ainda não é conhecido, não por um atributo intrínseco, mas pelo limite da própria psicanálise. Sempre é possível dar um passo a mais, até o ponto de convencer-se de que o sonho é uma formação plena de sentido e ainda, na maioria das vezes, entrever este sentido.

Mesmo nos sonhos melhor interpretados, Freud reconhece (e é preciso reconhecer) um lugar em sombras. Este " lugar em sombras" (expressão do próprio Freud relativa ao "umbigo dos sonhos") não é em si e por si um absoluto desconhecido, mas o que se constitui como efeito, como resto (visado, situado, mas não atingido pela interpretação), como aquilo que não deixa se desenredar e que tampouco fez outras contribuições ao conteúdo do sonho. Esse resto não é, como para Derrida, originário, "indecidível", mas efeito, secundário, à espera de. Ele não é a impossível condição de possibilidade que exigiria uma análise infinita, interminável, mas o produzido por uma análise, em si, sempre finita. Sua finitude pode ser revelada pelo espaço e pelo momento (o espaçamento 9) no qual se entrevê algum sentido, que não é nem transcendental nem "quasi-transcendental", mas que deve seu valor e sua eficácia à sua "origem": o dispositivo técnico-teórico que o produziu.

Trata-se, tanto na Psicanálise como na Desconstrução, fundamentalmente, de enunciados e do sujeito da enunciação. Mas há também um outro, um ser humano, uma pessoa 10 que sofre e que a Desconstrução ignora.

Outra especificidade da Psicanálise é que seu método repousa sobre os meios de que se priva, no sentido do abandono da hipnose e da sugestão. Ela consiste em levar a dizer através do próprio sentido de seus enigmas, através de seus próprios questionamentos. Nisso ela deixa ao sonhador o trabalho de interpretação. O sonho não é Unsinn nem Unlogik, mas possui um valor de signo, de relação sígnica (Zeichenbeziehung). Freud postula uma química de palavras que se dividem, se reagrupam, produzindo não somente uma sobredeterminação, mas também um deslocamento, fazendo com que o elemento mais discreto possa ser o mais importante. O eu encontra-se vazio de pretensões em prol do desejo inconsciente que se realiza sozinho no sonho. Os pensamentos do sonho, que são encontrados durante a interpretação, não têm, geralmente, um fim, mas se ramificam em todas as direções. Não se trata, portanto, entanto, de uma interminabilidade da análise, mas de uma incompletude articulada ao princípio de interpretatibilidade consistente. E o propósito da interpretatibilidade está referido ao concreto da experiência analítica. Assim, uma "análise completa" e sem ambigüidades das produções oníricas, não deve ser tratada de maneira abstrata e impessoal, mas em função das condições efetivas da prática.

Ninguém pode praticar a interpretação de um sonho como uma atividade isolada: ela é sempre inscrita no trabalho analítico, não como um fim em si mesmo, mas como um meio. Seus alcances seguem somente a espacialidade e a temporalidade (o espaçamento) próprias de um tratamento. Apenas as associações do paciente são suscetíveis de verificação e, como sempre, Freud nos exige cautela ao introduzir pressupostos por parte do analista. Cada elemento do sonho é multívoco (vieldutig) e, pelo trabalho interpretativo, se apresenta ao analista como sobredeterminado (überdeterminiert), substituindo múltiplos pensamentos oníricos. Todas as ligações são, a princípio, falsas. A sobredeterminação indica que não há arbitragem última do significado de um elemento do sonho, que a univocidade de signo perde todo o seu valor no sonho.

A interpretação não é uma metalinguagem, "exterior" à clínica. Freud insiste que o saber adquirido pelo sonhador sobre seus próprios sonhos irá produzir novos sonhos. É desse lugar, pela impossibilidade de uma verificação completa (a incompletude) através dos dizeres do sujeito, que Freud chega a firmar a convergência para o que seria um núcleo fundamental: a Urverdrängung.

Consideração final

A maioria dos comentadores de Derrida concorda em afirmar a existência de "dois Derrida". Um primeiro, mais sério e rigoroso, que se dedica à leitura de textos filosóficos e um outro mais dedicado à Literatura. Ora, o que podemos afirmar é que a Psicanálise não possui o rigor tético 11 e sistemático (exigido da Filosofia) e nem o compromisso a-tético da Literatura. Se da Filosofia se exige que suas proposições sejam verdadeiras, e da Literatura que seus enunciados sejam verossímeis, a Psicanálise, em suas especulações e proposições teóricas não está nem junto à Literatura nem junto à filosofia, mas compromissada com o fantasiar metapsicológico, o qual é, por assim dizer, feito do mesmo material que o devaneio diurno, a fantasia e o sonho, e suas condições de produção são distintas da do discurso filosófico e/ou literário, ainda que neles possa se apoiar em alguns momentos. Assim, Derrida pode estar tratando a Psicanálise como Filosofia ou como Literatura. No entanto, há algo na Psicanálise que lhe é próprio e característico, ainda que a Filosofia e a Literatura possam ser campo em que as proposições psicanalíticas tenham um sentido mais claro ou amplo.

Referências bibliográficas

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 24 - Diciembre 2007
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