Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O inconsciente na primeira teoria freudiana do aparelho psíquico
Fátima Caropreso

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No texto "Nota sobre o conceito de inconsciente na psicanálise" (1912), Freud diferencia entre três sentidos que a psicanálise atribui ao termo inconsciente: o descritivo, o dinâmico e o sistemático. O termo inconsciente é usado em sentido descritivo para designar um fato psíquico que, embora ausente da consciência – isto é, não percebido conscientemente –, continue presente na vida psíquica. Esse é o sentido mais geral que é atribuído à palavra inconsciente, e ele se justifica porque se parte da suposição de que, na ausência da consciência, as representações podem continuar existindo enquanto fatos psíquicos.

Mas, além da possibilidade das representações continuarem existindo latentes na consciência, as manifestações neuróticas, assim como o fenômeno da sugestão pós-hipnótica, revelaram que elas mantêm ainda sua capacidade de ação na vida psíquica, sendo capazes, inclusive, de produzirem efeitos na consciência. Haveria, assim, um psíquico inconsciente e "efetivo". Com isso, Freud passa de uma concepção descritiva do inconsciente para uma "dinâmica". Em sentido dinâmico, o termo inconsciente designa pensamentos e representações que, apesar de sua intensidade e de sua ação eficiente, permanecem afastados da consciência e insuscetíveis de se tornarem conscientes.

Mas há ainda o terceiro – e, segundo Freud (1912), o mais importante – sentido atribuído ao termo inconsciente pela psicanálise: o sistemático. A análise dos sonhos, diz Freud, mostrou que esse psíquico inconsciente e insuscetível de se tornar consciente é governado por leis diferentes e, portanto, possui propriedades diferentes daquelas do psíquico suscetível de se tornar consciente; trata-se de uma categoria psíquica à parte. Essa constatação, diz ele, foi o que o levou a introduzir na teoria a hipótese de um sistema inconsciente, a qual visa estabelecer as características peculiares aos processos psíquicos insuscetíveis de se tornarem conscientes.

A noção de inconsciente dinâmico – tal como Freud a formula em 1912 – aparece pela primeira vez na obra freudiana no "Projeto de uma psicologia"(1895/1950). Como conseqüência, surge também aí a possibilidade de uso de tal palavra em sentido descritivo. No capítulo sete de "A interpretação dos sonhos" (1900), Freud apresenta, pela primeira vez, o conceito de inconsciente em sentido sistemático, o qual é retomado nos artigos metapsicológicos de 1915. O objetivo deste artigo é fazer uma análise da origem e do desenvolvimento da noção de inconsciente psíquico na primeira teoria freudiana do aparelho psíquico.

1. A origem da noção de inconsciente psíquico na teoria freudiana

No "Projeto de uma psicologia" – texto escrito em 1895, mas publicado apenas postumamente em 1950 –, encontramos pela primeira vez na teoria freudiana um reconhecimento explícito da existência de um psíquico inconsciente. Em "Sobre a concepção das afasias" (1891), Freud havia mantido a identificação entre o psíquico e o consciente. Nesse texto de 1891, ele adotara a doutrina da concomitância do neurologista inglês Hughlings Jackson (1884), segundo a qual o psíquico e o neurológico seriam dois fenômenos que ocorreriam em paralelo, sem que houvesse interferência de um sobre o outro; ele formulara ainda a hipótese de que a representação seria o correlato psíquico de um processo cortical associativo. Nesse texto, a possibilidade de existência de algo psíquico e inconsciente é claramente recusada: todo psíquico seria consciente. Freud argumenta que o processo cortical que corresponde à representação deixa atrás de si modificações, as quais permitem que o mesmo processo seja suscitado e que a mesma representação ressurja em paralelo a tal processo, mas, sempre que surge uma representação, esta é consciente. Não há justificativa para se supor algo psíquico que permaneça latente na consciência.

Em "Sobre a concepção das afasias, como observa Simanke (2004), a representação é ainda concebida como um fato de percepção e, portanto, como algo necessariamente consciente. Para que as noções de representação e de consciência possam ser desvinculadas, será preciso formular uma teoria que conceba a representação como um fato de memória. Embora o ensaio sobre as afasias lance as bases para uma concepção dinâmica da representação – da qual se nutrirá toda a metapsicologia posterior –, ele não comporta uma teoria da memória à altura das redefinições que aí se esboçam sobre a natureza do fato psíquico, e esta lacuna constitui, nesse momento, um obstáculo ao reconhecimento do inconsciente.

Nos textos sobre as neuroses que se intercalam entre a redação da monografia sobre as afasias e a do "Projeto...", embora Freud reconheça a necessidade de supor que há processos inconscientes que determinam os sintomas neuróticos e até fale em algumas ocasiões em "representação inconsciente" ou "subconsciente", ele manifesta sua dúvida quanto a considerar tais processos inconscientes como psíquicos ou como meramente físicos. Em outras palavras, ele se pergunta se tais processos inconscientes seriam processos puramente neurológicos que poderiam influenciar o psíquico ou se seriam processos psíquicos de fato. Nesse último caso, a hipótese da identificação entre o psíquico e o consciente teria que ser descartada. Na seguinte passagem de "As neuropsicoses de defesa" (1894), Freud manifesta claramente essa sua dúvida:

A separação entre a representação sexual e seu afeto, e o enlace deste último com outra representação, adequada porém não inconciliável: eis aí processos que acontecem sem consciência, que somente é possível supor, e nenhuma análise clínico-psicológica é capaz de demonstrar. Talvez seria mais correto dizer: estes, de modo algum são processos de natureza psíquica, mas processos físicos cuja conseqüência se figura como se real e efetivamente tivesse acontecido o expresso mediante o circunlóquio "separação entre a representação e seu afeto", e "enlace falso" deste último.(p.67)

Apenas no "Projeto de uma psicologia", Freud dá uma resposta para essa questão levantada em 1894. Mas a resposta não consiste em uma escolha por alguma das duas opções sugeridas acima, e sim em uma terceira; os processos inconscientes que estão por trás das neuroses são processos neurológicos, mas nada impede que eles sejam considerados também psíquicos: estas não seriam duas alternativas que se excluem. Freud sustenta, em 1895, que o psíquico é constituído por uma parte dos processos que ocorrem no sistema nervoso e que o campo do psíquico é mais amplo que o da consciência. No "Projeto...", a hipótese da representação como um fato de memória – cuja falta, como apontou Simanke(2004), impedia a desvinculação entre os conceitos de psíquico e de consciência – começa a tomar forma. Surge, então, nesse texto, a idéia de um inconsciente dinâmico e, conseqüentemente, também a possibilidade de uso do termo inconsciente em sentido descritivo.

2. O conceito de "inconsciente dinâmico" no "Projeto de uma psicologia"

Freud inicia o "Projeto..." dizendo que sua intenção é formular uma psicologia científico-naturalista, que explicasse os processos psíquicos normais e patológicos a partir de dois postulados principais: a "quantidade" e o "neurônio". Essas primeiras afirmações de Freud já nos colocam diante da seguinte pergunta: em "Sobre a concepção das afasias", ele havia sustentado que o psíquico seria algo que surgiria em paralelo aos processos nervosos. Agora, no "Projeto...", ele diz pretender explicar os processos psíquicos em termos de neurônios e quantidade, ou seja, de uma perspectiva neurológica. Então, ou Freud passou a conceber o psíquico de uma outra forma, isto é, como um evento neurológico, ou, caso ele tivesse mantido a mesma concepção de 1891,ele não pretende formular uma teoria sobre o psíquico, mas sobre seus correlatos neurológicos. Haveria, ainda, uma terceira possibilidade - defendida por alguns autores como Garcia-Roza (1991) – de que sua intenção fosse utilizar metáforas neurológicas para abordar o psíquico. Essas duas últimas opções são muito difíceis de serem sustentadas, pois Freud é muito claro em suas colocações. Ele diz explicitamente, desde o início do texto, que considera o "psíquico" algo passível de ser explicado de uma perspectiva neurológica e em nenhum momento sugere estar formulando uma concepção metafórica dos processos psíquicos. Em qualquer desses dois casos, teríamos que atribuir a Freud algo que ele não disse nem deu a entender. Parece mais coerente nos atermos ao que ele, de fato, afirmou. Portanto, fiquemos com a primeira opção: Freud passa a conceber o psíquico de uma forma distinta do texto sobre as afasias. De que forma?

No "Projeto...", a idéia de que o psíquico seria um fenômeno concomitante a certos processos nervosos é abandonada, assim como a restrição do psíquico ao consciente. Na passagem abaixo, Freud (1895/1950) afirma que os processos psíquicos existem independentemente da consciência:

Temos tratado os processos psíquicos como algo que possa prescindir do conhecimento dado pela consciência, existindo independente de tal consciência (...) Se não nos deixarmos desconcertar por tal fato, segue-se desse pressuposto que a consciência não proporciona nem conhecimento completo, nem seguro dos processos neuronais; cabe considerá-los em primeiro lugar e em toda a extensão como inconscientes e cabe inferi-los como as outras coisas naturais.(p.400)

Em "Sobre a concepção das afasias", a representação era pensada como sendo o correlato de um processo cortical associativo; agora, no "Projeto...", a representação passa a ser o próprio processo cortical. Portanto, o psíquico inconsciente consistiria em uma parte dos processos que ocorrem no sistema nervoso, e a consciência seria algo que poderia emergir em paralelo a esses processos nervosos, desde que cumpridas certas condições. Freud abandona, portanto, a doutrina da concomitância de Jackson(1884), ou melhor, a modifica, deslocando o paralelismo, que, em 1891, definia a relação entre os processos nervosos e os psíquicos, para entre os processos psíquicos inconscientes e os conscientes. Uma parte dos processos psíquicos inconscientes – que seriam processos nervosos – seria acompanhada por eventos conscientes. Ao comentar a relação da sua teoria da consciência com as demais, Freud (1895/1950) afirma:

Segundo uma teoria mecanicista avançada, a consciência é só um aditivo aos processos fisiológico-psíquicos, cuja supressão não alteraria nada no curso psíquico. De acordo com uma outra doutrina, a consciência é o lado subjetivo de toda ocorrência psíquica, logo, inseparável do processo fisiológico mental. Entre ambas situa-se a teoria aqui desenvolvida. Consciência é, aqui, o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos no sistema nervoso, isto é, dos processos ; e sua supressão não deixa inalterada a ocorrência psíquica, mas inclui em si a supressão da contribuição de . (p.403)

Parte do funcionamento cortical, aquela correspondente aos sistemas e , comporia os processos psíquicos. Parte desses processos psíquicos – os do sistema - seriam conscientes. Portanto, a consciência corresponderia a uma pequena parte do psíquico.

Está presente, no "Projeto...", não só a hipótese de que as representações podem existir independentemente da consciência, como também a hipótese de que parte das representações são insuscetíveis de se tornarem conscientes. Há não só um psíquico inconsciente, como também um psíquico inconsciente e insuscetível de consciência. Na terceira parte deste texto, Freud formula a hipótese de que apenas as representações ligadas às associações lingüísticas – as quais constituem a representação-palavra – poderiam se tornar conscientes pela via normal do pensamento. Então, aquelas representações que não fossem associadas a palavras permaneceriam insuscetíveis de consciência.(1) No entanto, esses processos correspondentes ao psíquico inconsciente – tanto ao suscetível quanto ao insuscetível de consciência – seriam capazes de influenciar os fenômenos conscientes. Na ausência da consciência, as representações poderiam continuar existindo enquanto fatos psíquicos e poderiam também exercer efeitos sobre a atividade psíquica consciente. Portanto, no "Projeto...", é formulada a hipótese do que Freud chama no artigo de 1912 de "inconsciente dinâmico". Surge também, nesse texto, a possibilidade de uso do termo inconsciente em sentido descritivo: passa a ser possível descrever um fato psíquico como inconsciente, sem atribuir à palavra inconsciente qualquer sentido metafórico. Enquanto se mantivesse a identificação do psíquico ao consciente, a expressão "representação inconsciente" só poderia se referir a uma representação não existente e não poderia passar de um modo de dizer. Com a desvinculação entre esses dois conceitos, tal expressão pode ser interpretada em sentido literal.

Mas não há ainda, em 1895, a noção de inconsciente sistemático, tal como Freud a apresenta em 1912. O psíquico insuscetível de consciência que está pressuposto no "Projeto..." não constitui um grupo psíquico à parte, nem apresenta características distintivas em relação aos fenômenos conscientes. Exceto pelo fato de não poder se tornar consciente – ou seja, de não estar associado a palavras -, ele não se distinguiria em nada dos fenômenos psíquicos passíveis de consciência. Essa é a novidade que começa a ser introduzida na carta 52 e, depois, no capítulo sete de "A Interpretação dos sonhos".

3. A hipótese do inconsciente sistemático na carta 52

Na carta à Fliess, de 6 de dezembro de 1896, conhecida como carta 52, Freud faz algumas conjeturas sobre a organização e a gênese do aparelho psíquico que, como apontou Laplanche (1981), podem ser consideradas como fazendo uma ponte entre o aparelho neuronal do "Projeto..." e o aparelho psíquico proposto no capítulo 7 de "A interpretação dos sonhos". Freud propõe que o mecanismo psíquico se forma por uma processo de estratificação sucessiva, isto é, que os traços mnêmicos são sujeitos a reordenações, de acordo com novos nexos, de tempos em tempos. Essas "retranscrições" dariam origem a diferenciações no sistema de memória, as quais representariam a operação psíquica de épocas sucessivas da vida. Na passagem de uma época para outra, ocorreria uma "tradução" do material mnêmico.

Em "Sobre a concepção das afasias", Freud havia sustentado que a informação sensorial que alcança a medula espinhal é sucessivamente reordenada, de acordo com princípios funcionais do sistema nervoso, ao longo de seu percurso em direção ao córtex. Ele propõe agora, na carta 52, a ocorrência de um processo semelhante no nível cortical, isto é, na constituição dos traços mnêmicos. No entanto, esse processo de reorganização se daria ao longo do desenvolvimento do sujeito. As várias transcrições seriam aquisições psíquicas de fases sucessivas da vida, portanto, o sistema de memória iria se complexificando, ao longo do desenvolvimento, à medida que os traços mnêmicos fossem sendo retranscritos. Segundo Freud, haveria no mínimo três tipos de transcrições no sistema de memória, as quais são representados no esquema como "Ps"(signos de percepção), "Ic"(inconsciência) e "Prc"(preconsciência).

A hipótese dos neurônios como elementos componentes do sistema de memória é mantida na carta 52, o que sugere que a memória é concebida aí de forma semelhante ao "Projeto...". Apesar de não explicitar sua concepção de representação, esta parece estar sendo pensada da mesma forma que no "Projeto...", isto é, como consistindo num processo envolvendo quantidade, neurônio, facilitação.

No sistema do "Projeto...", toda facilitação seria determinada pela simultaneidade da incidência da quantidade nos neurônios e, portanto, a constituição das representações, assim como a associação entre representações, se daria de acordo com relações de simultaneidade. Na carta 52, Freud sustenta que há associações que ocorrem de acordo com outros tipos de relações, como a causalidade, e que a simultaneidade é o princípio ativo apenas no primeiro sistema de memória. O nível mais elevado de organização das representações – o Prcc – seria aquele em que as associações lingüísticas estariam presentes. Nesse nível, o pensamento poderia se tornar consciente, a partir da "ativação alucinatória " das associações lingüísticas. Freud mantém, na carta 52, a idéia de que são as associações que constituem a palavra que possibilitam a consciência do pensamento, a qual é chamada de "consciência secundária".

Esse processo de retranscrição, ou de tradução, dos traços mnêmicos poderia não ocorrer em relação a uma parte do material representacional, com a finalidade de evitar o desprazer que seria gerado por tal tradução. Isso é o que Freud chama de "repressão". As representações reprimidas seriam aquelas que não foram traduzidas – e, portanto, ficaram de fora das transcrições posteriores, ou seja, ficaram excluídas dos processos associativos dominantes – devido ao desprazer que seria produzido. Nesse caso, diz Freud (1950), "a excitação é tramitada de acordo com as leis psicológicas vigentes no período psíquico precedente e pelos caminhos de que então dispunha".(p.152) Como conseqüência dessa não tradução, as representações não chegariam a ter acesso às representações-palavra permanecendo insuscetíveis de se tornarem conscientes pela via normal do pensamento, ao menos.

***

Que modificações em relação à noção de inconsciente psíquico do "Projeto..." surgem no esquema da carta 52? No "Projeto...", aparece a noção de psíquico inconsciente com a independência atribuída à representação em relação à consciência. Mas, nesse texto, a inconsciência designa um estado da representação e não o pertencimento a um grupo psíquico com características próprias: pode-se dizer de uma representação que ela "é" ou "está" inconsciente, podendo ou não vir a se tornar consciente, mas não que ela "está no" inconsciente. Agora, na carta 52, Freud propõe a idéia de inconsciente no sentido sistemático, isto é, como um sistema de representações diferenciado, regido por um princípio associativo específico, idéia esta que é complementada no capítulo 7. No entanto, não é possível identificar o sistema inconsciente com o psíquico inconsciente nem com o psíquico insuscetível de consciência, pois as representações que compõem tal sistema constituiriam apenas uma parte deste último, uma vez que as representações do sistema Ps, assim como as do Ic, também não poderiam se tornar conscientes pela via normal do pensamento. Esta última potencialidade estaria presente apenas nas representações do sistema Prc, devido ao vínculo destas com as palavras.

Com o desdobramento do sistema de memória proposto por Freud, a diferenciação, já presente no "Projeto...", entre inconsciente suscetível e insuscetível de consciência recebe uma representação tópica. O inconsciente e o sistema que o precede representariam este último e o Prcc representaria o primeiro. Além disso, Freud acrescenta a hipótese de que diferentes princípios associativos dirigem os processos representacionais e que, portanto, a diferença entre as representações suscetíveis e as insuscetíveis de consciência não se limita a presença ou ausência de vínculo com palavras. Essas hipóteses esboçadas na carta 52 são desenvolvidas no capítulo 7 de "A interpretação dos sonhos".

4. O desenvolvimento do conceito de inconsciente sistemático no capítulo 7 de "A interpretação dos sonhos"

No início do sétimo capítulo de "A Interpretação dos Sonhos" , Freud aponta a necessidade de se formular uma teoria sobre o aparelho psíquico para que o sonho enquanto fato psíquico pudesse ser, de fato, esclarecido. Nos capítulos anteriores ele apresentara e discutira as teses sobre os sonhos inferidas a partir da interpretação desses. No último capítulo, ele se ocupa da construção de uma teoria sobre a estrutura e o funcionamento psíquico que sirva de fundamento para essas teses, ou seja, uma teoria a partir da qual seja possível compreender a possibilidade de ocorrência de um processo psíquico com as características do fenômeno onírico. Monzani (1989) esclarece como se dá a relação entre a interpretação e a explicação em "A interpretação dos sonhos": "(...) existiria, assim, uma subordinação recíproca entre interpretação e explicação, cada uma a seu nível: a interpretação produz teses que a explicação fundamenta".(p.114) A interpretação fornece teses e estas são inserida em um espaço teórico que as fundamenta.

O esquema que havia sido proposto na carta 52 é retomado, com algumas modificações, assim como muitas das hipóteses do "Projeto...". Pode-se dizer que o aparelho psíquico é um recorte do aparelho neuronal com alguns acréscimos e modificações.

Freud coloca em um dos extremos do esquema a percepção e, no extremo oposto, a motilidade e reafirma que o processo reflexo é o modelo de toda a operação psíquica. Assim como no "Projeto...", a tendência primordial do aparelho seria descarregar o máximo possível da excitação que o alcança e essa tendência seria modificada devido à necessidade de dar um destino adequado para a estimulação de origem endógena, isto é, para que as necessidades corporais pudessem ser satisfeitas. Os processos psíquicos seriam, inicialmente, regulados automaticamente pelo "princípio de desprazer"(2).

A primeira diferenciação estabelecida no aparelho é entre a percepção e a memória. Ambas devem ser função de dois sistemas diferentes, argumenta Freud, devido às mesmas razões apontadas no "Projeto...": enquanto a percepção requer uma capacidade receptiva sempre igual – portanto, o sistema por ela responsável não deve ser modificado em nada pela excitação que recebe –, a memória requer a conservação de traços permanentes – portanto, tal sistema deve ser modificado, de alguma forma, pela excitação que o percorre. A percepção fica sendo função do primeiro sistema que compõe o aparelho, e a memória dos sistemas que se lhe sucedem.

A memória não apenas conserva o conteúdo das percepções, como também associa tais conteúdos de acordo com determinadas leis. Para esclarecer o processo da associação Freud (1900/1982) parece retomar as idéias de facilitação e resistência do "Projeto...". Diz ele: "O fato da associação consiste, então, no seguinte: como conseqüência de reduções na resistência e de facilitações, desde um dos elementos Mn a excitação se propaga melhor em direção a um segundo elemento Mn que em direção a um terceiro". (p.515) Essa passagem sugere que Freud está concebendo a memória da mesma maneira que no "Projeto", isto é, como modificações permanentes resultantes da excitação recebida, as quais estariam situadas entre os elementos dos sistemas e não nos próprios elementos, o que teria como conseqüência a constituição de caminhos preferenciais ("facilitações") para a passagem da excitação. Então, a representação continua sendo pensada como consistindo num processo associativo. A seguinte afirmação de Freud (1900) corrobora esta hipótese: "(...) representações, pensamentos e produtos psíquicos em geral não podem ser localizados dentro dos elementos orgânicos do sistema nervoso, mas, por assim dizer, entre eles, onde resistências e facilitações constituem seus correlatos."(p.579). Em várias ocasiões Freud volta a falar também em neurônios, o que indica que ele mantém a hipótese de que eles é que são os elementos constituintes do aparelho.

Freud mantém a idéia, que havia sido apontada na carta 52 como a tese "essencialmente nova de sua teoria", de que haveria vários sistemas de memória nos quais o mesmo conteúdo estaria associado de maneira distinta. Na carta 52, ele dissera que não sabia quantos sistemas haveria, no mínimo três, provavelmente mais, e agora, no esquema do capítulo 7, outros sistemas de memória são incluídos entre o sistema da percepção e o do inconsciente. Ele também mantém a hipótese de que, no primeiro sistema, as representações estariam associadas de acordo com relações de simultaneidade e, no pré-consciente, de acordo com relações verbais.

Freud (1900) ressalta que a ordem atribuída aos sistemas na representação tópica não precisa corresponder a ordem espacial real deles, apenas é necessário supor que "em certos processos psíquicos os sistemas sejam percorridos pela excitação dentro de uma determinada série temporal". (p.513) Adiante ele esclarece que a representação tópica do aparelho é uma representação "auxiliar", empregada com o objetivo de facilitar a explicação dos fenômenos psicológicos.

Os dois últimos sistemas mnêmicos – entre os quais se situaria uma censura – seriam o Inconsciente(Icc) e o Pré-consciente(Prcc). Este último estaria ligado à consciência e governaria o acesso à motilidade voluntária. Tais sistemas corresponderiam a dois tipos de processos. No início da seção F, Freud (1900) afirma:

Se as consideramos com maior atenção, as elucidações psicológicas da seção anterior não nos sugerem a suposição da existência de dois sistemas perto do extremo motor do aparelho, mas sim de dois processos ou de dois modos no decurso da excitação. Para nós dá na mesma; sempre devemos estar dispostos a abandonar nossas representações auxiliares quando nos acreditamos em condições de substituí-las por alguma outra coisa que se aproxime mais da realidade desconhecida. (p.578)

Esses dois processos, que corresponderiam aos sistemas pré-consciente e inconsciente, seriam os processos primários e os secundários que já haviam sido mencionados no "Projeto...". Portanto, essa diferenciação entre dois "modos no decurso da excitação" seria aquela entre o estado "livre" e "ligado", ou "quiescente", da quantidade. Apesar de ser uma representação menos rigorosa, a representação tópica deve continuar sendo utilizada, argumenta Freud, uma vez que ela figura de maneira mais simples a distinção em questão.

De acordo com o que Freud diz na passagem acima mencionada, a representação tópica dos sistemas Prcc e Icc seria uma representação auxiliar que parece ser menos adequada para representar a distinção entre o psíquico suscetível e o insuscetível de consciência do que o que ele chama nesse texto de "representação dinâmica", ou seja, aquela que representa tal distinção como dois tipos de processos.

Em "Nota sobre o conceito de inconsciente"(1912), como vimos, Freud distingue entre a idéia de um inconsciente dinâmico e a de inconsciente enquanto um sistema. Primeiro, ele teria concluído pela existência de um inconsciente incapaz de se tornar consciente e, entretanto, ativo. Nesse sentido é que ele fala aí de um inconsciente dinâmico.(3) Depois, a partir da análise dos sonhos, ele conclui que esse inconsciente dinâmico possui características diferentes daquelas do psíquico consciente ou passível de se tornar consciente. Para estabelecer essa distinção, é introduzida a hipótese do "sistema inconsciente". Então, de acordo com o que ele diz em 1912, a distinção entre os sistemas Prcc e Icc não implica necessariamente a distinção tópica entre esses sistemas. A representação dos sistemas como dois lugares distintos, ou seja, a representação tópica, é apenas uma forma de representar a distinção entre o psíquico suscetível e o insuscetível de se tornar consciente, mas não a única, nem a melhor, como diz Freud na passagem citada acima. Para representar as características distintivas dos sistemas Prcc e Icc pode-se usar uma representação tópica ou pode-se pensar em dois tipos de processos e essa última, segundo ele, é a que parece se aproximar mais da "realidade desconhecida". Exprimir a diferença entre o psíquico suscetível e o insuscetível de se tornar consciente em termos de dois tipos de processos é mais preciso, mais de acordo com a realidade, do que exprimi-la em termos tópicos. Então, embora no capítulo 7, Freud use a idéia de sistema como sinônimo de lugar, a caracterização da noção de inconsciente sistemático apresentada em 1912 parece não permitir essa identificação.

Que os sistemas Icc e Prcc correspondem a processos sabemos desde o início, pois desde "Sobre a concepção das afasias", fica claro que Freud pensa a representação como um processo. Contudo, a representação tópica pode sugerir que se trata de processos do mesmo tipo que ocorrem em dois lugares distintos. Freud esclarece que não é esse o caso. A distinção entre os sistemas Icc e Prcc corresponde à distinção entre dois tipos de processos - os primários e os secundários - os quais se sobrepôem.

Assim como no "Projeto...", o processo secundário resultaria da inibição do processo primário e, portanto, seria posterior a este. Então, inicialmente, o pré-consciente e o inconsciente não se diferenciariam e a origem dessa diferenciação seria uma conseqüência da impossibilidade do modo de atividade primário do aparelho de satisfazer as necessidades corporais. Freud (1900) descreve a experiência da vivência de satisfação, assim como as conseqüências de tal experiência, exatamente da mesma forma que o havia feito em 1895. Após a vivência primária de satisfação, o ressurgimento da estimulação endógena apresentaria a tendência a investir a representação do objeto desejado com toda sua intensidade, de forma que este objeto seria alucinado, isto é, seria produzida uma "identidade perceptiva" e os movimentos associados à satisfação seriam executados em vão. Essa ativação alucinatória da representação desejada seria totalmente ineficaz para fazer a estimulação endógena cessar. Por isso, para que o indivíduo sobreviva e o desprazer cesse, faz-se necessário ocorrer uma modificação nesse modo de atividade primário do aparelho. A atividade psíquica regida pelo princípio do prazer tem que se adequar ao "princípio de realidade", como diz Freud em "Formulações sobre os dois princípios do acontecimento psíquico" (1911). Em vez de conduzir à identidade perceptiva, os processos devem passar a buscar uma "identidade de pensamento". A ocupação da representação desejada deve ser parcialmente inibida, de modo que esta seja apenas rememorada e, assim, se torne possível a ocorrência de um processo – o pensamento – que encontre, de fato, o objeto capaz de promover a satisfação da necessidade. Disso decorreria o surgimento do processo secundário ou do pré-consciente, como esclarece a seguinte afirmação de Freud (1900):

Assim se fez necessária uma segunda atividade – em nossa terminologia, a atividade de um segundo sistema –, que não permitisse que o investimento mnêmico avançasse até a percepção (...) os dois sistemas são o germe do que inserimos como Icc e Prcc no aparelho plenamente constituído. (p.568)

Nos processos inconscientes, ou "processos primários", a excitação se encontraria em estado livre ; a excitação seria descarregada integralmente na passagem de um elemento para o outro do sistema. Nos processos pré-conscientes, ou " secundários", a excitação se encontraria em "estado quiescente", isto é, apenas uma parte da excitação disponível seria empregada no deslocamento, outra parte seria retida nas representações. O Prcc disporia de uma "energia de investimento móvel", parte da qual seria usada para direcionar os processos associativos, de forma a propiciar a sobrevivência do sujeito, enquanto outra parte constituiria o mecanismo da "atenção". Freud(1900) diz o seguinte sobre as condições mecânicas dos processos secundários: "A mecânica desses processos é inteiramente desconhecida a mim; quem quiser levar a sério essas idéias deveria investigar as analogias fisicalistas e abrir-se um caminho em direção à ilustração do processo de movimento da excitação neuronial."(p.569) Nessa passagem, fica claro que Freud continua identificando os processos psíquicos inconscientes a processos nervosos.

Após propor que os sistemas pré-consciente e inconsciente correspondem a dois tipos de processos, a distinção entre este último sistema e os precedentes – aqueles que se situariam entre P e Icc – não é mais mencionada. Como Freud não se refere a outros tipos de processos além do primário e do secundário, parece ser possível concluir que os primeiros sistemas de memória estejam incluídos nos processos primários e que vários princípios associativos determinariam as associações aí envolvidas. Os vários sistemas de memória foram propostos por Freud para representar as diversas transcrições de um mesmo conjunto de representações, isto é, os diferentes rearranjos das representações de acordo com princípios associativos diferentes. Então, haveria vários níveis de processos, e as associações seriam determinadas por princípios associativos diferentes em cada um deles. No nível superior, cujas associações seriam determinadas por relações verbais, a excitação se encontraria em estado ligado e, nos níveis inferiores, ela se encontraria em estado livre, ou seja, no nível superior ocorreriam processos secundários e, nos inferiores, processos primários.

O processo primário estaria presente no aparelho desde sua origem – ele representaria a tendência primordial do aparelho à descarregar toda a excitação que o alcançasse – e o processo secundário se estabeleceria pouco a pouco a partir da inibição do primário. Essa inibição, no entanto, não seria total e uma parte dos processos permaneceria subtraída a essa influência do Prcc. Devido ao estabelecimento tardio do processo secundário, um grande segmento do material mnêmico permaneceria inacessível ao pré-consciente, diz Freud. Essas representações continuariam sendo alvo do processo primário e permaneceriam insuscetíveis de se tornarem conscientes pela via normal do pensamento, isto é, a partir da intermediação do Prcc. Outras representações se encontrariam nesse mesmo estado: as reprimidas. Mas essas teriam sido um dia pré-conscientes; no entanto, por se tornarem substitutas de representações inaceitáveis para os processos secundários, teriam sido excluídas do Prcc, permanecendo governadas pelo processo primário. Portanto, os processos primários e os secundários coexistiriam mesmo no funcionamento psíquico normal.

Por serem dois tipos de processos distintos, o psíquico insuscetível de consciência – isto é o Icc – e o psíquico suscetível de consciência apresentariam propriedades diferentes. No capítulo sete Freud já aponta algumas dessas propriedades distintivas, as quais são retomadas no artigo metapsicológico " O inconsciente" (1915). Neste artigo Freud argumenta que as características próprias ao Icc são: ausência de contradição, mobilidade de investimento, caráter atemporal e substituição da realidade exterior pela psíquica. Já no Prcc, estariam presentes as relações lógicas, a excitação estaria em estado quiescente, as representações estariam organizadas de forma temporal e a realidade externa é que nortearia sua atividade psíquica. Todas essas características seriam resultantes da forma como se dá o processo primário e o secundário.

A análise dos sonhos tornou possível a Freud perceber essas peculariedades dos processos inconscientes. Freud percebeu que as representações inconscientes e insuscetíveis de se tornarem conscientes são regidas por leis diferentes daquelas que regem os processos suscetíveis de consciência. Trata-se de dois tipos de processos diferentes. Para representar as características distintivas do inconsciente insuscetível de consciência , Freud introduz a concepção sistemática de inconsciente.

5. Desenvolvimentos do conceito de sistema inconsciente nos artigos metapsicológicos de 1915

Na teoria sobre o aparelho psíquico desenvolvida nos artigos metapsicológicos (1915-1917), apenas os sistemas Icc, Prcc e Cc continuam presentes; os demais sistemas de memória incluídos nos esquemas da carta 52 e do capítulo 7 entre o órgão responsável pela percepção (P) e o sistema inconsciente (Icc) não voltam a ser mencionados.

Na seção F do capítulo 7, Freud afirmara que a diferenciação entre os sistemas Prcc e Icc corresponderia, na verdade, à diferenciação entre dois tipos de processos; a representação desses sistemas como duas localidades psíquicas distintas não foi abandonada, mas Freud admitira que ela consistia numa representação auxiliar que se aproximava menos da realidade do que aquela que apresenta o pré-consciente e o inconsciente como dois tipos de processos. Essa hipótese é mantida nos artigos metapsicológicos, porém Freud lhe acrescenta um novo elemento.

Em "O Inconsciente" (1915), Freud se pergunta se a passagem do sistema Icc ao Prcc acontece mediante novas transcrições das representações – suposição esta que ele chama de "tópica" – ou mediante uma mudança de estado, mediante o surgimento de um modo de ocupação distinto das mesmas representações – suposição esta que ele chama de "funcional". Freud responde essa questão apenas na última parte do artigo, onde, a partir da análise das manifestações das neuroses narcísicas, ele chega à seguinte conclusão:

"(...) acreditamos saber agora onde reside a diferença entre uma representação consciente e uma inconsciente. Elas não são, como acreditávamos, diversas transcrições do mesmo conteúdo em lugares psíquicos diferentes, nem diversos estados funcionais de ocupação no mesmo lugar, se não que a representação consciente abrange a representação-coisa mais a correspondente representação-palavra, e a inconsciente é a representação-coisa somente. O sistema Icc contém as ocupações de coisa dos objetos que são as ocupações de objeto primárias e genuínas; o sistema Prcc nasce quando essa representação-coisa é sobre-ocupada pelo enlace com as representações-palavra que lhe correspondem. Tais sobre-ocupações, podemos conjeturar, são as que produzem uma organização psíquica mais alta e possibilitam a rendição do processo primário pelo secundário, que governa no interior do Prcc (...) A representação não apreendida em palavras, ou o ato psíquico não sobre-ocupado, fica então para trás, no interior do Icc, como algo reprimido".(Freud, 1915, p. 160)

Freud retoma os conceitos de representacão-palavra (Wortvorstellung) e representação-objeto (Objektvorstellung) formulados em "Sobre a concepção das afasias" para explicar a diferenciação entre representações pré-conscientes e inconscientes. (4) Embora esses conceitos não sejam esclarecidos, é possível inferir que o que ele chama, nos artigos metapsicológicos, de representação-coisa (Sachvorstellung) corresponde ao que é chamado de representação-objeto em 1891. Em "O Inconsciente", a representação-objeto passa a designar o par constituído pela representação-palavra associada à representação-coisa.

Segundo o que Freud afirma na passagem acima, enquanto houvesse apenas representações-coisa no aparelho psíquico, só poderia haver processo primário. Em um segundo momento, as representações-palavra se constituiriam e se associariam a uma parte das representações-coisa, sobreocupando-as. Como resultado, surgiria no aparelho um nível de organização superior: o Prcc. Esse nível de organização superior corresponderia ao processo secundário e, portanto, a diferenciação entre o Icc e o Prcc continua sendo identificada com aquela entre o processo primário e o secundário. O sistema Icc corresponderia ao processo primário, do qual apenas representações-coisa fariam parte, e o sistema Prcc correponderia ao processo secundário, do qual fariam parte representações-coisa associadas a representações-palavra. A novidade em relação ao capítulo 7, ao que parece, é que Freud especifica, em 1915, que é a palavra que possibilita a ligação da excitação em estado livre; que o surgimento do processo secundário é uma conseqüência da sobre-ocupação produzida pela representação-palavra. Essa hipótese não será mantida por muito tempo. Em "O eu e o isso" (1923), ela é abandonada.

No "Projeto...", já estava presente a idéia de que seria a associação com as representações-palavra que tornaria uma representação suscetível de se tornar consciente. Desde esse texto, já se podia inferir que o psíquico suscetível de consciência corresponderia às representações associadas a palavras e que o psíquico insuscetível de consciência corresponderia às representações não associadas a palavras. Mas, no "Projeto...", não se encontra formulada a hipótese de que seria a sobre-ocupação produzida pela palavra que permitiria a substituição do processo primário pelo secundário. De acordo com o que Freud propõe aí, o processo secundário teria como condição a inibição do processo primário, a qual seria determinada, antes de tudo, pela primeira regra biológica.(5) Com essa inibição, surgiria um acúmulo de quantidade no aparelho, que seria usado para instituir o processo secundário. Vimos que, no capítulo 7, Freud também atribui à palavra a capacidade de tornar uma representação suscetível de consciência, mas ele não afirma explicitamente que é a palavra que produz a substituição do processo primário pelo secundário.

Em suma, Freud mantém, nos artigos metapsicológicos, a hipótese do capítulo 7 de que o Prcc corresponde ao processo secundário e o Icc ao processo primário, mas ele acrescenta que é a constituição das representações-palavra que faz surgir essa diferenciação no aparelho e explicita a hipótese de que o conteúdo do Prcc consiste em representações-coisa associadas a representações-palavra, e o conteúdo do Icc em representações-coisa somente.

Conclusão

A partir da investigação da histeria, assim como da observação do fenômeno da sugestão pós-hipnótica, Freud concluira que havia processos psíquicos inconscientes e insuscetíveis de consciência, entretanto, ativos e capazes de influenciar a atividade psíquica consciente. Em 1912, no artigo "Nota sobre o conceito de inconsciente", ele afirma que sua primeira descoberta foi que havia um "inconsciente dinâmico". Em seguida, após o abandono da hipnose, Freud percebera que essa parte da vida psíquica insuscetível de se tornar consciente, ao menos em parte, teria sido alvo de um mecanismo de defesa – isto é, da repressão – e que a mesma força que reprime continua exercendo uma pressão contínua para impedir o retorno do reprimido à consciência. Quando Freud começou a analisar os sonhos, outra característica do psíquico inconsciente pôde ser percebida: aquela parte que permanece insuscetível de consciência possui propriedades peculiares, distintas daquelas da parte do psíquico suscetível de consciência. Trata-se de um processo psíquico diferente, que Freud chamou de processo primário. As características do processo primário tornam compreensíveis tanto as singularidades dos sonhos quanto as dos sintomas neuróticos

No "Projeto de uma psicologia", já estava presente a idéia de um psíquico inconsciente e insuscetível de se tornar consciente devido à ausência de vínculos com representações-palavra. A principal novidade da carta 52 e do capítulo 7 em relação a este texto parece ser a hipótese de que essas representações pertencem ao processo primário e, portanto, possuem propriedades distintas daquelas do psíquico que possui acesso à consciência, assim como a hipótese de que esses dois tipos de processos coexistem mesmo no funcionamento psíquico normal. Para representar essas propriedades distintivas, como Freud esclarece em 1912, é introduzida a hipótese dos sistemas inconsciente e pré-consciente. No artigo metapsicológico sobre o inconsciente, de 1915, Freud acrescenta a idéia de que é a associação com as representações-palavra que liga uma parte das representações instaurando, assim, a diferenciação entre os processos primário e secundário.

Analisamos aqui apenas parte da trajetória de elaboração do conceito de inconsciente na teoria freudiana. Após 1915, em especial no texto "O eu e o isso" (1923), Freud continua desenvolvendo e introduzindo reformulações em sua teoria sobre o inconsciente.

Notas:

(1) Essa insuscetibilidade de consciência estaria presente no funcionamento psíquico normal de vigília, o qual dependeria da palavra. Haveria a possibilidade de uma representação se tornar consciente pela via regressiva, isto é, de maneira alucinatória, nos sonhos e nos estados patológicos.

(2) Este princípio foi chamado em obras posteriores de "princípio do prazer".

(3) Notemos que aí Freud usa o termo dinâmico em um sentido diferente daquele usado no capítulo 7. Neste último, Freud contrapõe um modo de representação "tópico" a um "dinâmico", ou seja, uma representação dos sistemas Prcc e Icc como dois lugares diferentes a uma representação desses como dois processos distintos. Em 1912, Freud usa o termo dinâmico no sentido de ativo, ou seja, para designar a capacidade de ação do inconsciente e ele diz que a concepção sistemática de inconsciente vem se acrescentar à dinâmica porque estabelece que esse psíquico insuscetível de consciência, além de ativo, possui propriedades peculiares.

(4) Embora Freud se refira à representação "consciente" e não à "pré-consciente", é da representação pré-consciente que ele está falando nessa passagem. Nessa parte do texto, ele não diferenciou ainda entre os sistemas Cc e Prcc.

(5) Freud postula a existência de duas regras biológicas que condicionariam os processos neuronais: a primeira seria a regra da "defesa primária" . Segundo esta, a ocupação de representações que gerassem desprazer tenderia a ser evitada.

 

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 24 - Diciembre 2007
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