Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
A ciencia e a verdade na formação do psicanalista lacaniano
Tania Coelho dos Santos

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1- Introdução

Como introduzir esse tema sem evocar os acontecimentos que conduziram à cisão da Sociedade de Psicanálise de Paris, instituição filiada à IPA à qual Lacan pertenceu até o ano de 1963? Neste ano, Lacan foi objeto de uma excomunicação, isto é, foi impedido de continuar sustentando a qualificação de analistas didatas. Em 1964, ele funda uma escola e não uma nova sociedade, a Escola Freudiana de Paris o que merece, a título de introdução, que nos perguntemos o que é uma Escola de psicanálise por oposição a uma Sociedade de psicanalistas.

De acordo com Miller, em seu Seminário de 14-1-2001 1, a International Association of Psychoanalysis, fundada por Freud visava impedir a proliferação das heresias, instalando uma ortopraxia – garantindo a uniformidade de procedimentos formais no manejo do dispositivo analítico: mesmo número de sessões semanais, a mesma duração de cinquenta minutos de sessão. Em contraste com essa ortoprática reinava na IPA uma certa liberdade de interpretação com respeito ao pensamento freudiano. A Escola de Lacan instala uma ruptura com essa tradição. Esse acontecimento, do ponto de vista da formação, reconhecimento e associação de psicanalistas, é um recomeço, uma nova origem. Diferentemente da IPA, a Escola de Lacan, não referenda uma mesma maneira de praticar a psicanálise. Por outro lado requer uma transferência com o ensino de Lacan. Essa orientação, como pretendemos sustentar ao longo deste texto, tem raízes sólidas, profundas no seu ensinamento.

Em "La science et la verité", texto publicado nos Escritos em 1966, Lacan articula precisamente qual é o sujeito que se espera como efeito de uma análise. Como ele não diferencia uma análise com fins terapêuticos da análise didática, uma análise só termina com a produção de um analista. Neste texto ele declara que:" "o sujeito sobre o qual a psicanálise opera não pode ser senão o sujeito da ciência" e que "a psicanálise reintroduz na consideração científica, o Nome-do-pai". Se o sujeito da ciência nada quer saber do Nome-do-Pai é precisamente, porque a invenção da ciência tende a instalar-se como uma nova tradição, promovendo o esquecimento do arbitrário, do acaso, do começo, da novidade da origem. Lacan opõe a ciência no sentido forte, à tradição. A tradição é o esquecimento das origens.

A fundação da Escola tem uma afinidade de estrutura como o gesto da ciência. Ela repete a origem, interroga o Nome-do-Pai, isto é o desejo do fundador da psicanálise, Freud. Ela questiona o escopo de sua principal articulação teórica: o Complexo de Édipo. Ela toma esse mito como um sonho freudiano, algo que tem relação com o desejo "não analisado" de Freud. Enquanto que a instituição fundada por Freud se propunha a perpetuar o Nome do seu fundador, transmitindo uma tradição, a transferência com Lacan, no ato de fundação da Escola pretende reviver o gesto inaugural de Freud. Enquanto que a identificação ao líder, ao Nome-do-Pai, ao pai morto enquanto guardião da origem e garantia do laço fraterno, são o eixo e a base de uma organização como a IPA, a Escola de Lacan estrutura-se em torno do ensino de Lacan que, nesta época, não é um ensino concluído mas prossegue.

Na instituição fundada por Freud prevalece o mito, a tradição. Ela toma de empréstimo o modelo institucional da Igreja e do Exército, instituições que ele mesmo analisou em sua "Psicologia de massas e análise do eu", sem chegar a encontrar uma solução nova para o laço entre analistas. A IPA reproduz a lógica das relações familiares, pode-se dizer que se orienta pelo mito de Édipo. A fundação da Escola de Lacan implica uma posição crítica com respeito à estrutura das relações entre colegas, alunos, pacientes, público leigo e à própria psicanálise em jogo na IPA. Sem ser anti-edípica, o laço social na Escola, funda-se para além do Édipo. É a vontade de novos começos própria ao funcionamento da pulsão e não a repetição do mito edipiano que orienta sua estrutura. Se tomamos o ponto de vista do mito, a repetição é interpretável, estamos sob o domínio da tradição, do Nome-do-pai, como Outro que guarda um sentido. Se tomamos a perspectiva da pulsão, não há nenhum Outro que lhe convenha, o "Outro não existe", pois a origem é puro acaso e não tem sentido prévio, é um acontecimento sem nome. Por essa razão, as relações entre os membros na Escola deveriam ser, em princípio, igualitárias. A relação de cada um à Psicanálise não obedece a nenhuma hierarquia. Todos iguais diante do novo. Ainda um vez, de acordo com Miller 2, o novo começo, em jogo na fundação da Escola, assenta-se sobre a transferência com a transitoriedade do ensino de Lacan. A vivacidade desse ensino refunda o retorno à Freud, colocando em questão a relação ao saber suposto ao inconsciente, renovado pelo laço a um objeto inédito, o próprio Lacan.

Esse ensino que não cessou de criticar, e denunciar a hierarquia e a cooptação dos sábios que reinava na IPA. Esse gesto adquire seu sentido pleno se levarmos em conta que ele criou um organismo onde não deveria reinar nem a hierarquia, nem a cooptação do sábios, porque seria o reino da transferência suscitada pelo estado de inacabamento do seu ensino. Há um certo liberalismo nessa proposta. Em consequência, há duas questões delicadas que ficam aguardando uma definição. Como é que se reconhece alguém como analista? Que provas ele deve dar dessa condição e a quem? Que laço social convém a uma instituição integrada por psicanalistas? Essas são questões, sem dúvida, espinhosas. Em primeiro lugar porque, como assinalei acima, a fundação da Escola instala um certo liberalismo que tem o ar dos nossos tempos. Depois dos acontecimentos de maio de 1968, que balançaram os pilares da autoridade social, da tradição cultural e do poder do pai de família, vimos nascerem novas modalidades de laço social, menos ordenadas hierárquicamente e mais flutuantes ao sabor dos investimentos pulsionais. Nos primeiros tempos de sua Escola, o consentimento dos pares - tal como na IPA - decidia quem devia ser designado Analista da Escola. Esse mecanismo, não permite distinguir um analista de uma analisando, por meio de um critério interno ao próprio processo analítico. Um critério proprimente psicanalítico capaz de fazer a diferença entre um analista e um analisando requer uma teoria do final da análise e um dispositivo que permita verficá-lo. Um dispositivo capaz de verificar o final de uma análise não pode deixar de ser é ao mesmo tempo a invenção de um novo laço social entre psicanalistas. Em 1967, Lacan lança uma proposição, a Proposição de 9 de outubro sobre o Passe, que vem responder a essa exigência de um princípio que pudesse regulamentar, o real em jogo na formação do analista, diferenciando-o de outras práticas baseadas na tradição e no consentimento dos pares.

Miller reconhece que a invenção institucional do passe introduz uma nova definição do que seja um psicanalista: "Com o passe, Lacan muda alguma coisa na psicanálise, primeiramente, porque ele propõe que há fim de análise. O passe consiste em dizer qual é esse fim de análise mas, primeiramente, em dizer que ele é, que existe um final de análise e mesmo, para me servir da maneira como se costuma traduzir erradamente, uma análise perfeitamente terminável."3

Resta confessar qual é o meu interesse em propor esse tema, o da política lacaniana, para reflexão. Esclareço primeiramente, que meu interesse não reside na crença numa instituição livre de relações hierárquicas, muito antes pelo contrário. Tendo a pensar que quanto mais insistimos em declarar que o Outro não existe, que não há mais poder sob a forma da hierarquia e que somos todos iguais perante a vida e a morte, mais as relações de poder se exercem de maneira velada, irreconhecível para aquele que sofre seus efeitos e que se engana mais ainda ao se representar como livre delas. Para compreendermos o que enuncio aqui, basta atualizarmos um pouco o que dizia Freud a esse respeito. Freud ensinou que o desejo de matar o pai tem efeitos de constrangimento psíquico muito mais poderosos, ele reforça a consciência de culpa, o super-eu, a moralidade. Segundo Freud, o pai morto torna-se muito mais poderoso que vivo. A clínica freudiana demostra que os constrangimentos do poder paterno retornam seja pela via da proliferação de cerimoniais, normas e regras que como sintoma social, visam imortalizar a memória do pai morto. Eu ousaria acrescentar que modernamente, não presumimos que o pai está morto e sim que ele não existe. As relações de poder tendem a se exercer de forma negada, não-dita, não regulamentada, insidiosamente e sem o amparo visível dos regimentos, estatutos, normas e investiduras legais. Faço, de passagem, esse registro, apenas para desencorajar a crença ingênua numa instituição fora-das-relações-de-poder, capaz de resisitir à força das hierarquias derivadas dos direitos adquiridos de alguns.

Para além de uma avaliação realista das relações de poder na Escola de Lacan reconheço na proposição do passe um projeto de pesquisa ousado, original, á altura de um ensino profundamente renovador como o de Lacan. Herdamos de Freud uma questão não resolvida, a do término de uma análise. Com base no meu próprio percurso como psicanalista e no estilo de formação que me vi incentivada a perseguir, à rigor nunca pensamos em término de análise e sim em términos. Rigorosamente, do ponto de vista de uma análise freudiana, terminamos uma a uma as nossas análise sem nunca podermos afirmar que não haverá outra ainda, uma pequena parte a mais. A proposição de Lacan sobre o passe, na medida em que reivindica que um analista que acaba de terminar uma análise, formalize o resultado de sua experiência singular e contribua para a pesquisa institucional do que é um psicanalista, implica cada candidato à psicanalista com uma exigência nova, a de promover o avanço da psicanálise produzindo uma elaboração sobre os problemas cruciais que comparecem na experiência analítica.

Como ensina Miller 4 a elaboração acerca do que seja um final de análise para Lacan, apresenta-se sempre redefinida na sequência do seu ensino. Primeiramente, ele situa o problema em termos que me parecem apenas formalizar o final de análise freudiano, em torno da desidentificação ao falo. Esta, teoria repousa sobre quatro argumentos:

1) Argumento que concerne a sexualidade feminina. O nome do desejo da mulher é o desejo do falo.

2) Argumento segundo o qual a criança é chamada a tomar um lugar a partir desse desejo feminino, logo, equivalência entre criança e falo e o sujeito universalmente é nada menos que a criança fálica.

3) Argumento de que metáfora paterna tem um efeito desidentificante sobre a criança fálica, separanda-a dessa identificação.

4) O fim da análise é antes de tudo centrado sobre a noção da metáfora paterna, com seu efeito de desidentificação fálica, uma vez que a neurose é o resultado da insuficência dessa metaforização.

Essa concepção do final da análise, embora, formalizada em termos indiscutívelmente novos, não é diferente essencialmente daquela que Freud teorizou. Essencialmente, ela reconhece que o falo é o obstáculo (o rochedo da castração) e que homens e mulheres têm que subjetivar o ter ou não falo em termos de identificação sexuada. O mais difícil é ir além. De que fracasso se trata? Trata-se, justamente para homens e mulheres de não poder identificar-se com nada além do pai. Não ser o falo é atribuí-lo ao outro que o possui e pode dá-lo. Por isso as mulheres se apegam ao desejo de recebê-lo de um homem. Um homem, por sua vez, só poderá portá-lo como uma insígnia paterna com a condição de privar-se dele em benefício de uma mulher. A equação entre o Outro, o inconsciente e o falo, preserva o Outro como sentido, como tradição, como ficção, como saber suposto. Ela institui uma hierarquia legítima e fundamenta a autoridade, preservando o sujeito como inconsciente em detrimento do sujeito da ciência.

Para além dessa definição do Outro como metáfora paterna é onde poderíamos reconhecer, penso eu, um final de análise própriamente lacaniano. De acordo com Miller 5, somente na Proposição de outubro de 1967, quando Lacan procura instituir um dispositivo para a verificação do final de análise, visando regulamentar a passagem de analisando a analista é que ele formula também uma nova vertente do Outro, para além da metáfora paterna ou da desidentificação ao falo. Lacan introduz o final da análise como a "queda do objeto a", ou seja, um mecanismo distinto da identificação. Enquanto que a desidentificação ao falo promove o Outro, o inconsciente, como sujeito suposto saber, a queda do objeto a é a consequência do esvaziamento do Outro, da dessuposição de saber feita ao Outro. O Outro como Nome-do-Pai, como sentido, como tradição, como saber suposto, como portador do falo como insígnia - que para Freud parecia um rochedo não ultrapassável – revela-se após a queda do objeto a, inexistente, não-essencial, apenas uma ilusão produzida pelo desejo. Nessa vertente o fundamento da autoridade carece de sustentação, se desvanece. No lugar do Outro barrado do inconsciente, no lugar do sujeito marcado pela divisão, surge a face de objeto, de coisa, de gozo de um ser escrito na materialidade de um corpo, indicando que a condição de "sujeito de desejo", marcado por uma falta -à-ser, não é mais que uma máscara do segredo de uma singularidade. Para além do sujeito do inconsciente, o sujeito da ciência se revela ter uma relação com o gozo, com a origem, com um evento inédito irredutível à qualquer tradição.

Essa formulação do final da análise está muito mais de acordo com a época em que vivemos, na qual se aprofundam os efeitos do discurso da ciência e sua vocação para o esvaziamento da tradição. O declínio da autoridade paterna e da tradição verifica-se na proliferação de novos laços sexuais, afetivos, familiares muito mais igualitários e muito mais permeados pela singularidade de cada sujeito. Essa formulação, por outro lado, está muito mais de acordo com a idéia de que um analista se autoriza de si mesmo e no máximo de alguns outros que se prontifiquem a reconhecer o efeito inédito de uma análise. Entretanto, como pretendo demonstrar mais adiante de modo algum inocenta o novo, um analista em vias de advir de suas relações com o a tradição, o Outro barrado do inconsciente, com a falta-à-ser, e finalmente com a autoridade. O saber suposto e o inconsciente não podem ser completamente destitu ídos em benefício de um regime de saber derivado completamente d a singularidade do sujeito tal como é exposto no passe.

2- O que é um analista e como ele se institui?

O que é um analista, como se forma um psicanalista, como reconhecer um analista?
É possível que um analista só se possa dizer analista para uma certa comunidade onde ele realiza as provas que lhe permitem se fazer reconhecer enquanto tal. À rigor, não há alguma coisa como o psicanalista e sim psicanalistas dessa ou daquela instituição. Pretendo contornar assim a crença ingênua na universalidade do saber científico por oposição ao saber suposto. Proponho que um saber inédito, a diferença pura que se extrai da análise de um sujeito, que é único, tem o mesmo estatuto que o saber da ciência. Se isso pode ser obtido, cada análise produziria uma mudança de regime do saber suposto ao saber exposto. Entretanto, isso só se faz reconhecer enquanto tal, para uma comunidade em que esse saber funciona efetivamente no regime do saber suposto. Para que alguém chega a ser reconhecido como psicanalista, na experiência do passe , não basta que ele tenha extraído de sua análise um saber inédito, eu insisto, que esteja á altura do gesto da ci ência. Algo portanto que participa da forma universal da ciência. É preciso também uma comunidade que o reconheça, pois comunga com ele uma genealogia ou tradição à qual todos suponham um saber. Deixo a questão nesse ponto. Será que há algum saber universal, exposto, possível em psicanálise? Lembro que Lacan nos ensinou a tomar a própria psicanálise na ordem dos efeitos de um desejo, uma invenção do desejo de Freud. Depois de Lacan, sabemos o quanto o desejo do pai da psicanálise deve ao sintoma enquanto agente do discurso da histérica. Depois de Lacan não podemos mais ignorar o que a psicanálise freudiana deve ao sintoma de Freud e seu desejo de restabelecer a consistência do pai num mundo que se laicizava progressivamente. Dificilmente, poderemos deixar de concluir que o saber suposto ao inconsciente é ele próprio objeto da crença de um grupo, os psicanalistas que descendem dessa tradição e que se confessam integrantes dessa genealogia de pesquisa. Se reintroduzimos na consideração científica o Nome-do-pai, o desejo do fundador, tal como Lacan nos convidou a fazer, não há, rigorosamente falando, nenhum saber que se possa pretender universal. Todo saber depende, para ser reconhecido, de uma comunidade de fundamentos, de uma crença fundadora, da identificação ao significante de um desejo. Dizendo isso limitamos toda universalidade científica à particularidade do nome em que repousa a crença que constitui um grupo.

De volta ao ponto de partida, o dispositivo do passe verifica o término da análise, no âmbito preciso da comunidade de analistas que crê no ensino de Lacan. Podemos até acreditar que ao final de uma análise se produz a referida "queda do objeto a" com o efeito de descrença no Outro que lhe é próprio mas, não haverá investimento no dispositivo do passe, a menos que acreditemos ainda no ensino de Lacan. Se a análise é didática, se ao final deve produzir um analista, o dispositivo do passe serve para verificar o efeito de uma análise e para autorizar por meio do reconhecimento de alguns outros a passagem de alguém de analisando a analista. O dispositivo do passe serve ainda para transportar o saldo dessa experiência para o domínio público, ensejando ao mesmo tempo um saber sobre como se produz um analista e que seja transmissível fora do dispositico analítico. Deste modo temos uma abertura entre intensão e extensão ou uma passagem de um saber suposto a um saber exposto 6.

Retorno então à questão das relações do sujeito do inconsciente com o sujeito da ciência. Esse parece ser o osso da posição subjetiva particular de um psicanalista. Nesse campo, o sujeito, isto é a singularidade do desejo, que pode permanecer desconhecido em outros campos de saber, é consubstancial à formação. Nesse caso, o da pesquisa em psicanálise, vou explicá-lo parodiando um aforismo bastante conhecido entre lacanianos: "Lá onde estava sujeito do inconsciente – sujeito do saber suposto - o sujeito da ciência, sujeito do saber exposto, deve advir".

Ocorreu-me retomar a diferença entre saber suposto (dispositivo analítico) e saber exposto (dispositivo do passe) recordando uma intervenção de Miller 7 onde ele o compara o primeiro com a instituição psicanalítica e este último ao dispositivo de apresentação de doentes. Prossigo, traduzindo o mais fielmente possível suas próprias palavras: "Vou dizer uma coisa para provocar revolta: na apresentação há qualquer coisa do passe. O neurótico no passe, aquilo que foi seu íntimo, ele o coloca num circuito de transmissão que escapa à análise. Isso provocou urros, afinal daqueles que urravam porque Lacan fazia apresentação de doentes, urraram um ou dois anos depois, quando o passe entrou em atividade. São consubstanciais. A apresentação não é certamente um passe mas, é a introdução do Outro numa esfera que desejaríamos que fosse protegida, reservada". (pag. 60/61)

3. Uma inversão de perspectiva: o advento do saber científico nas teses universitárias

Prossigo minha interrogação, por meio de uma inversão de perspectiva. Como circunscrever a singularidade do sujeito, que é irredutível ao saber já consagrado, no domínio, por exemplo, das teses universitárias. Será que o saber exposto na universidade sucumbe à tentação da crença num saber absoluto? Para avançar essa interrogação eu gostaria de voltar à questão mais essencial que antecipei: a das relações do sujeito do inconsciente com o sujeito da ciência. De acordo com Miller, o grupo analítico tem em comum com o dispositivo analítico propriamente dito, o culto ao sujeito suposto saber. Todo mundo merece crédito. Se questionamos um raciocínio, se pedimos demonstrações, ou referências acerca do que é afirmado, isso pode ser interpretado como uma agressão. É o exato oposto do que se passa na universidade onde, eu acrescentaria ao comentário de Miller o que se aprende, essencialmente, é a prestar contas, sustentar, demonstrar, o que se diz. Vou um pouco mais longe e afirmo com base na minha própria experiência, que a maior parte do trabalho de um orientador na pós-graduação consiste em separar o candidato a mestre ou à doutor do saber que ele adquiriu e que pensa ter inventado, para reconduzí-lo à sua dívida com este ou aquele texto. Esse procedimento, em geral bastante doloroso, possibilita que um sujeito recorte, diferencie, sua própria questão e possa então produzir sua contribuição. Em defesa desse tipo de procedimento (em geral muito criticado pelo grupo analítico) Miller recorda que Lacan; "...ao longo dos anos, contra os importantes de sua Escola, impôs instrumentos universitários e para-universitários".(pag.60)

O dispositivo do passe, segundo me parece, tem uma afinidade com o momento da defesa de uma tese. Nesse sentido, sua invenção poderia classificar-se entre os referidos "instrumentos universitários" que Miller acredita que Lacan introduziu em sua Escola para limitar os efeitos do saber suposto. Então, eu concluiria que a apresentação de doentes, o dispositivo do passe e a defesa de teses universitárias têm em comum uma mesma estrutura de exposição que, ao contrário do que poderíamos imaginar, convoca a singularidade de um sujeito.

Em apoio dessa aproximaçâo evoco ainda uma vez a intervenção de Miller que volto a traduzir: "Lacan via no passe uma maneira de assegurar a cientificidade da psicanálise. Fazendo expor e recolher os resultados da experiência a mais íntima, ele esperava, do meu ponto de vista, impedir a auto-absorção da psicanálise, afogada no saber suposto". (pag.61)

Se o passe requer uma certa passagem do saber suposto ao saber exposto, não devemos deixar de perceber que isso se faz de um modo bastante limitado. O funcionamento do dispositivo circunscreve-se a uma comunidade muito particular de analistas. Não se destina a comprovar e garantir a universalidade da atribuição do título de analista à alguém. Um analista, mesmo que venha a dar provas dos efeitos de sua análise à maneira do saber exposto da ciência, só pode ser reconhecido como analista perante a comunidade daqueles que acolhem seu testemunho, e o aceitam como prova de sua passagem de analisando a analista.

Volto a exercitar o paralelo com as teses univeresitárias. É preciso tomá-las também a despeito do que possam produzir de inédito, como um resultado de uma determinada tradição. É preciso circunscrevê-lo no campo da tradição onde fez sua formação e realizou suas provas. Uma formação para pesquisa requer que selecionemos candidatos ao mestrado, que ao final de um certo percurso, devem dar provas de que são capazes de recencear bibliografias distinguindo a posição dos diferentes autores, independentemente, até certo ponto, de suas próprias opiniões. De um candidato à doutor esperamos que seja capaz de reconhecer-se numa determinada tradição, distinguir-se de outras tantas e de introduzir algo de seu para fazer avançar a pesquisa no campo que escolheu.

O que se procura por meio dessas etapas não é distribuir títulos honoríficos mas, suscitar uma mudança nas relações de um sujeito com o saber. Essa mudança incide, segundo me parece, sobre a relação ao impossível de saber. Um pesquisador precisa situar-se, distinguir-se, no campo dos saberes. Ele não se reduz a um acumulador de conhecimentos, não é um erudito. Como o osso de sua formação não se separa de seu processo analítico, é o que deriva deste último como interrogação aquilo que melhor o caracteriza. O saldo mais importante desse processo de formação para pesquisa são os efeitos subjetivos do dispositivo acadêmico, suscitar o aparecimento de algo novo, alguém capaz de fazer dos seus significantes, do seu sintoma, a causa da produção de um saber que faça avançar uma determinada tradição e que funcione para incentivar outros tantos a recomeçarem.

Esse paralelo que propus brevemente entre a formação de um analista e a de um mestre ou doutor, mostra a ligação do trabalho de pesquisa em psicanálise com o sintoma e a análise do pesquisador. Desse modo, podemos perceber a ligação necessária do advento do saber da ciência, com o aspecto mais obscuro de um sujeito qualquer, seu desejo, seu sintoma, sua singularidade. Serve ainda para relativizar o alcance da formação de um pesquisador em psicanálise, restringindo-a à sua localização dentro de uma tradição, ressaltando seu caráter não tão universalizante como muitas vezes se quer fazer crer. Serve ainda para delimitar o valor do que se obtém com a formação de um pesquisador e que não se confunde com a obtenção de um título. Deste modo, penso responder àqueles psicanalistas, que escolheram não levar sua formação para a pesquisa às últimas consequências, e que desconhecem os processos subjetivos em jogo na formação de um pesquisador. Equivocadamente, reduzem a efetividade desse processo a uma burocrática atribuição de insígnias que acreditam contribuir para dissolver a singularidade de um sujeito na suposta universalidade dessubjetivante do discurso da ciência. Penso que esse equívoco estimula nos candidatos a psicanalistas uma atitude preguiçosa frente à elaboração do saber exposto. Afogados no saber suposto não produzem nada novo e reproduzem mal a tradição e a cultura psicanalítica.

Eu termino endossando a opinião corrente de que a universidade não forma psicanalistas acrescentando porém, que as instituições psicanalíticas não contam com todos os meios necessários para produzir analistas capazes de fazer avançar os problemas cruciais da experiência analítica. A universidade precisa reconhecer que um pesquisador em psicanálise não pode prescindir da relação à sua própria análise em sua pesquisa. A formação de um psicanalista que não se reduza a de um praticante, talvez não deva, igualmente, dispensar uma formação acadêmica levada até as últimas consequências.

Notas

1 Reproduzo livremente os argumentos Miller, a partir de minhas próprias notas tomadas durante a primeira aula de seu Curso deste ano, intitulado: Le desenchantement de la psychanalyse

2 Miller, J. A. La Politique Lacanienne, 1997/98 pag. 50

3 Miller, J. A . 1997/98, op. cit. pag.. 50

4 Miller, J.A. op. cit. pag. 51

5 Miller, J. A .op. cit. pags 52 e 53

6 Esse assunto foi abordado uma primeira vez em Coelho dos Santos, T. 2000a. Parte desse escito encontra-se reproduzido em alguns trechos dessa retomada do tema que faço agora.

7 Miller, J.A, Les Embarras du Savoir, in: Le Conciliabule D’ Angers, Editions Agalma Le Seuil, 1997, pags 59,60,61 e 62

 

Referências bibliográficas

Coelho dos Santos, T. "A lógica da fantasia e a finalidade do ato analítico" in, Fantasia, Revista do tempo psicanalítico, n0 28, 1995

----------------------"O saber do psicanalista entre suposição e exposição ", in, Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise no 30, 2000

----------------------"Acting-out: o objeto causa do desejo na sessão analítica " in: Opção Lacaniana, Revista Internacional de Psicanálise, no 30, Edições Eolia, SP, 2001a

----------------------Quem precisa de análise hoje? O discurso analítico: nosvos sintomas e novos laços sociais, Ed. Bertrand Brasil, RJ, 2001b

Freud, S.(1933) "A questão de uma Weltanschauung" in: Novas Conferências Introdutórias, vol. XXII, ESB, Imago Editores, 1972

Lacan, J. (1965) La science et la verité, in Écrits, aux Editions du Seuil, 1966

Laurent, E. "Réflexions sur la forme actuelle de l’impossible à enseigner", in: AMP-UQBAR circulação eletrônica, 21 de setembro de 2000

Miller, J.A. "Les embarras du savoir" in: Jolibois, M. Strélinski, P. Le Conciliabule d’Angers, Le Paon, Agalma-Seuil, 1997

----------------"Politique Lacanienne" École de la cause freudienne, EURL Huysmans, Paris, 1997/98

___________"Le désénchantement de la psycahanayse" novembro/2001 (anotações tomadas livremente)

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Número 22 - Diciembre 2005
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