Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
L´une-bévue:
¿um nome para o inconsciente lacaniano?
Marcio Peter de Souza Leite

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I- O insabido e o insabível

Tanto para a poesia como para a psicanálise a significação vai alem da palavra dita. Tanto o inconsciente como a poesia implica que se os escute.

Lacan no seminário de 1976, L’insu qui sait de l’une-bévue s’aile a mourre 1 qualifica a poesia, assim como a psicanalise, como uma escroqueria, mas não qualquer uma: é uma escroqueria que incide justamente , em relação a isto que é o significante, que seja algo bem especial, que tem efeitos de sentido 2.Um pouco depois afirma: tudo o que se diz é uma escroqueria. Não é somente o que se diz a partir do inconsciente. O que se diz a partir do inconsciente participa do equivoco (bévue), que é o principio do chiste - equivalência do som e do sentido.

Alguns autores 3, 4 afirmam que Lacan a partir deste seminário, teria, de uma maneira poética, substituído a noção de inconsciente freudiano pelo termo l´une-bévue, homofônico a Unbewusst, palavra para inconsciente em alemão.

De fato Lacan, no dia 16 de novembro de 1976 5, disse: Vocês souberam ler o cartaz? O insucesso - isso equivoca e eu traduzi enseguida o Unbewusst, dizendo que havia parte de, no sentido partitivo, que havia parte de um-equivoco (de l’une-bévue)... Um-equivoco (l’une-bévue) é a tradução tão boa do inconsciente como qualquer outra, que o inconsciente em particular, que em francês, e em alemão também, equivoca com a inconsciência. O inconsciente não tem nada a ver com a consciência, desde então porque não traduzir tranqüilamente por um-equivoco?

A palavra francesa bévue é traduzida ao português como erro, descuido, equivoco, deslize. Coloquialmente poderia eqüivaler a "dar uma mancada". Lacan aponta que um equivoco (L´une-bévue) é o que se troca apesar de que isso não vale a unidade em questão. Um equivoco é um todo falso. Seu tipo, se posso dizer, é o significante. 6

L’une-bévue inventado por Lacan seria apenas um ato poético, ou um conceito antinômico à noção de inconsciente (Unbewusst) definido por Freud?

Qual o sentido de se introduzir um outro nome para o inconsciente?

Sem duvida Lacan criticou e gradativamente modificou o conceito de inconsciente freudiano. Na conferencia Joyce le symptome II 7 Lacan anunciava seu desconforto com o inconsciente freudiano ao dizer: "minha expressão de parletre que substituirá o inconsciente de Freud...", e depois de propor em 16 nov 1976 substituir o termo inconsciente por l’une-bévue, no mesmo dia 8, propõe introduzir algo que vai além do inconsciente.

Confirmando seu mal-estar com o inconsciente freudiano, ainda no mesmo seminário, em 11 de jan de 1977 9 , Lacan diz que Freud tinha poucas idéias do que era o inconsciente.

O que é o l´une-bévue colocado em oposição ao Unbewusst? Freud frente à tradição que sustenta que o saber "sabe-se a si mesmo" insiste no inconsciente como um saber de natureza simbólica, que seria um saber que não pode ser sabido por nenhuma consciência. Nesta perspectiva o inconsciente freudiano é o insabido, mas que pode vir a se saber.

Em Lacan o inconsciente como saber, é um saber porque está escrito, o que não quer dizer que possa ser sabido pelo eu do sujeito. A este saber que não pode ser sabido, Lacan denominou incabível.

L’une-bévue pode ser entendido como o insabível, diferente do não sabido que caracteriza o Unbewusst freudiano. Cabe aqui uma pergunta: haveria uma relação entre o Unerkannt, traduzido como o não-reconhecivel, termo usado por Freud em relação ao umbigo do sonho, e que Lacan articula com o recalque primário 10, com o l’une-bévue, no sentido do o insabivel?

II- Psicanálise joyceana

A oposição l´une-bévue/Unbewusste coloca em evidencia que existem outros signos que constituem inscrições no corpo do falante, sem significação, isolados: são as letras, traços sem sentido que não poderão jamais ser significados. A esta expressão dos signos se reserva o termo gozo

É a isto que Lacan se refere quando disse na conferencia Joyce le symptome II 11, que o termo de inconsciente introduzido por Freud seria substituído pela noção de parletre.

O parletre advém da sua captura pela alingua. A alingua é a materialidade da ex-sistencia. A alingua é a língua incompleta marcada pelo gozo e pelo desejo. É uma forma de marcar o encontro traumático entre a carne e o logos. Os corpos biologicamente sexuados ao serem presos pela linguagem são excluídos da relação sexual entendida como reciprocidade e harmonia. Ganhar um lugar como sujeito no campo significante é perder o ser da vida natural. O corpo desvitalizado pela palavra fica perdido enquanto real.

Lacan comentando a fixação ao trauma, que organiza a produção do sintoma, se pergunta porque as pessoas se orientam para as recordações infantis, para a fixação de gozo da vivência infantil, em vez de se fazerem poetas.

Mesmo não sendo certo que Joyce foi um poeta, é certo que existe um dispositivo de criação joyceano próprio. E seria nisto que a escrita lacaniana da psicanálise tem algo de joyceano.

A influencia de Joyce já estava presente há muito tempo no texto de Lacan, fato que J.Aubert 12 chama de gestos de escritura joyceana, pois Lacan imita Joyce na criação de palavras.

Exemplo disso é o titulo do seminário de 1976 L´insu qui sait de l´une-bévue s´aile a mourre, que é uma construção igual as produzidas por Joyce em Finnegan's wake. Nesta construção Lacan joga com o equivoco da homofonia poduzindo varias leituras possíveis. Este titulo de seminário pode ser vertido ao português como:

L’insu, a ignorância, o insabido

Qui sait que sabe, soa como c’est, que é.

L’insu Qui sait faz homofonia com l’insuccès, insucesso, o mal resultado

De l’une-bevue, de um equivoco, soa como de l’Unbewusst, de um inconsciente ( em alemão)

S’aile a mourre, se asa por jogo, (mourre é o jogo do par ou impar) soa como c’est l’amour, é o amor.

L´insu qui sait de l´une bévue s´aile a mourre, tem sua versão em português como o insabido que sabe de um equivoco se asa por jogo.

Em francês é homofonicamente equivalente a l´insuccès de l´Unbewusst c´est l´amour , vertido ao português como o insucesso do inconsciente é o amor.

IIII- Poesia psicanalítica

Se o ultimo ensino de Lacan com l’une-bévue tende a assimilar a psicanálise à poesia, seria a vertente poética da psicanálise substituir um meio dizer metonímico por um super dizer poético?

L’une-bévue, ao se referir a palavra alemã homofônica umbewusst põe em ato, poeticamente, aquilo que foi traduzido para o espanhol como unembuste 13, chiste que recria o nome lacaneano para o inconsciente.

Renomear o inconsciente como l´une-bévue, que traduz o Unbewusste jogando com a homofonia da língua francesa com a alemã, faz o inconsciente levar em seu nome a marca da alingua.

Este ato é poesia ou chiste? É metalingua diz Lacan na aula de17 de maio no mesmo seminário: a metalingua em questão, consiste em traduzir Unbewusst por um-equivoco.

Notas

1Lacan,J., L’insu qui sait de l’une-bévue s’aile a mourre, (1976-77)- publicado in Ornicar? Num 12-13, 1977; num 14,1978; num15, 1978; num 16, 1978; num 17/18, 1979

2 Lacan, J., L’insu Qui sait de l’une-bevue s’aile a mourre, aula de 19 de abril de 1977, publicada na Revista Brasileira Internacional de Psicanalise Opção Lacaniana, num 22, agosto de 1998 com o titulo nomina non sunt consequentia rerun

3 M.Vitard " Il y a de l’une-bevue", in L´unebevue,num 1,1992,

4 Allouch, J., Ce à quoi l´une-bévue obvie, in L´unebévue, num 2, 1993

5 Línsu... op cit, nota 2

6 Lacan, J., sem cit 14 de dez 1974,in Opção Lacaniana, op. Cit. Nota 2, aula publicada com o titulo: O sistema torico e a contra-psicanalise

7 Lacan, J., Joyce le symptome II, Bulletin de l´Association freudienne, 1989, num 34, pp3-5

8 Lacan, J op cit, nota 2

9 Lacan, J op cit, nota 6.

10 Lacan, J., Resposta a una pregunta de Marcel Ritter, in Estudios de psicosomatica, vol 2, org. Vera Gorali, ed Atuel , Bs As, 1994.

11 Lacan, J., op. Cit, nota 7

12 Aubert, J., Joyce com Lacan, in A jornada de Ulisses, Escola Letra Freudiana, ano XX, num 28,RJ, 2002.

13 Braustein, N., Freudiano y Lacaniano, Manantial, 1994, BsAs.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 16 - Diciembre 2002
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