Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
"On-tique"
(A desconstrução - lacaniana - do campo da Filosofia)
José Marcus de Castro Mattos

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Em La equivocación del sujeto supuesto al saber (2) Lacan diz o seguinte: "Pero que pueda haber en él un decir que se diga sin que uno (on) sepa quién lo dice, es precisamente lo que se le escapa al pensamiento, es una resistencia ón-tica (on-tique), una resistencia gesticulante (*). (Juego con la palabra on en francés, de la que hago, no sin razón, un suporte del ser, un óv, un ente y no la figura de la omnitud: en suma, el sujeto supuesto al saber.) // Si on, uno, la omnitud, acabó acostumbrándose a la interpretación, lo hizo mucho más fácilmente en la medida en que desde hace añares la religión la habituó a ella. // Remite la interpretación a la transferencia, lo que nos lleva a nuestro uno (on)." (*) Nota de Diana Rabinovich (tradutora): "Lacan escribe ontique on-tique: tiquer significa tener tics y también reaccionar con un gesto de desagrado." (: 31.)

Em minha leitura desta passagem subdivido a escansão realizada por Lacan – on-tique – em três momentos: 1) on , 2) tique e 3) o hífen ( - ). Por sua vez, a articulação entre estes momentos está referida aos seguintes parágrafos de O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964) (3):

"A hiância do inconsciente, poderíamos dizê-la pré-ontológica. Insisti nesse caráter demasiado esquecido – esquecido de um modo que não deixa de ter significação – da primeira emergência do inconsciente, que é de não se prestar à ontologia. (...) o que se mostra ainda a quem quer que na análise acomode por um momento seu olhar ao que é propriamente da ordem do inconsciente, é que ele não é nem ser nem não-ser, mas é algo de não-realizado." (: 33 - 34.)

"O que é ôntico, na função do inconsciente, é a fenda por onde esse algo, cuja aventura em nosso campo parece tão curta, é por um instante trazido à luz – por um instante, pois o segundo tempo, que é de fechamento, dá a essa apreensão um caráter evanescente." (: 35.)

"Onticamente, então, o inconsciente é o evasivo – mas conseguimos cercá-lo numa estrutura, uma estrutura temporal, da qual se pode dizer que jamais foi articulada, até agora, como tal." (: 36.)

"O estatuto do inconsciente, que eu lhes digo tão frágil no plano ôntico, é ético. Freud, em sua sede de verdade diz O que quer que seja, é preciso chegar lá, porque, em alguma parte, esse inconsciente se mostra." (: 37.)

"É o que nos indica que a função-tempo é aqui de ordem lógica, e ligada a uma colocação do real em forma significante. A não-comutatividade, com efeito, é uma categoria que só pertence ao registro do significante. // Aí apreendemos aquilo pelo que aparece a ordem do inconsciente. A que o refere Freud? Qual é o seu avalista? É o que ele chega a resolver, num segundo tempo, elaborando a função da repetição. Veremos mais tarde como podemos, nós, formulá-la, remetendo-nos à Física de Aristóteles." (: 43.)

Então, on-tique em três momentos: 1) on, 2) tique e 3) o hífen ( - ).

Primeiro momento: on.

On (em francês) enquanto óv (em grego), isto é, "un ente", ou, "no sin razón, un suporte del ser" (: 31.).

Via Heidegger (Qu´est-ce que la philosophie?, 1955), referência a Aristóteles (384 - 322 a.C.): "Kaì dè kaì tò pálai te kaì nyn kaì aeì zetoúmenon kaì aeì aporoùmenon, ti tò ón?", a saber, (tradução de Heidegger), "Assim, pois, é aquilo para o qual (a Filosofia) está em marcha já desde os primórdios, e também agora e para sempre e para o qual sempre de novo não encontra acesso (e que é por isso questionado): que é o ente?" (ARISTÓTELES, Metafísica, VI, I, 1028 b 2 ss.) (4)

Heidegger comenta:

"A Filosofia procura o que é o ente enquanto é. A Filosofia está a caminho do ser-do-ente (das Sein des Seiende), quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do Ser. Aristóteles elucida isto, acrescentando uma explicação ao ti tò ón, que é o ente?, na passagem acima citada: touto esti tís he ousía? Traduzindo: ‘Isto (a saber, tí tò ón) significa: que é a entidade do ente?’ O ser-do-ente consiste na entidade. Esta (a entidade, a ousía), porém, é determinada por Platão como idéa, por Aristóteles como enérgeia." (5)

Ora, referir-se ao óv (em grego) – portanto, ao ente – é articular, ainda que implicitamente, a diferença ontológica entre Ser & ser-do-ente.

O que é diferença ontológica?

Tematizada por Heidegger a partir de Ser e Tempo (Sein und Zeit, 1927) (6), é a diferença irredutível & a referência obrigatória entre Ser (das Sein) & ser-do-ente (das Sein des Seiende). Logo, quanto ao Ser, diferença irredutível: o Ser não é o ser-do-ente; logo, quanto ao ser-do-ente, referência obrigatória: o ser-do-ente é (apenas pode sê-lo) "sob o ponto de vista do Ser" (7).

Neste sentido, sintetizando o transcurso da "questão do Ser" no campo da Filosofia (Metafísica), Heidegger nos diz que "seja qual for o modo de explicação do ente, como espírito (no sentido do espiritualismo), como matéria e força (no sentido do materialismo), como vir-a-ser e vida, como representação, como vontade, como substância, como sujeito, como enérgeia, como Eterno Retorno do Mesmo (em Nietzsche), sempre o ente enquanto ente (ón he ón) aparece à luz do Ser (Lichte des Seines)" (8).

Assim, quanto ao problema da verdade – problema fundamental para a delimitação e determinação filosóficas (metafísicas) do ser-do-ente –, Heidegger precisa que "verdade ôntica e ontológica sempre se referem, de maneira diferente, ao ente-em-seu-ser e ao ser-do-ente. Elas fazem essencialmente parte uma da outra em razão de sua relação com a diferença de Ser e ser-do-ente (diferença ontológica)" (9).

Todavia, a Filosofia (Metafísica) esquece a diferença ontológica entre Ser & ser-do-ente. Nas palavras de Heidegger, "a distinção do ente e do Ser revela-se como esse mesmo de onde surge toda a Metafísica, mas do qual ela escapa, deixando-o para trás de si, fora de seu domínio, enquanto aquilo acerca do qual não medita e não tem necessidade de meditar." (10)

Isto posto, a Filosofia (Metafísica) "jamais traz à palavra" (a expressão é de Heidegger) a diferença ontológica enquanto tal, decidindo-se, ao contrário, obstinadamente, inclusive nos momentos em que se procurou "invertê-la", "revertê-la" ou "superá-la" (cf. Marx, Nietzsche e Sartre), decidindo-se então, dizia eu, pela indiferença ôntica, a saber, "trazendo à palavra" apenas e tão-somente o ser-do-ente (em termos gerais, quanto aos "últimos metafísicos": em Marx, o "trabalho"; em Nietzsche, a "vontade de potência"; em Sartre, a "existência").

Ora, se o estado de coisas no campo da Filosofia (Metafísica) é este – e Heidegger procurará, desde Ser e Tempo (1927), "destruí-lo" (11) –, por sua vez, no estado de coisas do campo da Psicanálise (também ele "metafísico"?), qual o estatuto do on (em francês) "de la que hago", nos diz Lacan, "no sin razón, un suporte del ser, un óv (em grego), un ente y no la figura de la omnitud: en suma el sujeto supuesto al saber" (12)?

Então, on-tique em três momentos: 1) on, 2) tique, e 3) o hífen ( - ).

Segundo momento: tique.

Como não ouvir aqui a tiquê aristotélica, tematizada à exaustão por Lacan?

Infelizmente a tradutora do texto que estou analisando, Diana Rabinovich, em nota ao pé da página 31 "não ouviu" em tique a tiquê, atendo-se à definição de tiquer – eu a cito: "tiquer: significa tener tics y también reaccionar con un gesto de desagrado" (: 31). Bem, com o devido respeito ao esforço da tradutora, a escolha por tiquer empobrece muitíssimo – quando não ridiculariza – a extraordinária escansão lacaniana (on-tique).

Cito Lacan (13):

"Primeiro a tiquê que tomamos emprestada, eu lhes disse da última vez, do vocabulário de Aristóteles em busca de sua pesquisa da causa. Nós a traduzimos por encontro do Real. O Real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio de prazer. O Real é o que vige sempre por trás do autômaton, e do qual é evidente, em toda a pesquisa de Freud, que é do que ele cuida." (: 56.)

"O que se repete, com efeito, é sempre algo que se produz – a expressão nos diz bastante sua relação com a tiquê – como por acaso. É no que nós, analistas, não nos deixamos jamais tapear, por princípio." (: 56.)

"A função da tiquê, do Real como encontro – o encontro enquanto que podendo faltar, enquanto que essencialmente é encontro faltoso – se apresenta primeiro, na história da Psicanálise, de uma forma que, só por si, já é suficiente para despertar nossa atenção – a do traumatismo –." (: 57.)

"Este desenho que lhes dei hoje da função da tiquê, vocês verão que ele nos será útil para retificar o que é o dever do analista na interpretação da transferência." (: 64.)

"Se o desenvolvimento (dos pretensos estágios) se anima inteiramente pelo acidente, pelo tropeço da tiquê, é na medida em que a tiquê nos traz de volta ao mesmo ponto em que a filosofia pré-socrática procurava motivar o próprio mundo." (: 64.)

"O que é falhado não é a adaptação, mas tiquê, o encontro. // O que Aristóteles formula – que a tiquê se define por só nos poder vir de um ser capaz de escolha, proairesis, que a tiquê, boa ou má-sorte, não nos poderia vir de um objeto inanimado (...)" (: 70 - 71.)

"Pois, depois de tudo, por que a cena primitiva é tão traumática? (...) Por que ela não desperta logo o sujeito, se é verdade que ela é tão profundamente libidinal? Por que o que acontece aqui é distíquia? Por que a pretendida maturação dos pseudo-instintos é transfilada, transvazada, transfixada de tíquico, eu diria – do termo tiquê?" (: 71.)

Assim, se é possível ouvir tiquê em tique - minha pontuação reduz-se ao acréscimo do acento circunflexo, transmutando o francês em grego –, e observando-se que o próprio Lacan define o on (em francês) como sendo o óv (em grego) – "un suporte del ser, un óv, un ente" –, a escansão lacaniana on-tique pode ser interpretada da seguinte maneira:

on - tique (em francês) ---- / ---- ón - tiquê (em grego)

Então, on-tique em três momentos: 1) on, 2) tique e 3) o hífen ( - ).

Terceiro momento: o hífen ( - ).

Interpreto-o literalmente, a saber, como traço, e, pois, como marca – inapagável, indelével, estrutural –. Desse modo, ón - tiquê significa ón marcado pela tiquê, ou, o que seria dizer o mesmo, em acordo com os sentidos que Lacan confere a ón e a tiquê (cf. as citações acima), um ente marcado pelo encontro essencialmente faltoso com o Real.

Esquematicamente:

on - tique (em francês) ---- / ---- ón - tiquê (em grego)

{um ente marcado pelo encontro essencialmente faltoso com o Real}

Ora, se se trata de um ente assinalado "pelo tropeço da tiquê" (como diz Lacan), seu estatuto conceitual não pode ser obtido nem no contexto da "lembrança" da diferença ontológica entre Ser & ser-do-ente ("pensamento do Ser", versão heideggeriana), nem muito menos no do "esquecimento do Ser" característico da Filosofia ("Metafísica enquanto exclusiva determinação do ser-do-ente", versão aristotélica). Portanto, o "ontológico & o ôntico" não têm nada a ver – ou a fazer – com este ente (on - tique).

Um paradoxo? Sem dúvida. Porque se há ente apenas "sob o ponto de vista do Ser" (cf. Heidegger, acima), que ente (ón) é este entronizado por Lacan (via Freud) nos dispositivos discursivos que regem a nossa "realidade"? Que ente (ón) é este cujo traço (marca estrutural) é justa e precisamente o (des)encontro com o Real , vale dizer, o "estar-fora" – e "por fora" – da "questão do Ser"? Pois a este ente ("ón"), escandalosamente, "falta-ser" – ou, pior, e isto sim é cumprir à risca o projeto heideggeriano de "destruir" (14) a Ontologia tradicional (Metafísica), a este ente ("ón") falta o Ser.

Como sempre, Lacan é rigoroso: "un ente y no la figura de la omnitud: en suma el sujeto supuesto al saber" (: 31). Recorto: 1) "y no la figura de la omnitud", isto é, (valho-me de uma metáfora com densíssima pregnância), "e não a figura do Ser de Parmênides, ‘Esférico’, ‘Completo’, ‘ Imutável’, ‘Eterno’ (este "Ser" fez fortuna na Filosofia e também na Psicanálise dita pós-freudiana...); e 2) "en suma el sujeto supuesto al saber", isto é, "em suma o ón - tiquê, o ente face à privação do Ser", ou, se se preferir, (o termo é de Lacan), o ente face ao "des-Ser" (15).

Esquematicamente:

on - tique ---- / ---- ón - tiquê > Sujeito-suposto-Saber

{um ente marcado pelo encontro essencialmente faltoso com o Real}

Enfim, LA EQUIVOCACIÒN DEL SUJETO SUPUESTO AL SABER, título da conferência de Lacan (traduzido para o espanhol), pode ser lido: A ON -TIQUE (ón - tiquê) DO SUJEITO-SUPOSTO-SABER.

 

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Psicanalista. Membro da Escola Letra Freudiana (Rio de Janeiro, Brasil). Tels. (021) 2205 58 56 / (021) 9888 41 85 / jmcastromattos@uol.com.br

(2) LACAN, J. "La equivocación del sujeto supuesto al saber (en el Instituto Francés de Nápoles, el 14 de Diciembre de 1967)", traducción de Diana Rabinovich – "La méprise du sujet supposé savoir", in Autres écrits, Paris (France): Éditions du Seuil, 2001: 329 - 339.

(3) LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

(4) HEIDEGGER, M. "Que é isto – a filosofia?", in HEIDEGGER, Os pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1989: 17.

(5) HEIDEGGER, M. Op. cit.: 18.

(6) HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, Petrópolis: Vozes, 1988.

(7) HEIDEGGER, M. "Que é isto – a filosofia?", op. cit.: 18.

(8) HEIDEGGER, M. "O retorno ao fundamento da metafísica", in HEIDEGGER, Os pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1989: 55.

(9) HEIDEGGER, M. "Sobre a essência do fundamento", in HEIDEGGER, Os pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1989: 92.

(10) HEIDEGGER, M. Nietzsche, tradução de Pierre Klossowski, Paris (France): Gallimard, 1971: v. 2, 206.

(11) HEIDEGGER, M. "A tarefa de uma destruição da história da ontologia", in Ser e Tempo, Petrópolis: Vozes, 1988: 47 - 56.

(12) LACAN, J. "La equivocación del sujeto supuesto al saber (en el Instituto Francés de Nápoles, el 14 de Diciembre de 1967", op.cit.: 31.

(13) LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964), Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

(14) "Caso a questão do Ser deva adquirir a transparência de sua própria história, é necessário, então, que se abale a rigidez e o endurecimento de uma tradição petrificada e se removam os entulhos acumulados. Entendemos essa tarefa como destruição do acervo da antiga ontologia, legado pela tradição. Deve-se efetuar essa destruição seguindo-se o fio condutor da questão do Ser até se chegar às experiências originárias em que foram obtidas as primeiras determinações do Ser que, desde então, tornaram-se decisivas." – HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, Petrópolis: Vozes, 1988: 51. Ora, desta "destruição do acervo da antiga ontologia" surgirá, mutatis mutandis, a desconstrução operada por Derrida e – sob o cognome "retorno a Freud" – a realizada por Lacan...

(15) "Não há nada a fazer com o des-Ser, cuja questão é saber como o passe pode enfrentá-lo (...)" – LACAN, J. "Discurso à Escola Freudiana de Paris" (06 de Dezembro de 1967), in Documentos para uma escola, 2, Lacan e o passe , Rio de Janeiro: Escola Letra Freudiana, 1995: 36.

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Número 16 - Diciembre 2002
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