Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Quando não há desejo, o dejeto
Teresa Da Costa

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A notícia não é fresquíssima. .. Trata-se de mais um projeto de pesquisa do renomado Professor Kevin Warwick, chefe do Departamento de Cibernética da Universidade de Reading, Inglaterra. Vale comentá-la para discutir a concepção que fundamenta tais iniciativas, a ética que as preside, seus meios e conseqüências.

Não restam dúvidas quanto à importância da inteligência artificial e da robótica para melhorar a qualidade da vida humana, inclusive em seus aspectos psíquicos. Afinal, alguns se reconfortariam em ter sua presença detectada e reconhecida, que portas se abrissem e luzes se acendessem à sua chegada, nem que fosse através de sensores eletrônicos, tal como experimentou o mesmo cientista em outra ocasião. Ainda que outros, pelo mesmo motivo, se sentiriam incomodados ou até mesmo perseguidos.

Certo, você pode acrescentar a trilha sonora de sua preferência (fundo musical, salva de palmas, apitos e assovios, bateria de escola de samba, rugidos de animais, etc) e também uma voz masculina ou feminina para saúda-lo: "Você é o máximo! Está cada vez melhor!" Em momentos de angústia ou depressão esta proposta pode soar atraente.mas... Lástima! O aparato não se encontra à venda e seu custo seria proibitivo para a maioria. Nem tudo é perfeito. Mas a ciência avança firme em seu propósito de chegar lá.

Pois o projeto seguinte do Professor Warwick, admirado por uma legião de fãs e fotografado na capa da antenada revista Wired, também instiga a imaginação. O novo chip a ser implantado em seu braço, em conexão direta às fibras nervosas, deverá registrar sinais corporais elétricos a partir de movimentos, sensações e emoções que, reenviadas no futuro para o sistema nervoso, serão reproduzidos à revelia do estado emocional do momento. A segunda fase deste experimento prevê a transmissão destes mesmos sinais para outra pessoa por chip – no caso, a escolhida foi a Sra. Warwick – e para o mundo, pela Internet.

Ainda que o cientista, sua esposa e equipe estejam confiantes no sucesso da pesquisa, consideremos. Registrar sensações e emoções, reenviá-las ao SN e reproduzi-las depois, pode ser um fato interessante, curioso. Lembrando que a raiz etimológica da palavra curioso é a mesma que a de cura, arrisca-se supor que da mera curiosidade advenha uma técnica de cura. Quem sabe?

O sujeito é dividido. Contudo, ressalta neste projeto algo de esquizofrenizante: a idéia de reproduzir sensações e emoções a despeito do que esteja ocorrendo a cada momento. Para aqueles que dispõem da capacidade de fantasiar, veleidade inútil, talvez. Para aqueles que apresentam falhas nesta faculdade, os resultados podem ser catastróficos quanto a abrir a uma crise subjetiva, onde há parcos recursos psíquicos para superá-la..

Se se registrarem sensações e emoções negativas – frio, dor, vazio, astenia, inapetência, tédio, ódio, medo, tristeza, nojo, vergonha - reproduzi-las, para quê? Num bom momento, então, nem pensar: A menos que se trate de intento adaptativo para instalar os chamados condicionamentos negativos, masoquismo ou tortura declarada. Por outro lado, privilegiar as sensações e emoções positivas pode parecer mais razoável,. mas o propósito de controle social e psicológico conforme ao ideal da neurociência, segundo o qual o homem deve estar sempre bem, no auge de suas capacidades físicas e mentais, igualmente se mantém.

Reproduzir o mesmo, ainda que este tenha um caráter aparentemente benéfico, conduz à entropia, já dita há tempos a 2a Lei da Termodinâmica. A repetição, modo pelo qual opera o aparelho psíquico, tem uma face real que força o sujeito a tentar re-encontrar o mesmo; e uma face simbólica, que sempre fracassa neste propósito. Mas que ao forçar a contingência do que é novo, permite ao sujeito uma perda de gozo.

Nada disso a ciência quer saber, por mais deletérios que sejam os efeitos desta ignorância. O Cientista Warwick se inclui algo de psi em sua agenda, o faz pela via do engano, da libido que em sua livre circulação pelo aparelho, pega carona em qualquer significante, o mais anódino possível, para aliviar a barra e distrair o sujeito em seu esforço para manter o que o chateia por baixo do tapete.

Voltando ao projeto, antes de partir para o campo de pesquisa, valeria concluir a interrogação contida nesta frase para definir melhor o que se investiga. Você me ama tanto quanto eu ...me amo, te amo, te odeio, me odeio, gostaria de ser amado são algumas das seqüências possíveis que implicam em conseqüências diversas.

Um ideal de transmitir, de compartir sensações e emoções dentre os parceiros no amor sempre existiu. Então, será necessário este aparato eletrônico sofisticado para forjar a ilusão de completude? O que está havendo com os humanos quando já não bastam caras e bocas, gestos, atitudes e palavras ternas para expressar seu amor? Em geral, os amantes costumam prezar sua privacidade. Basta a lua como testemunha para iluminar a magia da paixão. O que mais está em jogo quando se propõe que uma pesquisa dita científica se desenvolva neste clima de reality show, via Internet?

Na primeira pesquisa mencionada, reina Narciso, o Eu tomado pelo sujeito como primeiro objeto de amor. Na segunda pesquisa, sob as bênçãos de Eros desponta um primórdio de alteridade, um semelhante de quem se espera o amor. A prosseguir nesta linha de investigação, logo sobrevirão os conflitos próprios à tópica do Imaginário e o Professor talvez precise recorrer a outras divindades.

Elaborar e divulgar projetos como estes, mesmo que não se chegue a executá-los de fato, é suficiente para atestar a superficialidade ou mesmo a inexistência de laços sociais na contemporaneidade. Um mundo dominado pela premência de ações on-line, onde não há tempo para o amor, que exige como antecedente uma suposição de saber, por encontros fugazes movidos pelo impulso da atração física rápida e anonimamente descarregada.

O discurso que sustenta esta prática investigativa, fundamentado na ciência e financiado pelo capital da livre empresa, não prima exatamente por pautar-se em alguma ética, na medida em que ignora que tais procedimentos não são sem conseqüências para os falantes. Não bastasse expropriá-los de sua força de trabalho físico e intelectual, usurpa-lhes também a perspectiva de trabalho psíquico. De desejado/desejante o humano se reduz em escala de massa a dejetado/"deletante".

Tampouco os cientistas consideram que Eros feminiliza aqueles que por ele são flechados, uma vez que os designa ao circuito da demanda no qual a mãe fálica, todo poderosa, poderá fazer dom ou frustrar, sem necessariamente se submeter à Lei, ao interdito paterno.

A diferença e a ordem do sexual só se inscrevem pelo desejo.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 16 - Diciembre 2002
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