Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Angustia e saber
Gilda Vaz Rodrigues

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Desde o início, a conceituação sobre a angústia vem trazendo e se fazendo acompanhar de uma outra conceituação, que se mistura e ao mesmo tempo se distingue mas que vai tomando forma, à medida que avançamos na formalização. Trata-se do saber.

A angústia tem saber. Isso levou Lacan a se referir a ela como o afeto que não engana.

Freud, ao formulá-la em sua segunda teoria da angústia como sinal de perigo, também introduziu aí um elemento da ordem de um saber, algo que sinaliza que ali existe alguma coisa que aponta para uma verdade. Verdade que é um perigo.

E por que perigo?

Talvez o que paradoxalmente é algo do qual "não se quer saber nada disso".

Se por um lado Freud alude a uma disposição do sujeito em direção ao saber, chegando a formular uma pulsão de saber - Wissenstrieb –, por outro lado Lacan enfatizou uma direção oposta no sentido de uma paixão da ignorância.

Estes dois pólos se articulam uma vez que o saber e o não querer saber se conjugam nos três tempos da experiência freudiana: Inibição, Sintoma e Angústia.

Não irei me deter nos dois primeiros onde o saber e o não querer saber enodam-se: inibição, ou onde eles encontram a saída de compromisso: sintoma. Irei centrar minha atenção no terceiro tempo da formulação freudiana: a angústia.

E qual a relação entre angústia e saber?

Dissemos que a angústia aponta para algo que sinaliza a verdade do sujeito. Verdade que toma corpo, literalmente.

A natureza dessa verdade que a angústia veicula será o objeto do nosso trabalho.

Nas primeiras lições do Seminário da Angústia, Lacan, num determinado momento, ressalta: "A verdade vem de Kierkegaard através da angústia".1

Ao formular o conceito de angústia (l844) Kierkegaard suscita o paradoxo pois a angústia não pode ser de modo algum objeto de um conceito, mais ao mesmo tempo ela é o fundamento não conceitual de todos os conceitos.

Sartre, por sua vez, se referiu à angústia como um falso-conceito, definindo-a como um- ponto de universalização do singular.

O que se revela aí é o confronto com a vacuidade, o vazio, que não pode ser abordado através dos recursos conceituais que o pensamento filosófico ou a lógica formal aristotélica oferece.

Lacan desenvolve seu Seminário X nesta direção, sustentando o estatuto não-conceitual da angústia, uma vez que ela toca o real.

E como dizer do real?

O que se pode dizer do real, na experiência psicanalítica, nos é dado pelo traço unário, que é o traço da repetição.

Mas de que repetição se trata, essa do traço?

É também em Kierkegaard que encontramos uma referência que nos permite abordar o estatuto desse traço de repetição.

Em 1843 ele escreve sobre a repetição mostrando que o homem não pode repetir cada uma de suas experiências estéticas e éticas a fim de gozar um prazer passado. A repetição, entretanto, é possível no plano do futuro, na aceitação da vida como um constante recomeçar, conversão que se abre ao sentimento do prodigioso e do divino. Em outros termos, a repetição só é possível como impulso de submissão ao desconhecido e radica-se no próprio absurdo da impossibilidade de recomposição e reprodução das experiências estéticas e condutas éticas do passado.

Retomemos o traço unário como o traço de repetição.

Como que o traço unário entra em cena?

Diríamos melhor se disséssemos: como ele entra na contabilidade do que se repete?

Isso porque ele entra a partir do momento em que começa a ser contado como UM? E como que ele é contado como UM? Seria a cada vez que um sujeito se precipita, se lança em um ato em que, antes de reproduzir uma identificação do passado, ele cria uma nova identificação, mas que traz como um carimbo a marca de origem?

É aí que tentarei articular o tempo da angústia como este tempo de passagem, esse intervalo entre gozo e desejo. Entre o atrelamento a uma forma repetitiva – que busca a reprodução de um encontro, que se fará sempre faltoso, com algo de uma experiência passada – e a asserção antecipada de um sujeito que só pode se apresentar com S, ou seja, na vacilação de um certo fading onde ele se lança antes mesmo de tomar forma.

Seria o traço unário a projeção para o futuro de que nos fala Kierkegaard, a qual lança o sujeito ao desconhecido, ao novo, criando novas formas de lidar com velhas questões?

De qualquer forma, para que isso ocorra é preciso que o sujeito se desprenda dos envólucros que o envolveu e se desloque da via pela qual ele procura o impossível que é apreender-se como um objeto, o a que ele não deixa cair, soltar.

O que ocorre é que apreender-se como objeto é sempre uma posição masoquista. O deixar cair o a que ele é aí na estrutura, não significa lançar-se na linha do trem como a jovem homossexual, do texto de Freud, mostrando que ela não se desprende, ela vai junto como sendo ela o próprio a numa passagem ao ato. Nem tampouco se lançar em tramas e aventuras com a dama de reputação duvidosa, para mostrar ao pai o que ela queria dele, em forma de acting-out.

Como, então, o a se apresenta na constituição do sujeito na posição de desejo?

O a é o que resta da relação com o Outro, daquilo que se pode nomear, representar nesta relação. Resta como um ponto irredutível, não assimilável, não especularizável, e é preciso que ele caia como resto para que a repetição imponha o novo, aponte para o futuro e não apenas reproduza o mesmo, tentando-se reencontrar o a que não se tem mais, pela via regressiva sob a forma de identificação.

Mas de qualquer forma esse a aparece num primeiro momento tomando a consistência de uma passagem ao ato ou do acting-out. É aí que o sujeito mostra sua causa, deixando cair este resto que é onde ele paga com o corpo, pondo o corpo em cena.

É por isso que quando o sujeito atua, ele sente isso como algo estranho nele próprio, como algo que ele faz a sua própria revelia; como um duplo de si mesmo que toma forma em suas ações.

Como se perguntasse:

– Por que faço isso que me faz sofrer, mas não consigo deixar de fazer?

A resposta seria: por causa do a, ou ainda: o a é a causa

O a é o operador de nossas ações.

Mas o a pode vir como resposta no fantasma S<>a, como também pode vir como falta, constituindo a rocha onde Freud coloca o limite da experiência analítica.

Portanto, quem sabe da causa é o a.

O surgimento da angústia aponta para algo, este Etwas que nos assinala Freud quando insiste que a angústia é diante de algo - Angst is Angst vor Etwas.

É preciso ouvir as formas fantasmáticas com que o a se reveste e se apresenta, pois é através do fantasma que ele opera, como suporte do desejo.

No Seminário X, Lacan assinala que já há conhecimento no fantasma (qu 'il y a connaissance dans le fantasme).

É este saber que insiste através do acting-out quando a fala não é suficiente para fazer ouvir a causa, o analisante então irá mostrá-la colocando o corpo em cena.

E como se opera com o acting-out?

Lacan destaca a função do corte; é por isso que ele usa o exemplo da circuncisão. Um corte e uma torção para que se possa efetuar a castração, que instaura o sujeito na ordem simbólica.

A prática psicanalítica visa alcançar um ser sem substância que é o próprio corte, como escansão que promove a queda do objeto, fazendo advir o sujeito sem substância.

Mas para que isso ocorra é preciso que o objeto que toma corpo na análise seja desencarnado.

O objeto pode tomar corpo de várias formas. Nasio fala em formações do objeto a, que não se regem pelas mesmas leis significantes que se aplicam às formações do inconsciente.

Podemos identificar estas formações nos fenômenos psicossomáticos, nas anorexias e bulimias, nos acting-out, para citar algumas.

Cria-se uma nova realidade ali onde o objeto deveria cair, ele toma corpo.

No mesmo texto onde Nasio fala dessas formações ele assinala:

"Isso comporta a idéia, que a realidade é uma questão de limite, de borda, e eu acrescento... que é uma questão de nó, não no sentido de nó borromeano, mas de algo que se fecha como um nó".2

A forma mais comum de o objeto tomar corpo na análise é através do acting-out, onde ele literalmente coloca o corpo em cena agindo em vez de falar.

É a forma como o a, revestido pelas vestimentas fantasmáticas, entra em cena.

A consistência do a que nos interessa enquanto analistas, é esta que toma forma encarnado no fantasma.

Por isso, é preciso ouvir a verdade que há neste pequeno nó que surge como obstáculo à análise.

É aí nessa junção do corpo com a palavra que se funda o desejo.

Neste sentido, Lacan fala do a como objetalidade e não como objetividade.

A objetividade, ou conhecimento objetivo, é correlativo de uma razão pura, último termo que se pode articular por uma lógica formal.

A objetalidade é introduzida como correlato de um "pathos de corte" e se articula com a função da causa.

A partir da psicanálise, da descoberta freudiana do saber inconsciente, não se pode mais pensar o conhecimento sem levar em conta esta objetalidade que está presente na subsistência da causa. Causa que é causa do desejo.

Ao formular a produção do objeto a como decorrência da fala, Lacan assinala que essa produção irá afetar estruturalmente a forma de apreensão do conhecimento e da realidade pelo homem.

Tendemos a pensar na construção fantasmática que se impõe como meio que inscreve o gozo, como um conhecimento objetivo, como se fosse possível apreendê-lo, nomeá-lo pelos mesmos instrumentos que usamos para decifrar e fazer deslizar os sintomas. Não se trata entretanto dessa mesma forma de operar quando se trata do objeto.

Daí a correlação com a prática da circuncisão. Um corte que é uma marca. Uma marcação estrita da falta, tanto quanto a depuração de um a.

A relação com o campo do Outro se fará não mais através do que toma corpo, mas através desse pequeno fragmento de carne que cai, que se perde – o a.

A partir da distinção entre "objetalidade" – relativa ao a – e a objetividade, enquanto pré-requisito da ciência, rompemos com a suposta autonomia do conhecimento objetivo.

Embora objetalidade e objetividade possam parecer correr paralelamente sem um ponto de encontro possível, a objetividade do conhecimento científico não pode prescindir de considerar a objetalidade.

Neste sentido, Lacan outorga à objetividade uma tripa causal, ou seja, há uma implicação visceral que estaria na raiz do conhecimento científico.

Vejamos mais de perto como isso se daria:

A subsistência dessa causa, a sua irredutibilidade se deve ao fato de ela ser idêntica a essa parte de nossa carne que fica presa na máquina formal da lógica do fantasma de cada um.

Sem isso, o formalismo lógico não teria sua própria eficácia imperativa de gozo.

Isso é que faz com que demos o sangue, a carne, o corpo por uma causa. Um pedaço de carne arrancado de nós quando nos engajamos numa posição de desejo, através da criação de uma teoria, de uma obra qualquer.

"É essa parte de nós mesmos tomada na máquina do formalismo lógico para sempre irrecuperável, este objeto como que perdido nos diferentes níveis da experiência corporal onde se produz o corte, é ele que é o suporte, o substrato autêntico de toda função como tal da causa."3

Esta parte é, por função, parcial, ela é parte do corpo.

Podemos constatar isso na própria linguagem que trai a verdade aí subtendida.

Por exemplo, quando falamos:

"Dou-lhe meu coração".

"Deu o sangue por uma causa". "Suar a camisa". "Ter que ralar".

"Ser mãe é desdobrar fibra por fibra o coração".

Enfim, esse coração está aí, como toda metáfora de órgão, para se tomar ao pé da letra. Aí, no sentido da letra mesmo, do a como letra.

É como parte do corpo que ela funciona, a causa. É isso que Lacan irá chamar de Tripa Causal.

A tripa como as vísceras, aquilo que às vezes nos leva a dizer que algo é visceral. Algo que nos invade ao nível visceral mesmo, e que chega a doer.

Quando Freud formula as teorias sexuais criadas pelas crianças, já estaria apontando para a raiz dos grandes pressupostos teóricos e científicos criados pelos adultos.

Raiz esta que estamos situando aqui como não só a partir de um dos pólos – pulsão de saber ou ephistemológica, mas enfatizando este outro: a falta de saber, que levaria uma criança a criar uma resposta, através de seus próprios recursos, àquilo que estruturalmente não teria resposta: o sexo e a morte. O que moveria esta pulsão ephistemológica seria a falta de saber estrutural onde, para não cair nesse abismo da ignorância radical, o sujeito se engancha, se ancora num significante qualquer que inaugura a cadeia de todas as respostas que poderão a partir daí se produzir.

Há portanto um nível de saber que passa pelo corpo, a medida que toca num ponto onde todo o saber formulado é esgotado, um ponto de ignorância radical portanto, limite entre o somático e o psíquico, diríamos com Freud a respeito da pulsão.

Se Freud privilegiou o campo do psíquico ao distinguir a pulsão de saber, Lacan privilegiou o lado do somático, dessa libra de carne que se paga toda vez que somos tocados neste ponto de nosso ser.

Trata-se de algo que concerne à divisão constituinte do sujeito, o qual só pode surgir neste saber que é consequência da articulação significante.

É assim a experiência analítica. Não adianta estudar psicanálise sem passar pela análise, sem pôr o corpo no divã.

Mas também há um momento em que se tem que tirar o corpo do divã e se colocar na vida, final de uma análise.

Momento em que é preciso que o sujeito, num mais além de tudo que é possível dizer, interpretar, analisar, ponha seu corpo numa ação nova, pela qual ele se faz sujeito.

Não se trata de acting-out ou de passagem ao ato, mas de ato. Ato de sujeito que se funda no próprio ato, que levou Freud a parodiar Goethe no final de Totem e Tabu afirmando: "No princípio era o ato".

Para isso é preciso que o sujeito possa deixar cair o a que como operador movimenta a cadeia onde o sujeito pode aparecer.

Trata-se de uma asserção de certeza antecipada, onde o sujeito se precipita numa resposta e se cria por isso mesmo como sujeito.

Diante do desarvoramento da ausência de resposta no campo do Outro, do nada mais a dizer, do nada mais a interpretar, nada mais a saber, nada mais a analisar, só nos resta apostar em uma marca que não se sabe, neste ponto de ignorância radical, tocado pelo saber analítico, que nos sustenta.

Entramos aqui no ponto onde finalmente poderemos distinguir a especificidade dessa operação.

Não mais o sujeito da certeza mas a certeza de um sujeito como decorrência lógica.

Não se trata mais dos atributos com os quais o sujeito se define e que lhe são oferecidos pelo Outro, juízo de atribuição, mas do juízo de existência, aquele na qual o sujeito sem substância, sem essência, sem predicados, tem sua certeza antecipada. Pela sua própria condição de prematuridade ele não está lá, ele se precipita numa resposta que o Outro significará.

A certeza antecipada aponta para o lugar vazio na estrutura que exige a escolha forçada de se dizer o indizível. Daí se pode dizer da perspectiva criacionista da psicanálise.

O fantasma é o último resíduo mais primitivo, último ponto de predicado com que o sujeito se garante. Ponto de ancoragem do desejo. Daí a certeza que a angústia sinaliza quando se toca no fantasma.

Para se ir além desse ponto é preciso sair das predicações fálicas com as quais o neurótico responde à sua falta-a-ser, desabando a cada destituição subjetiva.

Uma nova forma de operar se faz necessária, onde a existência do sujeito lhe é dada através das escansões temporais.

Tal como no sofisma dos três prisioneiros, cada um de nós tem um disco que desconhecemos, este ponto de não-saber que carregamos nas costas, e que nos leva a ter que fazer a hora, fazer o encontro, saber encontrar o real onde seu ser tem suporte.

Reencontramos Kierkegaard neste ponto de concluir, considerando que a repetição do futuro como ele define este impulso de submissão ao desconhecido, certamente se fundamenta na existência desse ato antecipado pelo qual o homem se abre à dimensão do prodigioso e do divino.

Notas

1 LACAN, Jacques. A angústia – Texto não estabelecido.

2 NASIO, J-D. Psicossomática: as formações do objeto a, p.10.

3 LACAN, Jacques. Angústia – tradução - texto não estabelecido.

BIBLIOGRAFIA

FREUD, Sigmund. Inibição, Sintoma e Angústia. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XX.

______. O "estranho" (1919). Op.cit., v.XVII.

LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada – um novo sofisma. In Escritos – Campo Freudiano no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

______. A Angústia – texto não estabelecido.

FORBES, Jorge. Notas de Curso – 1989 – Módulo sobre identificação. Matema. BH.

HARARI, Roberto. Seminário A angústia de Lacan: uma introdução. Porto Alegre: Artes Ofícios, 1997.

KIERKEGAARD, Sören Aabye. Os Pensadores. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1974, v.XXXI, cap. 45.

NASIO, Juan-David. Psicossomática: as formações do objeto a. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

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Número 16 - Diciembre 2002
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