Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
Entre a cronogêse e a cronopolítica
Elementos para uma análise da gravidez na adolescência
Tania Ribeiro Catharino

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Este artigo foi elaborado a partir de uma pesquisa por mim realizada ( 1 ) que se propôs a analisar a ocorrência da gravidez na adolescência. Utilizei como campo de pesquisa uma maternidade integrante do SUS ( Sistema Único de Saúde, Município do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, Brasil ) que atende a uma clientela pertencente às camadas mais empobrecidas de nossa população. O aumento do número de casos reportados em nossa realidade vem sendo apontado através de indicadores epidemiológicos, que também o localizam na faixa entre 10 e 14 ( fato até pouco tempo inexpressivo ), além de o relacionarem à pobreza e baixa escolaridade, ou seja, às precárias e/ou ausentes oportunidades sociais. O presente trabalho se encontra dividido em duas partes: na primeira, procurei abordar teoricamente o tema em questão. No entanto, ao invés de me deter em estudar os referidos "perfis epidemiológicos", deflagadores de ações que têm por meta a contenção e o controle – delineando aquilo que Castel ( 1978 ) chamou "Gestão dos Riscos" – me dediquei a tentar compreender melhor alguns percursos possíveis de serem produzidos por aquelas que, porventura, não se deixaram capturar passivamente pelos discursos e ações deduzidos das políticas públicas dirigidas a este estrato populacional. Utilizei neste empreendimento a categoria tempo, assim como a divisão das esferas pública e privada como uma forma privilegiada de compreender e interpretar a referida realidade, o que me remeteu a algumas considerações sobre as relações instituídas entre as denominadas "idades da vida" e em especial, sobre a adolescência. Na segunda parte, apresento alguns fragmentos da história de um dos sujeitos da pesquisa ( cuja identidade foi mantida em sigilo, sendo utilizado um pseudônimo ), que foram obtidos através do emprego da técnica da história oral. Ao adotar uma postura metodológica compreensiva-interpretativa, assumo aqui, que a análise do material apresentado é de minha inteira responsabilidade.

I . Um pouco de teoria

1. Adolescência: transição entre o quê?

A adolescência, entendida enquanto etapa de transição entre a infância e a idade adulta, ou seja, como uma etapa de preparação para o ingresso no mundo adulto, implica aspectos biológicos ( capacidade reprodutiva ), econômicos ( capacidade produtiva) e psicossociais ( estes mais abstratos, pois que envolvem, em última análise, o conceito de adaptação ). Podemos então perguntar: se procedem as afirmações segundo as quais vivemos a chamada "crise da modernidade" ( 2 ), que apresenta dentre as suas características um tempo sem história, ou uma história de múltiplos tempos, ou ainda, um tempo de múltiplas histórias, qual o sentido ( ou sentidos ) de falarmos em adolescência – uma etapa, que por ser transitória, se caracteriza exatamente por marcar a passagem entre dois tempos ( teoricamente ) bem definidos: o passado ( a infância ) e o presente (mundo adulto )?

Podemos começar recorrendo a duas contribuições de Hannah Arendt (1968) A primeira se refere ao valor que ela atribui às seqüências temporais, no que diz respeito ao sentido da história humana. Arendt identifica o passado às tradições. Estas últimas, indicando os valores dos seus legados, torna possível a produção de um futuro, introduzindo a consciência do tempo e a memória. Tais fatores dão sentido à constituição de uma história, em oposição às meras repetições infindáveis de um ciclo biológico. Remete-nos, então, às tensões e distensões existentes entre o passado e o futuro, ressaltando ainda "um intervalo de tempo totalmente determinado por coisas que não são mais e por coisas que não são ainda. [ E prossegue:] Na História, esses intervalos mais de uma vez mostraram poder conter o momento de verdade." ( p 35-36). Neste sentido, a idéia de adolescência enquanto transição poderia ser ressignificada como este momento sem passado e sem futuro, mas ( e talvez por isso mesmo ) com um grande potencial, no que diz respeito `a produção de signos e mensagens enviadas à sociedade, que falam sobre seus dilemas mais fundamentais ( Melucci, 1997 ).

Devo ressaltar que, apesar do destaque atribuído `as tradições, na constituição de uma história do tempo ( ou da temporalidade da história ), a autora não ignora o lugar do novo, e nisso se constitui sua segunda contribuição: ao analisar o papel da educação nas sociedades modernas, ela aponta a importância que é atribuída à identificação do "novo" ( representado pelos jovens, que após terem ultrapassado a infância se encontram prontos a ingressarem no mundo dos adultos ) como possibilidade de renovação. No entanto, alerta-nos para a manobra segundo a qual o novo é produzido como algo já dado a priori ( eis aqui o fundamento conservador da socialização). Assim, ao situá-lo dentro de uma lógica já instituída, caracterizada pela superioridade do adulto, o novo se torna envelhecido. Mas é importante notar que existe um futuro. Quer seja se referindo à prevalência da tradição (o passado), a um intervalo temporal ( a transição ) , ou a um futuro ( mesmo que depotencializado ), observamos que a existência, ou melhor, a significação dos tempos da vida só é possível pela ação de reciprocidade de uns em relação aos outros, o que se dá através da mediação humana. "Apenas porque o homem se insere no tempo, e apenas na medida em que defende seu território, o fluxo indiferente do tempo parte-se em passado, presente e futuro". ( p 37 )

Peralva ( 1997), ao introduzir as posições Arendt para comentar as fases da vida na modernidade afirma:

Uma vez dotadas de especificidade própria, as fases da vida não se tornam apenas autônomas, umas em relação às outras. Permanecem interdependentes e mesmo hierarquizadas. Tal hierarquia se constrói sobre a base de uma tensão, intrínseca à modernidade, entre uma orientação definida pela lógica da modernização (portanto, orientação para o futuro, através da ação conquistadora da renovação enquanto valor ) e o fundamento normativo da ordem moderna, que afirma, ao contrário, a primazia do passado enquanto elemento de significação do futuro. Cabe ao passado, isto é, à ordem social já constituída, domesticar, sem destruir, os elementos de transformação e modernização inerentes à vida moderna. ( p18 )

Também Ariés ( 1973 ), nos mostra que a produção do conceito de adolescência que emerge na modernidade, se fundamenta na idéia de transição e identifica o século XX como o "século da adolescência" ( p 46 ). Segundo ele, a partir daí, a adolescência irá se tornar a idade favorita, de tal sorte que as estratégias para estendê-la tentarão empurrar para trás a infância e a adiar a idade adulta, ao mesmo tempo em que ela se torna alvo da literatura, dos políticos e dos moralistas. Note-se que, desde a sua emergência como uma das idades privilegiadas da vida, a adolescência é identificada com mudanças, rupturas e valores novos que são contrapostos às velhas estruturas da sociedade, tidas como esclerosadas e ultrapassadas. Talvez este seja um dos motivos pelos quais a adolescência também acaba se tornando alvo de uma outra identificação: com a transgressão, com os excessos, com os desvios, enfim, como o patológico – fundamentos dos famosos riscos e vulnerabilidades e que contribuem para fazer da ambivalência e da transição suas marcas registradas.

Já um século se passou desde então. É, pois, neste século XXI, que mal começa a se insinuar e que se constitui em palco de vários dos infortúnios de nossos adolescentes – expressa por uma ausência crônica de projetos de vida – que devemos nos indagar: o que acontece quando a adolescência e a juventude se vêem às voltas com esta quase total ausência de perspectivas que dêem sentido ao futuro ou com uma precariedade de valores que funcionem como raízes que os vinculem ao passado? Qual o sentido deste hiato temporal, desta lacuna suspensa? Qual a função desta transição para lugar nenhum? Ou, colocado de outra forma: face à ausência de sentido, quais as táticas ( Certeau, 1994 ) e estratégias utilizadas por meninos e meninas para provê-lo? Como conhecer seus efeitos?

2. Uma saída possível: a inscrição biológica das biografias

Parto da idéia, segundo a qual, o tipo de relação que o adolescente estabelece com o tempo, subsidia a sua organização biográfica e a definição de sua identidade, pois que o tempo funciona como o parâmetro a partir do qual serão ordenados comportamentos, eventos, relações e escolhas. Portanto, face à chamada "crise da modernidade" que ameaça de dissolução as tradicionais referências temporais, o jovem é compelido a buscar recursos extras, que lhe dêem o balizamento necessário. Dentre estes recursos, creio que a gravidez possa ser compreendida como uma forma de inscrição das biografias. Forma esta que, por sua vez, condensa duas perspectivas: uma dimensão biológica, "intimista" e privada – que referencia a história individual, por um lado; e uma dimensão coletiva – que encerra uma mensagem acerca do seu "estar no mundo" e nos fala sobre seus dilemas em relação à sociedade. Podemos observar que toda esta argumentação se baseia numa dupla necessidade: de criarmos uma biografia – uma história para dar sentido à nossa existência – e de possuirmos uma identidade unitária e centrada. No entanto, se defendemos a idéia que as necessidades humanas não são naturais, mas sim produções históricas, somos levados a nos interrogar sobre a gênese de tais necessidades. Neste sentido, irei recorrer a Sennet ( 1976 ) e a Figueiredo ( 1996 ), que poderão me subsidiar nesta discussão.

Sennet, ao apontar um desequilíbrio – característico da modernidade – entre as esferas públicas e privadas, remete-nos para o que ele chama de "sociedade intimista", na qual um certo psicomorfismo invade relações, antes tidas como características do espaço público. Assim, assiste-se hoje a uma dissociação entre aquelas duas esferas, com uma clara prevalência do privado. Vitória das exigências da natureza – esfera privada – que na batalha com as exigências da civilidade – esfera pública – indica o caminho para a realização humana, que passa a se confundir com a simples atualização de potencialidades. Neste contexto, a idéia de público irá ficar circunscrita a uma definição espacial: diz respeito à vida que se passa fora da família e da intimidade com os amigos. Em contraposição, a paternidade, a maternidade e a amizade pertencem à ordem natural e à esfera privada. O autor nos mostra que, o equilíbrio entre estas duas dimensões ( que foi característico do Iluminismo do século XVIII ), foi sucedido no século XIX por dois movimentos complementares: de início por uma vontade de moldar e controlar a ordem pública, que logo cedeu lugar a uma necessidade de proteção para com esta mesma ordem. Localiza ambos estes movimentos na necessidade de evitar as agruras do capitalismo industrial, afastando os choques advindos desta nova ordem econômica. Como resultado, as marcas públicas perdem suas formas distintivas e as diferenças sociais se tornam ocultas, ao mesmo tempo que as mais simples diferenças são fetichizadas, passando a se configurar como verdadeiros mistérios. Nessa lógica, só adquire valor aquilo que possui uma referência conhecida e que é portanto passível de identificação. Por outro lado, a autenticidade e a transparência dos sentimentos e das intenções darão a medida a partir da qual estes terão, ou não, a sua validade atestada. O que está colocado é a emergência de um tipo de subjetividade privada e individualizada, ensimesmada e narcísica, destituída das dimensões políticas e coletivas, que passam a constituir dimensões separadas do humano. Neste sentido, a necessidade de uma biografia, de uma história individual que dê sentido ao "existir no mundo" e que funcione como medida de todas as coisas, parece ser uma conseqüência óbvia de uma lógica que reafirma a precedência do individual sobre o coletivo e do privado sobre o político. É com esta concepção que trabalhamos até nossos dias e a constituição histórica de um espaço do psicológico referenda esta idéia (Figueriedo, 1996).

Figueiredo nos mostra uma minuciosa descrição histórica das vicissitudes da subjetividade, em suas relações com as esferas pública e privada. Parte do século XVI, onde segundo ele, há uma prevalência da experiência e da diversidade. Afirma que tal prevalência era embalada por formas maduras e tolerantes de relação com a diferença, além de apresentar espaços de improvisação e inovação, que eram mobilizados quando as experiências individuais se diferenciavam muito, afastando-se do acervo coletivo. Aqui, as biografias possuíam uma dupla finalidade: centrando-se na vida do autor, visavam conservar a memória, assim como permanecer na memória. Por outro lado, esse exercício de memória era destinado a estabilizar e a dar sentido às experiências individuais ou coletivas, sujeitas a intempéries e portanto, correndo risco de aniquilamento. Porém, tanto num caso, como no outro, o que se evoca é a memória. Esta, possui o poder de manter junto o que tende à dispersão, de manter um sentido, mas não de criá-lo. Ou seja, o sentido se articula à experiência, e portanto à sua produção, não existindo previamente a esta, sob qualquer forma de representação. Já no século XVII, encontraremos uma prevalência da imagem e da representação sobre a experiência; e da unidade e da identificação sobre a dispersão e a diferença. Aqui encontramos um terreno propício à formação de uma identidade, que em verdade irá se constituir e se esgotar na própria imagem. Pode-se, portanto, falar de identidades imaginárias, que, no entanto, irão demandar espelhos humanos que as confirmem. Surgem dois personagens: o sujeito epistêmico, que no século XVIII se desdobrará no sujeito do Iluminismo; e o sujeito ético-passional, que se desdobrará no sujeito Romântico. O primeiro diz respeito à uma subjetividade regular, idêntica a si mesma , sempre a mesma em todos os homens; enquanto a segunda refere-se a uma subjetividade suspeita, imprevisível, diferente, isolada e privatizada. Com o Iluminismo no século XVIII, haverá a consolidação da autonomia relativa das duas esferas e o fortalecimento da esfera da privacidade em todas as dimensões da vida social. Aqui, a intimização atinge o seu apogeu, o que se dá como resultado da dissolução das antigas crenças – Movimento da Reforma – e da expansão dos espaços de liberdade individual – liberalismo. C indem-se, então, as subjetividades no terreno das razões interiores – nível da consciência e das opiniões, e da esfera da privacidade – por um lado; e no terreno das razões de Estado – nível das ações e da esfera pública – por outro. O público passa a ser o espaço de anonimato, da homegeneização, enquanto o privado é o espaço de liberdade e da autenticidade. Tal quadro remete-nos a um enfraquecimento da identidade pública e a um fortalecimento da identidade privada, que emerge neste contexto como a marca distintiva de cada um, necessária à sobrevivência subjetiva. Assim, a diversidade e a experiência na esfera pública perdem valor, face aos imperativos da imagem e da identificação privada. Quer esta se opere a partir de um modelo racional – sujeito do Iluminismo – ou de um modelo singular – sujeito Romântico – o que vemos é a prevalência do modelo e da imagem sobre a experiência. Vale ressaltar que o que assistimos hoje, no que diz respeito à adolescência, parece bem se encaixar nesta lógica: ao serem homogeneizadas pelo Estado, que através de seus aparelhos médicos as identificam, genericamente, como as "adolescentes grávidas", por exemplo, estas meninas passam a fazer parte de um grupo específico, cujo perfil está dado a priori. Perdem, portanto, qualquer marca pública distintiva, que lhes é negada pelo discurso oficial até o ponto em que renunciam a esta "identidade pública" – até mesmo porque esta esfera não lhe confere quaisquer garantias. No entanto, permanece a necessidade de identificação, condição – produzida – de sobrevivência subjetiva, o que é resolvido pela assunção da identidade privada, de mãe. Portanto, a assunção da maternidade, dentro desta lógica, se impõe como uma alternativa às formas de identificação públicas, o que obviamente se relaciona à existência – ou não – de oportunidades sociais, assim como às referências que esta sociedade disponibiliza – ou não – para os seus componentes se identificarem.

Mas esta identificação se mostra precária. Não sendo esta, uma necessidade natural, mas produção sócio-histórica, passa no momento pelo mesmo processo de dispersão, pelo qual passa a dimensão temporal (3). Isto porque, face à ausência de referências passadas e projetos futuros, a inscrição biológica das biografias e das identidades, acabam por se constituir numa fonte de segurança, que se coloca como alternativa ao "estilhaçamento temporal".

Por outro lado, esta estratégia biográfica parece alinhar-se com uma perspectiva, segundo a qual, o controle, a neutralização e a abolição do tempo são tomados como inevitáveis e até mesmo desejáveis. Portanto, a pergunta que se coloca é: haveria uma outra maneira de escrita da história, que não fosse mero efeito da abolição do tempo mas ao contrário, que se fundasse na possibilidade de libertação do tempo?

3. Outra saída possível: a cronogênese e a invenção de uma outra história do sujeito

A afirmação segundo a qual, tanto a biografia, como a busca da identidade, não são necessidades naturais ( 4 ), remete-nos a uma inevitável análise sobre os regimes temporais em nossa sociedade, uma vez que esta categoria está presente em qualquer tentativa de produção de uma história do sujeito.

Pelbart ( 1993 ), afirma que a imagem do corpo é condição da construção de uma história do sujeito. Somente através desta imagem, deste corpo habitável, é que o homem é capaz de entrar em sua própria história. Tal afirmação implica no fato de que, o acesso à dimensão temporal, se dá, necessariamente, através do espaço – no caso, o corpo. Estaria aqui a chave para que pensemos a gravidez como um dispositivo a partir do qual as meninas tentam construir sua história?

Como pensar novas relações entre tempo e espaço, nesta era pós-moderna, em que o tempo tende a ser homogeneizado e transmutado num eterno presente e no qual o futuro é antecipado, burocratizado e despotencializado? Esta parece ser a máxima corrente nos escritores que se dedicam a tecer considerações sobre o tempo ( Melucci, 1997; Pelbart, 1993 ) entendendo-o como uma categoria chave para que se pense esses novos modos de existir no mundo. Pelbart nos convida a passear por uma outra forma de conceber a temporalidade: não mais uma temporalidade aprisionada pelos imperativos da tecnociência, que aponta para a necessidade de libertar-se do tempo. Ao contrário, remete-nos à necessidade de invenção de novas temporalidades – uma cronogênese do tempo – que por sua vez, aponta para uma outra necessidade – a de libertar o tempo. Esta sutil, mas fundamental diferença deve ser melhor explicitada. Vivemos hoje uma era que se caracteriza por estratégias que visam a liberação, ou seja, a anulação do tempo; era marcada pela velocidade máxima, o que acarreta um estreitamento das distâncias até a sua total dissolução. Componentes "midiáticos", como a televisão e o computador alteram a relação tempo-espaço, tornando instantâneas as relações, que antes eram instituídas por uma sucessão cronológica. Neste contexto, o futuro é antecipado, mas não deixa de existir. Feito presente, o futuro passa a ser controlado e contido. Dele é expurgado todo o acaso, toda a imprevisibilidade, toda a surpresa, enfim, todo o devir ( 5 ). Assim, a abolição da temporalidade, o tempo e espaço zero e o eterno presente são idéias que se baseiam nesta despotencialização do futuro. Isto não quer dizer que o futuro deixe de existir, ou que a ele não seja atribuída importância. Porém, ele só tem valor e só é incorporado à temporalidade, enquanto probabilidade calculável. Tal fato tem conseqüências óbvias: no que diz respeito aos adolescentes, ao mesmo tempo em que lhes é exigido um futuro calculado, eles são confrontados com uma pobreza crônica de opções disponíveis. Vale ressaltar que esta escassez se impõe de tal forma, que até mesmo o fetiche dos bons modelos e das boas formas é insuficiente para prover opções viáveis. Forrester (1997), ao analisar o que ela chama de "mutação brutal da cilvilidade", nos remete ao processo segundo o qual grandes massas são alijadas da oportunidade ao trabalho, constituindo-se em supérfulos (supranumerários, diria Castel, 1995 ) no mercado da vida. Para estas pessoas, segundo Forrester, não há nada a esperar, senão o limite da própria morte, uma vez que o único direito a elas reconhecido é o direito à miséria e `a perda da consideração social e da autoconsideração, o que as remete ao "drama das identidades precárias ou anuladas" (p 10)

Podemos agora recolocar os dilemas da adolescência – e em especial, a ocorrência da gravidez na adolescência como forma de expressão destes dilemas: por um lado, a adesão à homogeneização de um social que lhes apresenta o futuro como codificado – a gravidez como inscrição biológica da biografia – e por outro, a possibilidade de alçar vôos que permitam e que são permitidos por um devir – a invenção de uma história do sujeito. Pelbart, ao comentar o filme de Win Wenders, Asas do Desejo, nos confronta com estas diferentes temporalidades. Remete-nos a uma história dos anjos, segundo a qual sua existência imortal lhes aprisiona num ciclo repetitivo que remete sempre ao mesmo, ao tédio da repetição infinita, enfim, a um eterno presente. Segundo ele, os anjos invejam a humanidade dos humanos: sua mortalidade, sua fragilidade, suas incertezas. Todos aspectos que fazem do humano este ser encarnado que sente amor, dor, frio e que lhes torna possível experimentar a "eternidade cravada na fugacidade de um devir" ( p 21 ). Assim, a análise da gravidez na adolescência nos brinda com uma dupla revelação – ou dupla expressão: de um lado, a condenação a viver o tédio e a mesmice dos anjos desencarnados – representada pela necessidade da inscrição biográfica ; de outro lado, a encarnação de um devir-anjo – representada pela invenção da(s) história(s) do sujeito. Vale ressaltar que nessa encruzilhada não há termo de conciliação, mas sim condensação. Propus-me a compreender a gravidez como expressão disso e também daquilo. Como inscrição biográfica que nos remete a um tempo que, concretamente, antecipa o futuro e que se constitui a partir do culto às boas formas e aos bons modelos ( 6 ) com o conseqüente tédio e resignação, característicos dos anjos desencarnados, mas também como possibilidade de viver um tempo não controlável, não programável, que desta maneira tenta escapar da neutralização anunciada pelas burocracias e tecnologias paralizantes. Tal concepção, que desafia a cronopolítica da tecnociência, aponta para a possibilidade de uma cronogênese que contém "barricadas no tempo". Ou seja, a uma perspectiva neoliberal, que se propõe libertar-se do tempo e anulá-lo, é contraposta uma possibilidade de devolver ao tempo a potência do começo, a possibilidade do impossível, que é característica de um jorrar do tempo: este momento do insurgente, este momento inaugural, nunca acabado, sempre inconcluso. Tal perspectiva coloca, portanto, um outro regime de temporalidade, com todos os riscos que isto acarreta, implicando em incessantes começos e recomeços. Nada é definitivo; aqui, o risco, o imprevisto e a surpresa têm lugar. No entanto, seu confronto com os modos instituídos a partir do qual nos acostumamos a pensar a temporalidade, pode provocar o horror, porque vividos como uma barricada erguida contra o tempo. Inevitável sina dos movimentos que desafiam os poderes instituídos. Viver o horror. Eis aqui a anulação de qualquer pretensão mais romantizada da experiência da gravidez na adolescência, o que não quer dizer que o fato de viver o horror anule os prazeres do encontro com o incontrolável e com o imponderável, enfim, como as delícias de um devir-anjo. Assim, às barricadas no tempo, contrapõe-se um desdobramento de virtualidades temporais, um devir-anjo que se expressa na e pela invenção de uma história do sujeito. Esta história que – alternativa à inscrições temporais que acabam por controlar o futuro – se desdobra a partir de uma temporalidade que resgata o jorrar do tempo. Uma história que não despreze a estrutura de antecipação temporal – fundamental na constituição imaginária do sujeito. No entanto, o futuro aqui não é contido, mas tomado enquanto abertura temporal , como um projeto aberto que comporta todos os riscos, surpresas e que inclua o devir. É a esse futuro que me refiro, quando o situo em relação à presença ou ausência de projetos que atravessa a adolescência.

4. Entra as prescrições e as proscrições: a invenção de uma outra história

Uma primeira questão que nos vem a mente, diz respeito às possibilidade de produção desta cronogênese. Vivemos em uma sociedade que prima por manter o status quo , este entendido como jogo de forças e poderes a serviço de um tipo de organização – no caso, a sociedade global capitalista. Sociedade esta que, segundo Ianni ( 1997 ), se caracteriza pelo imperativo de uma reprodução ampliada do capital em escala global, pela globalização das relações de produção, pela atrofia do Estado-nação, pela hipertrofia das grandes corporações, pela privatização da economia, e por uma nova forma de conceber as informações, estas tornadas mercadorias a serem comercializadas em escala mundial.

É o mundo da homogeneização – do tempo, do espaço – e por isso mesmo, deflagra processos de subjetivação que negam a singularidade, as disrupções e os devires, mesmo que sua presença – ainda que de forma emblemática – seja preservada, mantendo com isso um tipo de tensão – ou de ilusão – que evita o "golpe de misericórdia" na individualidade humana ( 7 ) , esta tão valorizada nos últimos três séculos. Referindo-se a alguns tipos de metáforas da globalização, Ianni (1997) comenta:

" [ A metáfora da ] ‘Nave espacial’ sugere a viagem e a travessia, o lugar e a duração. O conhecido e o incógnito, o destinado e o transviado, a aventura e a desventura. A magia da nave espacial vem junto com o destino desconhecido. O deslumbramento da travessia traz consigo a tensão do que pode ser impossível. Os habitantes da nave podem ser levados a uma sucessão de perplexidade, reconhecendo a impossibilidade de desvendar o devir". ( p19 )

Em verdade, os estatutos desta modernidade que se insinua pelo século XXI vem a abalar o mito da individualidade humana – tão cara desde o Iluminismo até tempos recentes. Crise da razão? O fato é, que neste início do século XXI, o pessimismo é a marca privilegiada dos novos tempos, e o seu principal produto, o declínio do indivíduo. Há assim, uma ausência de modelos: não mais o indivíduo unificado, que goza de responsabilidade e autonomia e que centra em si mesmo suas ações e vontades. Mais que crise de identidade, o que se coloca é a crise de um modelo de indivíduo, que põe em xeque o próprio conceito de identidade. Este, ao mesmo tempo em que aponta para a multiplicidade e para a diversidade do humano – marcas do indivíduo pós-moderno – não consegue lidar com a cronogênese e o devir – eis a metáfora da nave espacial: você pode deslumbrar os encantos da multiplicidade, desde que permaneça o mesmo.

Neste contexto, a questão que se levanta é: dadas as aparentes dificuldades que são colocadas pela sociedade global para a produção de uma cronogênese, porque a gravidez na adolescência não expressa apenas uma cronopolítica ( ou seja, a inscrição biográfica através da maternidade ), tão compatível com os preceitos da nova ordem social e tão em sintonia com as expectativas sociais que historicamente foram construídas para a mulher – ser esposa e mãe? Mas a questão não é tão simples: ao lado desta prescrição para que as mulheres ocupem os lugares sociais, historicamente instituídos para elas, erige-se uma proscrição: engravidem, mas não enquanto forem adolescentes (não antes de casar, de concluir os estudos, enquanto precisam trabalhar – as combinações são muitas, e variam segundo os momentos históricos – o que nos faz pensar sobre a relatividade dos preceitos que normatizam a saúde reprodutiva).

Mas o mais importante a ressaltar é o fato de que, tanto no que diz respeito à prescrição, quanto no que diz respeito à proscrição, o que se verifica é que seus produtos não são passivamente incorporados pelas adolescentes: nem os que expressam uma expectativa histórica – sejam mães – nem os preceitos das políticas públicas para a adolescência, consubstanciadas através das práticas educativas dirigidas a elas – não engravidem por enquanto. Mas também não são desprezados. Em verdade eles são consumidos por elas ( Certeau, 1994 ), que deles se apropriam, para transmutá-los em uma outra coisa, para criar com eles uma outra história. Histórias estas que requerem ser acompanhadas – não para aí identificar regularidades estatísticas ( 8 ) – mas para apreciar suas trajetórias, suas sinuosidades e – porque não dizer – suas regras próprias.

II . Fragmentos de uma história

1. A história de Milena – Ou ... o anjo que quer ( ? ) encarnar

A entrevista de Milena foi cercada de uma certa expectativa, pois, diferente das outras, foi indicada por mais de um profissional de saúde, que de quando em vez perguntavam: "Vocês já entrevistaram Milena ?" ; "Olha, nós temos uma adolescente aqui... seria bom vocês entrevistá-la, mas ela é uma exceção, ela dá conta!" Falas como estas nos levaram até Milena e, de fato, pudemos constatar que, no mínimo, Milena era diferente. Primeiro por causa da sua idade: tinha 13 anos no momento da entrevista e esperava o segundo filho ( o primeiro o havia tido com 11 anos ). Mas o surpreendente é que Milena era referida por todos com uma espécie de orgulho da instituição, algo como "a adolescente multípara que deu certo". É bem verdade que as alusões à sua maturidade e responsabilidade eram relatados com alguma estranheza, mas nem por isso, em momento algum, percebemos qualquer sugestão de que Milena era considerada um "desvio", como costumam ser consideradas as adolescentes que engravidam. Tudo isso fez com que tivéssemos – confesso – uma certa curiosidade em conhecê-la.

Já no começo da entrevista pudemos constatar uma certa postura teatral – ou seria caricatural o termo mais adequado? – por parte de Milena. Nada que fosse dito, mas sua postura de fato mostrava aquelas qualidades referidas pelos outros profissionais. Milena se apresenta maquiada, bem vestida e com uma fisionomia fechada e rígida. Fala de sua filha e de sua atual gravidez – estava no 9º mês no momento da entrevista – com extrema naturalidade. Faz questão de enumerar alguns princípios, como:

Conheci meu marido com onze anos, ele tinha dezoito e então fui morar com ele e depois fiquei grávida, não acho certo ir morar junto só porque se está grávida.

Assim, Milena nos dá seu primeiro recado. Tudo tem uma ordem e neste caso a ordem certa é: primeiro casar e depois engravidar. Ao ouvi-la lembrei-me de Figueiredo ( 1996 ) quando ele nos fala sobre a prevalência da experiência e da diversidade – existente no século XVI – que logo no século seguinte cede lugar à prevalência da imagem e da representação, fato que se estende até nossos dias. Milena parece ser assim. Grande parte de suas falas indicam a confirmação da vitória de uma identidade que acaba por se esgotar na própria imagem: que ela faz de si e que é confirmada por todos: desde a família até a equipe de saúde – esses espelhos humanos, aos quais se refere Figueiredo.

Ascenção social e independência são outros pontos fortes no relato de Milena. Faz questão de falar que o marido é gerente de supermercado, que ela faz mini-pizza para vender, e que, se no início foram ajudados pelas famílias – tanto dela, quanto dele – hoje em dia são eles quem as ajudam. Perguntada sobre o que mudou na sua vida com a primeira gravidez, responde:

... agora eu tenho mais condições, tá melhor agora, hoje em dia eu tenho o quê? Tenho casa, tenho dois carros [fantasia? ] ; e da outra não, eu precisava da ajuda da minha mãe, da minha sogra, hoje em dia não, hoje em dia tá melhor.

Levando ao extremo as distinções entre as esferas pública e privada, tais como definidas na modernidade , parece se fechar na segunda, resumindo sua vida social às relações familiares. Quanto aos "outros", como se refere àqueles que não fazem parte de sua família, Milena diz: "... às vezes as pessoas falam demais, esquecem de si pra falar dos outros".

Quando perguntada sobre a reação de suas colegas quando souberam de sua primeira gravidez, diz: " Ninguém falava nada, não ... E também se falasse , não ligaria também ". Prossigo e indago se ela não se importa com que os outros falam, ao que Milena retruca: " Não me importo ". E com que você se importa?" – insisto. Neste momento Milena é enfática:

Com que eu penso, não com que os outros pensam. Pode falar qualquer coisa: olha o Chico [ o marido] tá ali na esquina com uma garota. Que eu falo: Tá, se você tá vendo porque você não se junta a ela também? Eu não vou nem lá pra conferir, eu vou acabar com a minha vida por causa de outra pessoa, por causa de um casinho bobo? Não vou nem lá para conferir, não dou nem papo. Aí, é isso que o pessoal se morde por dentro, se corrói, é isso.

Mas seria mesmo o "pessoal" que se corrói, ou estaria Milena começando a se incomodar com a imagem que criou e que criaram para si? A esse respeito, pode ser elucidativo o fato de que, segundo ela, sempre houve o apoio ( ou seria incentivo? ) familiar – e por extensão da equipe de saúde: Milena – a adolescente grávida que deu certo!

Relata que sua mãe se casou muito tarde – e que mais parece sua avó do que sua mãe – porque preferiu trabalhar: " ela gostava mais de trabalhar, viver a vida dela. ... [parece ] que era acompanhante, alguma coisa assim" . ( grifo meu ).

Irei agora me permitir algumas divagações e, seguindo os alertas de Geertz ( 1989 ), espero não correr o risco de cometer o que este autor denomina "abstrações interpretativas". Em primeiro lugar, creio que uma mãe que mais parece uma avó – nas palavras da filha - deve merecer – também na imaginação da filha – um neto ; mas, talvez, Milena queira apenas ser filha. Perguntada sobre a reação de sua família na ocasião em que ela foi morar com seu companheiro, Milena diz:

Assim, meu pai no começo ficou sem falar comigo, minha mãe achou super legal, minha mãe apoiou em tudo, né , ajudou numa porção de coisas no começo. Ele [ o companheiro ] não trabalhava, essas coisas. Aí eu conheci uma colega minha que o namorado dela, noivo, sei lá, trabalhava no [ nome do supermercado ] e aí arrumou para ele e aí hoje ele é gerente do [nome do supermercado] e eu faço mini-pizza em casa, e hoje a gente está bem. ... minha mãe dava uma porção de coisas, todo mundo ajudava, foi bom. Só quem criticava eram os outros de fora, né, mas aí eu não tô nem aí, nem ligo que outros pensam. ... outros assim, da rua, achavam que minha mãe tava errada de me ajudar, muitas coisas assim, mas a gente não ligava não. [ E mais adiante, acrescenta: ] Lá no meu bairro é assim, você fala uma coisa e já falam que você falou outra, não gosta de gente assim, não. Pra mim ninguém serve pra mim, eu sou assim, eu penso assim, eu não sirvo pra eles e nem eles pra mim. ... A minha mãe fala que gente tem que andar e conversar com pessoas que tem algum degrau acima da gente e não abaixo. ( grifos meus)

Ao que tudo indica, a mãe de Milena ficou muito satisfeita com o "casamento" da filha e a chegada de um neto. Seria esta uma tática empregada por Milena para sair do papel de neta e finalmente passar ao de filha? Talvez ela tenha precisado arrumar um substituto para ela mesma. Caso contrário, corria o risco de ter que ficar procurando esse degrau acima para satisfazer uma mãe que "gostava mais de trabalhar". Possivelmente Milena deve ter tentado empregar uma tática para ser mais "livre", mas acabou capturada num futuro calculado, onde a previsibilidade virou uma necessidade, quase acabando, portanto, com as chances de uma invenção de uma história para sua vida. Mais ela reage: "Dá pra fazer tudo; eu ainda tenho 13 anos". Na ausência de uma resposta que requereria uma entrevista com a mãe de Milena, me limito a estas observações, que aqui apresento a título de possibilidade.

Por outro lado, gostaria de entender melhor essa posição familiar de não atribuir importância ao que os outros falam. Não quero supervalorizar as opiniões alheias, mas me causa estranheza esse "fechamento" familiar, essa exacerbação do reino privado do lar, com um certo "separatismo elitista" que leva Milena ao ponto de ignorar que seu marido a está traindo na esquina, ao mesmo tempo que ignora que é ela que está se "corroendo por dentro", fato que projeta nos outros.

Mas as coisas não são tão simples, como Milena quer fazer crer. Sobre a gravidez na adolescência diz:

Depende da adolescente, da cabeça, dos pais. Se todo mundo fica em cima de você, você acaba ficando doida. Eu já vi casos aí, de meninas que choram, que tentam se matar... Tem casos aí, horríveis , tentando se matar... [ isso é devido ] `as pessoas que discriminam, que falam, acaba magoando, e a pessoa acaba tentando.. alguma coisa. Esses são fatos que eu conheço das minhas amigas, aqui têm muitos desses casos ; [ mas eu ] não sou nem doida. Mas se acontecesse assim, de tentar me matar, meu pai sempre falou que se morrer alguém da nossa família, já leva direto, porque ele trabalha no cemitério, já leva já.

Por que teria Milena relacionado a gravidez ao suicídio? Seria por isso que ela acaba se fechando num mundo tão privado, onde só encontra espelhos para referendarem suas rígidas concepções sobre a vida, o casamento e a maternidade? Talvez seja esta a questão: a existência destes espelhos humanos que acabaram por transformar suas incipientes táticas em estratégias (Certeau, 1994 ), na medida em que confirmam uma imagem e acabam por anular suas diferenças. Isto porque apontam para o "tipo ideal " ("todas deveriam ser como você" ou, "que exemplo, que maturidade" ou ainda, "já que o mal é inevitável, antes assim"... ), dizem-lhe, a meu ver, subliminarmente, a família e a instituição de saúde. Mas ainda assim, Milena não escapa deste estrato populacional – as adolescentes grávidas. Nele, goza de uma posição privilegiada, pois não é encarada como desvio, é apenas um tipo ideal. Quero deixar claro, que não estou recriminando o fato de Milena ter sido apoiada. Afinal, este foi o apoio que pode lhe ser oferecido ( e sabemos como o apoio das redes familiares e comunitárias são importantes ).

É, [ tive apoio ] da minha família, da minha família só, eu, meu pai, minha mãe, não tem mais ninguém. É importante, a família tem ajudar e não criticar. [ e quanto ao serviço de saúde]: ...eles te botam pra cima, são legais!

À esse apoio, Milena acrescenta uma fórmula, que quase convence. Perguntada sobre o quê a gravidez muda na vida da adolescente, ela diz:

Sei lá, a adolescente parar de pensar em si, no caso das adolescentes ter cabeça, né, que só Jesus mesmo. Parar de pensar em si, pensar na criança. Em vez de comprar uma calça pra você, você já pensa em comprar outra coisa, você pensa em trabalhar, você só pensa em seu marido, não pensa em outros, pára de olhar com outros olhos para outros homens. Porquê? Porque isto vai prejudicar seu filho. Mas tem gente que não pensa assim, né? Larga, chuta o marido, trai, desce o barraco em tudo, o filho fica passando fome. Tem muita gente assim na rua da casa da minha mãe, pede leite à um, pede maizena à outro, e vai assim vivendo, sem saber de nada.

Perguntada sobre seus planos para o futuro, Milena foi a única entrevistada que não incluiu os filhos em sua resposta: diz que quer estudar e trabalhar. Seria aquele tipo ideal, ao qual vimos nos referindo – não apenas uma imagem especular – mas uma tática para que Milena invente alguma outra história para si? Neste caso, Milena estaria adiando o seu futuro, mas não o despontecializando totalmete: "tudo dá pra fazer, eu tenho 13 anos e dá pra fazer muita coisa ainda". Tudo leva a crer que Milena está aprisionada no tempo, mas sonha em libertá-lo. Seria esse um retorno da tática? No entanto, por hora , também parece se orgulhar de seu diferencial: a precocidade.

A minha mãe fala: não tinha cabeça de sete anos, com sete anos tinha cabeça de treze. Com treze tenho cabeça de dezessete, sei lá. Ás vezes, eu acho que o cérebro não é meu. [...] Porque... sei lá. Treze anos...você já conversou com uma pessoa que você falou com uma pessoa de treze anos do meu lado e coloca eu e conversa com as duas que você vai ver diferença. [...] Por isso que eu falo que o cérebro não é meu. ( grifo meu )

O cérebro não é seu. De quem será, Milena? Cérebro sem dono é cérebro desencarnado. Isto me lembra os anjos desencarnados referidos por Pelbart . Seria você um destes anjos?

 

III. Ensaiando uma conclusão

A tarefa de discorrer sobre tema tão polêmico traz em si sérias dificuldades. A primeira delas diz respeito a um viés moralista e maniqueísta que parece apontar para uma necessidade de julgamento: é certo ou errado engravidar tão cedo? O que poderia ter sido feito para evitar uma gravidez "precoce"? Que oportunidades serão perdidas por estas meninas? Em que a família falhou? Em que o sistema de saúde falhou? Em verdade, o que quase nunca se pergunta é a razão de trasformarmos um evento da vida num fato patológico. Não quero como isso defender nem acusar a gravidez em tal ou qual idade. Creio que somente quando pudermos apreender os significados desta, que já pode ser considerada uma ação coletiva; somente quando pudermos ouvir essas meninas ao invés de acusá-las e às suas famílias; e, fundamentalmente, quando pudermos declinar do julgamento moral que sentencia a priori a menina que engravida como a encarnação do risco que não foi contido, do desvio que não pode ser contornado e de uma natureza selvagem e plena de excessos que acompanha historicamente a mulher ... neste momento estaremos dando um passo firme em direção a uma parceria efetiva com aquelas que só querem libertar o tempo e produzir um lugar social, assegurado politicamente não apenas pelo setor saúde ou setor educação, mas por todos nós, cidadãos responsáveis pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

 

NOTAS:

1 A pesquisa aqui referida intitula-se "Da Gestão dos Riscos à Invenção do Futuro – considerações médico-psicológicas e educacionais sobre histórias de meninas que engravidaram entre 10 e 14 anos", e se constituiu em minha Tese de Doutorado, defendida em abril deste ano, na USP – Universidade de São Paulo.

2 As categorias modernidade, crise da modernidade e pós-modernidade serão utilizadas ao longo deste texto. Parece não haver um consenso entre os diversos autores, por mim referidos, quanto à terminologia a ser empregada. Enquanto uns utilizam um conceito único, outros estabelecem uma distinção entre a modernidade – como a era inaugurada com o enfraquecimento dos laços feudais e a concomitante emergência dos estados nacionais – e o momento atual, caracterizado pela chamada "crise da modernidade", que é vivida, em especial, nos países do terceiro mundo. Neste último caso é empregado o termo "modernidade tardia". Conquanto não há uma mudança no sistema econômico – o capitalismo – o emprego do termo pós modernidade habitualmente se reserva às transformações no espaço das artes, da literatura, da filosofia e da cultura.

3 Segundo Stuart Hall ( 2001 ), existem três tipos de identidade, constituídos historicamente: a do sujeito do Iluminismo, o mais "individualista" de todos, baseia-se num modelo centrado em si mesmo e diz respeito a um indivíduo caracterizado pelas capacidades da razão, da consciência e da ação, que são tomadas como portadoras de uma unidade, esta se constituindo sua marca distintiva, por excelência; Já o outro modelo, o sujeito sociológico, tenta romper com uma visão de identidade enquanto natureza e remete-nos à uma constituição baseada em interações entre o eu e a sociedade. Desta forma, pretende romper com um dualismo que separa o interno do externo e o privado do público. No entanto, a idéia de estrutura, segundo esta concepção, é valorizada na medida em que ela funciona como o aporte que establiza e unifica as relações entre o mundo social e as pessoas, entre a objetividade e a subjetividade, não conseguindo escapar, portanto, de uma marca naturalizante – agora não mais dada pela essência, mas por uma tendência natural a esta estabilização estrutural ; por fim, apresenta o sujeito pós-moderno, possuidor, não de uma, mas de várias identidades plurais, não unificadas , o que nos leva a romper, portanto, com qualquer pretensão de essencialismo ou fixidez. Segundo Hall " A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia" (p 13 ) e o que surge em seu lugar é um sujeito fragmentado, em conformidade com as necessidade objetivas da cultura, que hoje sofrem um intenso colapso, marca distintiva desta era pós-moderna.

4 Segundo Hall "Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora ‘narrativa do eu’". ( Hall, 2001).

5 Refiro-me à idéia de devir em Guattari ( 1986 ), que não se confunde com o conceito de devir, tal como utilizado pelos existencialistas. Diz respeito aos elementos de diferença que compõe os processos de subjetivação, sempre inconclusos e sempre transitórios. Produção incessante, negadora das estruturas totalizantes, opera pelo deslocamento, que faz o humano escapar de si mesmo. Provoca, portanto, não o vir a ser dos existencialistas, mas o eterno retorno das diferenças: um devir outro.

6 Mesmo que esta "estratégia" seja formalmente criticada pelas políticas públicas para a adolescência, ela é "incentivada" a partir das expectativas sociais como relação ao desempenho de papéis femininos.

7 Refiro-me a dois conceitos de filiações teóricas diferentes: o indivíduo liberal e os modos de subjetivação. No entanto, entendo que o primeiro, por conter a idéia de liberdade de escolha, implica na possibilidade – mesmo que ilusória – de produção de subjetividades singulares, que dentro desta lógica passam a ser tomadas como simples mercadorias.

8 Não quero com esta afirmação desqualificar os procedimentos metodológicos que se servem das abordagens quantitativas. No entanto, reafirmo minha intensão de proceder uma análise qualitativa do material apresentado.

 

Referências Bibliográficas:

ARENDT, Hannah, ( 1968 ). Entre o passado e o futuro. São Paulo: Editora Perspectiva

ARIÉS. Philippe, ( 1973 ). Hitória social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar Editores.

CASTEL, Robert, ( 1987 ). A gestão dos riscos. Rio de Janeiro: Francisco Alves

___________ , ( 1998 ). As metamorfoses da questão social - uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes

CERTEAU, Michel de, ( 1994 ). A in venção do cotidiano – as artes de fazer. Petrópolis: Vozes

FIGUEIREDO, Luiz Cláudio de, ( 1996 ). A invenção do psicológico - quatro séculos de subjetivação 1500 – 1900. São Paulo: Educ: Escuta

FORRESTER, Viviane, ( 1997 ). O horror econômico. São Paulo: Editora UNESP

GEERTZ, Clifford, ( 1989 ). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Ed. Ltda

GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely ( 1986 ). Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes

HALL, Stuart, ( 2001 ). A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro: DP&A editora

IANNI, Octavio, ( 1997 ). Teorias da Globalização. Rio de janeiro: BCD União de Editoras S.A.

MELUCCI, Alberto, ( 1997 ). Juventude, tempo e movimentos sociais. Revista de Educação Brasileira, ANPED, Campinas: Editora Editores Associados Ltda, nº 5 e 6, p 5 - 14

PELBART, Peter Pál. A nau do tempo rei. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda

PERALVA, Angelina Teixeira, ( 1997 ). O jovem como modelo cultural. Revista de Educação Brasileira, ANPED, Campinas: Editora Editores Associados Ltda, nº 6, p 15 - 24

SENETT, ( 1976 ). O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 15 - Julio 2002
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