Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
O ex-sistencial da angustia
Gilsa F. Tarré de Oliveira

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O estrangeiro está em nós. E quando fugimos ou combatemos o estrangeiro, lutamos contra o nosso inconsciente - este "impróprio" do nosso próprio impossível.

Julia Kristeva

 

A estranha angústia

Um dos pontos de maior impacto ético e político da invenção freudiana do inconsciente foi o da revelação de que o exterior está presente no interior, isto é, o sujeito freudiano, dividido e afetado pelo inconsciente, abriga o ‘estrangeiro’ em sua própria morada. O espanto diante de nossas incoerências na confrontação com o si mesmo revela, progressivamente, os abismos que nos habitam. Essa fenda constitutiva explica a decisão de Freud adotar em seus escritos o termo alemão Der Fremder, o estrangeiro, ou das fremde, o estranho ou die fremdem, os desconhecidos estrangeiros e não o outro termo alemão Ausslander, o qual designa o estrangeiro no sentido legal e de nacionalidade.

Já em seus primeiros trabalhos Freud se refere ao sintoma como um "corpo estrangeiro", inaugurando uma série na qual o significante estrangeiro comparece em vários textos necessariamente ligado à própria estrutura subjetiva, como um hóspede, por vezes indesejado, que suscita no Eu o medo, a angústia e o horror. Nas "Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise" (1932), na Conferência 31, insistindo nessa mesma perspectiva, afirma que o recalcado é para o Eu uma terra ‘estrangeira’, "uma terra estrangeira interna, assim como a realidade é uma terra estrangeira externa".

Temos assim, uma indicação bastante precisa de que Freud apreende a estrutura subjetiva numa perspectiva topológica a qual se aplica o termo cunhado por Lacan "extimidade". A estrutura da extimidade vincula-se à constante vacilação da identidade do sujeito consigo mesmo, revelando o mais íntimo e familiar ao sujeito como um ponto de absoluta opacidade. Quanto maior a proximidade do familiar, mais este se transforma em ‘estranho’, questão principal do brilhante trabalho freudiano Das Unheimliche, publicado em 1919, mesmo ano em que Freud conclui a redação de "Além do princípio do prazer" e introduz a pulsão de morte.

Logo de início, Freud adverte ao leitor que seu objetivo é o de mostrar sob que circunstâncias é possível o familiar tornar-se estranho e assustador, ressaltando que o analista opera com camadas da vida mental que "pouco tem a ver os impulsos emocionais dominados"(op. cit.). Ou seja, em seu campo de provas, o analista lida com o desencadeamento do espanto, da surpresa, da "inquietante estranheza" que marca a experiência com o inconsciente. Assim, ainda que voltado para problemas estéticos e privilegiando textos de Hoffmann, das Unheimliche nos brinda com uma teoria freudiana sobre a angústia através de uma modalidade particular: a inquietante estranheza, instalada, curiosamente, em função da ‘certeza’ de uma excessiva aproximação do familiar que deveria ter permanecido oculto.

No seminário X, "A angústia", Lacan anuncia a seus ouvintes que da mesma forma que anteriormente trabalhara o inconsciente pelo chiste, retomaria naquele momento o tema da angústia articulando-o ao texto freudiano Das Unheimliche (1919) por considerá-lo "a dobradiça indispensável para abordar a questão da angústia" (Lacan, 1962-63, lição de 28 de novembro de 1962).

Por si só, tal indicação coloca a nú o fato de que a angústia, tanto para Freud como para Lacan, não se limita a um mero fenômeno psicopatológico, mas é inevitável e correlativa ao sinuoso e sempre singular processo de engendramento do sujeito. Com efeito, um dos méritos da leitura de Lacan é o de situar a angústia numa dimensão metapsicológica em sua função de borda entre o real e o imaginário, modo este que nos aproxima do caráter ‘ex-sistencial’ da angústia numa abordagem inteiramente distinta da psicologia e das descrições fenomenológicas.

Ou seja, a angústia é trabalhada à luz da ex-sistência 2 do sujeito do inconsciente precisando a riqueza clínica da invenção lacaniana do objeto a e, além disso, ensejando dois de seus mais famosos aforismas: "a angústia não é sem objeto"e a angústia emerge quando a "falta falta". Ambos se relacionam de modo indissociável ao obscuro, impreciso e inominável objeto causa de desejo que deveria permanecer oculto mas veio à luz; deveria permanecer invisível e se torna visível; deveria permanecer como um resto do corte que garante a separação entre o Eu e o enigmático desejo do Outro mas, ao contrário, desperta um sentimento de ameaça à integridade do Eu confrontado com sua presença.

A angústia seria o afeto que, por excelência, "não engana" na medida em que interroga a relação do sujeito com o que o ‘causa’. Portanto, do ponto de vista psicanalítico a questão da causalidade envolve inexoravelmente a questão da angústia, como uma verdadeira lógica que aponta para o real em jogo na vida do falante. Seguindo algumas linhas de força do texto freudiano juntamente com as contribuições de Lacan, flagramos a angústia como o sinal e a certeza da diferença em nós instalada da forma mais desamparada.

É nesse sentido que na lição de 19 de dezembro de 1962 de seu seminário, Lacan nos leva a pensar na angústia já como uma resposta e uma espécie de defesa correlativa à constituição do hostil enquanto tal, enquanto um primeiro recurso ao mais além da hilflosigkeit, projetando para fora do Eu a estranheza que há em nós.

Das Unheimliche: o enigma da semelhança

Logo nas primeiras linhas de seu trabalho "O estranho", Freud já nos dá algumas pistas quanto à fecundidade deste tema para pensarmos numa afinidade entre a psicanálise e a experiência estética, afirmando que por estética entende não apenas uma teoria da beleza, mas a "teoria das qualidades do sentir" (Freud, op. cit., p. 275). Desse modo, a estética ocupa-se não só do que é belo e sedutor, mas se relaciona também com o que é assustador, com o que provoca medo e horror sob certas circunstâncias nas quais as referências habituais se perdem e o sujeito vacila.

Sobre o parentesco entre o estranho e a angústia, Freud marca a diferença do efeito da inquietante estranheza suscitado pela experiência estética, daquele sentido na vida real. Assinala que enquanto nas obras esse efeito é abolido pelo fato de que o universo do discurso é fictício, somos poupados, pois o escritor imaginativo cria artifícios que tornam aceitáveis e até agradáveis, certos efeitos que não o seriam caso ocorressem na vida real. Ao contrário do que se passa conosco, o escritor tem a liberdade de poder escolher o seu mundo de representação, de modo que este possa ou não coincidir com as realidades que nos são familiares.

Freud opta por apresentar inicialmente os resultados de sua pesquisa sobre o uso semântico do adjetivo alemão heimlich - pertencente à casa, não estranho, familiar 3, doméstico, íntimo, conhecido, amistoso, etc. - e do seu antônimo unheimlich - misterioso, oculto, sobrenatural, secreto, estranho, inquietante, sinistro. O exame do uso lingüístico do adjetivo heimlich revela que essa palavra não deixa de ser ambígua, pertencendo a dois conjuntos de idéias que mesmo não sendo contraditórias, são muito diferentes: "por um lado significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista" 4. Isso vem demonstrar que um sentido negativo próximo do antônimo, por uma torsão, liga-se ao termo positivo de heimlich, confirmando, para Freud, o propósito de Schelling segundo o qual chama-se de unheimlich "tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz": o familiar torna-se estrangeiro em função do recalcamento a que foi submetido. (Freud, 1919, p. 282).

O termo alemão Unheimliche indica um tipo de equivalência que coloca em jogo o "enigma da semelhança" (Rey, 1989), quando tudo se altera justamente num terreno a princípio familiar e conhecido, produzindo um singular sentimento de mal-estar. No entanto, a maior parte do tempo não percebemos, ou recusamos, essa dimensão de "revelação fracassada" (Guérin, 1988, p. 53), na medida em que somos muito mais sensíveis ao hiato entre o eu e o mundo e à discordância entre ambos. Contudo, é precisamente diante da estranheza que ficamos muito próximos de nos descobrirmos, pois, em suma, não é apenas o estranho que inquieta mas, sobretudo, essa aliança do mais próximo com o mais distante, anunciando, ironicamente, o "amálgama brutal dos contrários" (Guérin, op. cit.).

Freud aponta que o significado da palavra heimlich se desenvolve na direção da ambivalência, até coincidir com o seu oposto, unheimlich, que de um modo ou de outro, representa uma subespécie de heimlich. O modo detalhado com que Freud procede à sua pesquisa demonstrando a ambigüidade desses termos, não difere de seu entusiasmo em sua pesquisa sobre "O significado antitético das palavras primitivas" (1910). Este trabalho ilustra de forma paradigmática a dinâmica inconsciente e aponta a característica dos sonhos de combinar os contrários em uma unidade ou de representá-los mediante a mesma coisa, assim como a marca da ausência do ‘não’ nos sonhos e no inconsciente em geral.

É à essa lei do inconsciente que unifica os contrários que tanto a palavra como a experiência do unheimliche nos endereça, reafirmando a estrutura de linguagem do inconsciente e seu ponto de limite: o ‘umbigo’ do real. No Unheimliche, tal como Freud pôde perceber na análise dos sonhos, encontramo-nos face a face com um ponto enigmático que é da ordem do indizível e do inominável, um enigma a ser decifrado que se articula a um ponto de origem, o "umbigo do sonho" 5. A dimensão paradoxal da experiência d’Unheimliche sublinhada por Freud se caracteriza por uma ausência de representação que ao mesmo tempo é uma manifestação: " do que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz". Algo se manifesta mas que não pode nem ser pensado nem ser dito. Uma aparição, uma descoberta anormalmente clara, porém irredutível e não mediatizada pelo simbólico, associada ao indizível e que por isso mesmo não se presta à interpretação.

Assim, enquanto na primeira seção do artigo, sem o mencionar claramente, Freud retoma elementos importantes que afirmam de modo universal a dinâmica da língua do inconsciente, na segunda seção começa a ilustrar através de uma série de casos a inquietante estranheza como que provocada pelo movimento do autômato, pela presentificação da morte ou do retorno ao seio materno, pela manifestação de forças sobrenaturais e pelo reencontro do sexo feminino como tal.

Freud retoma o trabalho de Jentsch e sua apreciação do conto fantástico "O homem de areia" 6, de Hoffmann, um escritor que "mais do que qualquer outro, obteve grande êxito na criação de efeitos estranhos" (Freud, op. cit. , p.284). De acordo com Jentsch, o que produziria o efeito de estranheza no conto seria a dúvida instalada quanto a saber se um ser inanimado está realmente vivo, ou seja, se um dos personagens, a boneca Olímpia, que aparece no primeiro ato da ópera de Offenbach, "Contos de Hoffmann", é um ser humano ou um autômato (op. cit., p. 285). Essa incerteza seria a base do artifício psicológico utilizado pelo autor para suscitar o efeito emocional de estranhamento na narrativa fantástica.

No entanto, Freud discorda de Jentsch e seu ponto de vista de atribuir o efeito de estranheza à incerteza intelectual, demonstrando que com isso Jentsch limita-se à relação do estranho com o novo e o não familiar. Para Freud, a incerteza quanto a um objeto ser vivo ou inanimado, no caso a boneca Olímpia, não seria o fator essencial para produzir o efeito de estranheza na história, mas sim, o próprio tema principal do conto, que lhe dá inclusive o nome e "é sempre introduzido nos momentos críticos: o tema do "Homem de areia", que arranca os olhos das crianças" (op. cit. p.285).

O conto fantástico de Hoffmann principia com as recordações de infância do estudante Nataniel que não consegue se desvencilhar das lembranças ligadas às terríveis circunstâncias da morte de seu pai numa explosão em seu escritório. Freud relaciona o efeito Unheimliche que a figura paterna e seus substitutos - Coppola, o oculista, Copélio, o advogado e O homem de areia -, provocam em Nataniel, assim como as alusões à perda dos olhos, à angústia de castração recalcada e ao Édipo. Em suma, remete a origem da angústia à castração e à relação com o pai.

Freud reporta a angústia ao retorno do recalque, encarando o recalcamento como o que é mais íntimo e estrangeiro ao sujeito 7. Com isso, a inquietante estranheza não se resume a uma certeza intelectual, como propunha Jentsch, relacionando-se antes com a entrada em cena de mecanismos psíquicos como o retorno do recalcado sob a forma do medo ligado à angústia de castração, ou à compulsão à repetição própria ao inconsciente.

Assistimos ao retorno constante do mesmo sob a forma do fenômeno do ‘duplo’ ou a imagem do espelho, como outro fator considerado produtor da inquietante estranheza, fenômeno que também se acha presente nos contos de Hoffmann. O duplo é um fenômeno imaginário e vincula-se ao narcisismo primário. É uma repetição do idêntico cujo retorno ou aproximação é vivenciada com medo e horror. Com efeito, se o duplo ou a imagem do espelho são garantes da sobrevivência podem se tornar prenúncio do aniquilamento.

Originalmente o eu arcaico, narcísico, ainda não delimitado pelo mundo exterior, projeta para fora dele o que vivencia em si mesmo como ameaçador ou desagradável em si, para fazer dele um duplo, estranho e inquietante. O Unheimliche comparece neste momento como uma defesa do eu desamparado, o qual se protege substituindo a imagem do duplo - que antes lhe era agradável e não ameaçadora - por uma imagem de um duplo estranho a si mesmo, dotado de um poder maléfico para onde projeta a parte de destruição que ele não pode conter (op. cit. p. 295).

Desse modo, vamos encontrar a intolerância xenófoba já enraizada no próprio universo infantil do medo e da rejeição do não familiar que são contemporâneos à estruturação do eu. Nesse momento instala-se, concomitantemente, o xeno que quer dizer estranho, e o xenós, relativo à hóspede. Ou seja, instala o não familiar como uma presença suspeita, pontificando o indizível e sua insistência como unheimliche. A experiência de defrontar-se com a própria imagem, com um ‘duplo ’, espontânea e inesperadamente, é suficiente para que se considere o duplo como um verdadeiro intruso.

Freud ilustra esse sentimento relatando sua insólita experiência numa viagem de trem. Sozinho em sua cabine, um solavanco faz com que a porta do toalete situado entre duas cabines se abra e, ao levantar-se, Freud se depara com um intruso, um senhor de idade, de roupão e boné na cabeça. Imediatamente antipatiza com sua aparência e sente uma franca rejeição até constatar, para seu espanto, que a pessoa não era senão o seu próprio reflexo no espelho da porta que se abrira.

Sua angústia emerge exatamente neste ponto, entre o momento no qual a imagem especular aparece enquanto um Outro hostil e o reconhecimento de que a imagem não é senão seu próprio duplo. Por esse motivo o encontro com o duplo é sempre assustador, configurando o unheimlich como a positivação de algo que deveria permanecer oculto.

 

Das Unheimliche e a repetição

O duplo se encontra ligado ao automatismo da repetição que procede das moções pulsionais e é "inerente à própria natureza das pulsões", uma compulsão poderosa o suficiente para se colocar além do princípio do prazer e "emprestar a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco"8. Assim, tudo que lembra essa íntima "compulsão à repetição é percebido como estranho"(op. cit.p. 297). O absolutamente novo, o que jamais se deu na experiência subjetiva não poderia ser temido. O estranho é algo que retorna e se repete. Trata-se da fatalidade demoníaca que através de múltiplas imagens fantásticas personificam o destino ou a morte da qual não temos nenhuma representação.

No entanto, apesar de sua vasta lista de exemplos da produção dos efeitos d’Unheimliche, os quais remetem a um enigmático ponto cego de disjunção entre a representação recalcada e o afeto, Freud sustenta a hipótese já anunciada em seus primeiros trabalhos de que o recalcamento é que determina o surgimento do afeto de angústia. Calcado em sua primeira teoria da angústia, aborda outros fatores que transformam algo assustador em algo estranho: o animismo, a magia, a bruxaria, a onipotência de pensamentos e a atitude do homem para com a morte.

O confronto com a morte como algo capaz de suscitar o efeito Unheimliche, torna mais claro ainda, o impedimento de Freud em tratar explicitamente a dimensão real em jogo nessa experiência, assim como diante do feminino enquanto outra figura do estranho que é mencionada logo a seguir ao problema da morte. Em ambos os casos, escapa a Freud a verdadeira causa da angústia.

 

O feminino e a morte

A relação do estranho com o feminino é citada no encerramento da segunda seção do texto num único parágrafo e sem maiores aprofundamentos, apesar de Freud destacar tratar-se de um exemplo tirado da experiência psicanalítica que fornece uma "bela confirmação" de sua teoria do estranho. O feminino aparece como o mais familiar, ligado à origem e associado simultaneamente ao silêncio da morte.

Os traços desses elementos estariam presentes no fantasma de ser enterrado vivo por engano, interpretado como uma transformação da fantasia de retorno ao ventre materno que se faz acompanhar de uma certa volúpia. O horror despertado pela colisão desses dois aspectos antagônicos: o fim e a origem, o nascimento e a morte, remete ao horror que os órgãos femininos inspiram aos homens neuróticos:

Acontece com freqüência que os neuróticos do sexo masculino declaram que sentem haver algo estranho no órgão genital feminino. Esse lugar Unheimlich, no entanto, é a entrada para o antigo Heim [lar] de todos os seres humanos, para o lugar onde cada um de nós viveu certa vez, no princípio. ...Nesse caso, também, o Unheimlich é o que uma vez foi heimlisch, familiar; o prefixo ‘un‘ [‘in’] é o sinal da repressão. (op. cit., p.305)

Nessa passagem observa-se a reiteração da tese segundo a qual o efeito Unheimliche deve ser interpretado como um efeito do retorno do recalcado. Mas, se a morte não é representável no inconsciente, como explicar que ela possa ser recalcada e fazer retorno como algo recalcado? (André, op. cit.) Malgrado essa contradição teórica, as duas soluções propostas no texto freudiano - a morte não sendo exatamente o estranhamente inquietante, mas o fato de que os mortos possam voltar como espíritos maléficos, ou a morte como um fantasma de retorno ao seio materno -, mais uma vez nos colocam na pista de que o estranho advém quando algo do real irrompe nos limites entre o mundo interno e o mundo externo, despertando abruptamente a angústia que se encontra à espreita nas bordas incertas do Eu.

Serge André em seu texto "A propos de l’inquietante étrangeté", sugere que Freud, embaraçado com a significação do termo ‘morte’, perde, ali, o essencial: o fato de que a morte nos angustia por seu caráter inevitável, "na medida em que ela presentifica a obscura vontade do Outro", deixando-nos à mercê de seu capricho e nos surpreendendo de modo imprevisível. O silêncio da morte associa-se ao poder oculto do feminino, ambos como forças maléficas e demoníacas.

Pode-se supor também que, quando pessoas desfamiliarizadas com a análise sentem um medo obscuro, um temor de despertar algo que, segundo pensam, é melhor deixar adormecido, aquilo de que no fundo têm medo, é do surgimento dessa compulsão com sua sugestão de posse por algum poder ‘demoníaco’. (Freud, 1920, p.53)

Por outro lado, o tema do silêncio da morte também se apresenta como uma das figuras do feminino, eterno enigma que causa em Freud o desejo de lançar alguma luz, em várias oportunidades de sua obra, para o problema da identidade da mãe e da morte. O texto "O tema dos três escrínios"(1913) é um dos que melhor ilustram suas tentativas de resolver esse problema. Através do exame de diferentes narrativas de Shakespeare e Grimm, discute sobre a existência das três formas que a figura da mãe assume ao longo da vida de um homem: a mulher que o dá à luz, a mulher que escolhe como companheira "segundo o modelo daquela" e, por fim, a Mãe Terra, que o recebe depois de morto (Freud, op. cit., p. 379).

Assim, tanto a origem como a morte que nos escapam como possibilidade de representação, aludem a um núcleo que só se revela na fugacidade indizível da inquietante estranheza, tal como vivida por Nataniel em "O Homem de areia". Conforme examinamos, Freud interpreta sua angústia como uma angústia de castração, ligada à sua relação com o pai. Contudo, Serge André problematiza essa conclusão, falando de um curioso lapso9 cometido por Freud em seu exame do conto de Hoffmann. Na cena final, esquece-se de que, no conto, do alto da torre com sua luneta, o que Nataniel vê diante do vidro da lente não é Coppelius, mas Clara. Freud exclui esta presença no seu resumo e o que lhe importa é Coppelius se substituir a Clara, isto é, "o pai castrador à mulher ", esquecendo-se dela. André firma o ponto de vista de que no projeto freudiano o feminino deveria ser totalmente submisso à Lei e reduzido inteiramente à castrado. Sublinha que para Freud, das Unheimliche não é outra coisa senão um "outro nome de das Weibliche, o feminino como tal ". (André, op. cit., p.76)

Um dos objetivos do trabalho de Serge André é o de situar "O estranho" como o terceiro termo de uma série que se inicia em "Totem e Tabu" (1912) e prolonga-se até o relato clínico do "Homem dos lobos" (1909). A questão central que move a série destacada deriva-se da eclosão do conflito entre Freud e Jung, do momento em que este se engaja numa especulação acerca das "Metamorfoses da libido". Para Freud, o obscuro ocultismo junguiano envolvia o grave problema de um retorno ao culto maternal. É contra esse ressurgimento que Freud se posiciona teoricamente, erigindo seu "mito científico" do assassinato do pai em "Totem e Tabu". "Totem e Tabu" representa, finalmente, tanto a mulher quanto o pai. Respectivamente, o gozo infinito e o desejo que lhe faz limite.(André, op. cit).

Serge André lembra que na única sessão do seminário de 1963, "Les noms du Père", Lacan evoca o sacrifício de Abraham como fundamento do conceito de paternidade. É sua própria origem biológica que ele sacrifica, acompanhada pelo corte da circuncisão que o separa de sua parte feminina. Ainda no mesmo seminário, Lacan, sob os auspícios de Kierkegaard, menciona o sacrifício quando evoca o desmame entre a mãe e a criança; o seio explicitamente distinguido da mãe própriamente dita. Assim, entre a assunção da paternidade e o desmame está a questão que Serge André procura discernir como a problemática central na angústia, indagando: "do que seríamos desmamados senão dessa carne primitiva que dá consistência à origem?" (André, op. cit., p. 77).

 

A angústia não é sem objeto

Esta origem da qual o sujeito deve ser extraído para ‘ex-sistir’ enquanto sujeito, ao preço de sacrificar uma parte dele mesmo, é o que Freud aborda tanto em "Totem e Tabu" , como no fantasma primitivo do Homem dos Lobos e, finalmente, como o verdadeiro núcleo da inquietante estranheza, núcleo que segundo André, Freud denomina de "Pai". Assim, por trás do mito do pai o que se oculta não é a mãe, mas o próprio objeto da angústia. (André, op. cit.)

No Seminário X, das Unheimliche possibilita a Lacan desenvolver a teoria do objeto a, distinguindo-o como objeto impossível. Ali onde Freud se refere ao estranho como a experiência de algo que deveria ter permanecido oculto mas veio à luz, Lacan irá afirmar que a angústia comparece precisamente neste ponto onde a "falta falta ", ou seja, quando o objeto a é positivado e perde seu caráter eminentemente real de "causa de desejo".

A angústia interroga a relação do sujeito com o que o "causa", de forma que possível apreendermos certas posições discursivas, sobretudo aquelas ligadas à tentativa de eliminar a profunda ambigüidade da estranheza que nos habita conforme observamos nas diferentes faces do racismo.

Essas considerações nos colocam diante da Coisa freudiana, onde o próximo se mostra na inquietante vivência do Unheimlich, para pensar naquilo que está no coração da experiência psicanalítica: o trágico, vinculado à Hilflosigkeit - ao desamparo do sujeito quando se encontra sem recursos, diante da instância do desejo do Outro. Não se trata de um desamparo estritamente biológico, pela impossibilidade da criança responder por suas próprias necessidades, mas sim, de seu enfrentamento com o desejo do Outro, com essa experiência primordial de angústia, a angústia como traumática, vinculada ao desamparo proveniente de um exterior íntimo. Por sua vez, esse encontro vai configurar o próprio desejo e permitir que a criança se constitua singularmente como resposta subjetiva.

Lacan (1959-60) assinala que a Coisa está ligada ao "complexo do próximo", do Nebenmensch, o outro humano, que aparece no "Projeto para uma psicologia científica" (1895). Através do próximo se dá a primeira apreensão da realidade para o sujeito. Entretanto, a relação do sujeito ao outro é marcada pela ambivalência, pois o próximo ou o semelhante é o primeiro objeto de satisfação e o primeiro objeto hostil. Com isso, o registro da alteridade se institui simultaneamente ao da formação subjetiva. No entanto, essa alteridade não se restringe à presença do próximo, incidindo antes, sobre das Ding, ou seja, àquilo que escapa ao juízo e resiste como um núcleo de alteridade radical - o Outro absoluto do sujeito, como diz Lacan (1959-60)- que a presença do próximo ao mesmo tempo encobre e desvela. Conforme a visada freudiana:

O complexo do próximo se divide em duas partes, das quais uma dá a impressão de ser uma estrutura que persiste como coisa, enquanto a outra pode ser compreendida por meio da atividade de memória — isto é, pode ser reduzida a uma informação sobre o próprio corpo [do sujeito]. Essa descrição de um complexo perceptivo se chama (re)conhecê-lo; implica num juízo e chega a seu término uma vez atingido este último fim. (Freud, op. cit., p.438)

A alteridade radical de das Ding, incompreensível e inassimilável à rede da memória e no reconhecimento do próximo, decorre do fato de que o objeto da satisfação é perdido, configurando todo encontro com esse objeto como um reencontro de caráter precário. Na busca do objeto de desejo o sujeito encontra o outro como sua "unica força auxiliar" que, no entanto, remete sempre a esse Outro enigmático, onde o desejo se articula como desejo do Outro.

A estrutura da extimidade - que é a estrutura do sujeito - vem dizer que o íntimo - heimlich - é o Outro como um corpo estrangeiro - unheimlich - que se vincula à constante vacilação da identidade do sujeito consigo mesmo. Na Lição de 5 de dezembro de 1962 do Seminário X, Lacan comenta que "se a palavra heim tem algum sentido na experiência humana, é aí a casa do homem". Ou seja, o homem encontra sua casa num ponto situado no Outro, "além da imagem de que somos feitos, e este lugar representa a ausência em que estamos".

O racismo se funda precisamente neste ponto da extimidade do Outro, dirigindo-se ao que funda a alteridade do Outro: o gozo do Outro. A excessiva proximidade do Outro confronta modos de gozo incompatíveis, resultando na intolerância. Quanto a essa aproximação demasiadamente próxima, basta lembrar a metáfora schopenhauriana dos porcos-espinhos mencionada por Freud em "Psicologia de grupo e análise do eu" (1921), para sustentar que o homem não suporta uma aproximação demasiadamente íntima com o próximo, justamente porque os vínculos amorosos incluem uma grande dose de hostilidade, nem sempre perceptível em função do recalcamento. Nessa medida, é mais fácil amar ao próximo quando uma distância intermediária pode ser sustentada.

No ódio racista trata-se da relação subjetiva com um Outro como tal, pensado em sua diferença e enquanto um enigma que, de forma latente, resiste à totalização e descompleta o universal da comunidade simbólica. Isso nos leva a problematizar o conceito de Outro como o mais íntimo ao sujeito que é também um verdadeiro ponto de opacidade, um verdadeiro enigma que serve para fundar a necessidade de diferentes formas de recobrimento.

Lacan insiste em afirmar que o "Outro não existe", afirmação que só ganha sentido se articulada ao caráter extimo do objeto a. Assim, a inexistência do Outro (que não impede que ele possa funcionar), é correlativa ao real em jogo na experiência humana com o desejo.

Podemos com isso nos referir a uma ética da psicanálise, ao postular a diferença alteritária e o respeito ao inconciliável fundamentando-se na "falta ôntica" (Lacan, 1964) que preside o engendramento do sujeito como sujeito do desejo, para quem o objeto não possui nenhuma essência ou substância. O a é o objeto que promove a articulação da extimidade: ele funda não só a alteridade do Outro, como o que é real no Outro simbólico. A falta ôntica, essa alteridade radical da Coisa, é apreendida no sujeito como uma imposição externa (Olgivie, 1988), condenando-o ao seu extravio com relação ao gozo; condenando-o, portanto, ao conflito e à impossibilidade da complementariedade sexual.

Conforme destaca Assoun, "a mensagem da psicanálise seria precisamente a de que o laço social se alimenta da falta do objeto". Essa mensagem revela a ilusão da ciência política que por não considerar a divisão do sujeito, acredita "que o objeto social é causa do laço social". (Assoun, 1989, p. 113) O reconhecimento da impossibilidade de uma sutura do Outro comparece como o ponto de interseção entre o inconsciente e o laço social configurando, do ponto de vista psicanalítico, a impossibilidade da realização de qualquer identidade como uma identidade plena, como uma totalidade fechada, tanto no sujeito como na sociedade.

Através de seu campo de pesquisa, segundo Lacan, um campo que diz respeito ao desejo e ao gozo, à psicanálise interessa levantar questões muitas vezes negligenciadas pelos discursos estabelecidos que não conseguem escapar às armadilhas do tamponamento de nossa condição desamparada. Como então, haver-se com o Outro em sua inelutável estranheza? Como enfrentar o horror diante do desamparo engendrado, sem requisitar um Pai, mestre ou tirano? Sem requisitar um bode expiatório que alivie a angústia diante da estranheza que nos habita? Essas perguntas tocam o cerne da subversão freudiana que nos ensina a detectar a estranheza que há em nós, talvez como a única maneira de não acossá-la do lado de fora.

Notas

2 Ex-sistência é um neologismo criado por Lacan para falar da singular existência do sujeito do inconsciente, de seu descentramento em relação ao Eu e à consciência.

3 Desse modo, aquilo que é familiar, íntimo e recôndito para aqueles que partilham do segredo acontecendo entre as quatro paredes do lar (=heim), pode ser experimentado como escondido, furtivo e estranho para os que foram excluídos.

4 Grifo nosso.

5 Isso demonstra como o Unheimliche fornece uma verdadeira pista do real.

6 Conforme examinaremos mais adiante, uma parte importante do conto é omitida por Freud.

7 O recalque estaria ligado à ameaça de castração e vemos que Freud insiste em relacionar a angústia à uma representação recalcada, enquanto para Lacan não é a castração que estrutura a angústia, mas sua relação com o objeto e com das Ding.. A angústia faz sinal da presença de algo não representável na cena simbólica-imaginária.

8 Das Unheimliche funciona assim, como uma verdadeira plataforma para Freud atingir sua formulação definitiva da pulsão de morte. A compulsão à repetição que comparece em 1919, não mais possuindo as mesmas características da repetição trabalhada em "Recordar, repetir e elaborar" (1914), é o prenúncio da compulsão à repetição enquanto efeito da pulsão de morte. Em "Além do princípio do prazer" (1920) a repetição passa a estar ligada ao trauma como algo que não é passível de ser assimilado mediante uma representação simbólica. A partir de 1920, Freud foi obrigado a submeter muitos de seus desenvolvimentos teóricos e sua prática clínica a uma revisão que englobasse o indizível da angústia. Em "Inibições, sintomas e ansiedade" (Freud, 1926) modifica sua primeira teoria da angústia pela necessidade de reconhecer a prioridade da angústia em relação ao recalque.

9 André baseia-se na indicação feita por Guy de Villers no mesmo colóquio (op. cit.).

 

Referências bibliográficas

ANDRE, S. "À propos de l’inquiétante étrangeté" , Actes de l’ECF, vol. X, 1986, p. 75-78.

ASSOUN, P-L. "El sujeto del ideal". In: Aspectos del malestar en la cultura. Buenos Aires: Manantial, 1989.

FREUD, S. "Projeto para uma psicologia científica" (1895). ESB. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1976, v. I.

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 13 - Julio 2001
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