Acheronta  - Revista de Psicoanálisis y Cultura
A dor do adolescer
Arlette García

"As cicatrizes falam, o que as palavras calam, o que
eu não esqueci." (Fera ferida)

O tema adolescente tem estado nos nossos dias muito presente na cultura através dos veículos de comunicação de massa assim como para os pensadores do social. Encontramos discursos onde o conceito adolescente é entendido como uma criação da modernidade e da cultura ocidental e outros como criação de mercado, clichê de publicidade, onde a juventude é elevada a dimensão do ideal ou em uma posição oposta é rebaixada a coisas que são aborrecidas como o termo aborrescente atesta.

Recentemente uma reportagem de um jornal de grande circulação destacava a criação do termo "adultescência", um neologismo surgido na Inglaterra e reconhecido pela editora Oxford University, expressando a permanência dos valores adolescentes na vida adulta, valores em geral descritos como a liberdade de escolha e uma posição de rebeldia frente aos padrões estabelecidos.

Destacando estes dois significantes – aborrescente e adultescência – onde o primeiro tem como referência o comportamento de sujeitos que se tornam aborrecidos para pais e professores e o segundo onde estes mesmos comportamentos se tornam ideais e fazem parte de um estilo da vida adulta, se faz necessário pensar a que ponto da estrutura estes fenômenos que surgem na cultura respondem.

Tanto o "aborrescente" quanto a "adultescência" pela significação que portam, falam da imaginarização positiva ou negativa de um determinado tempo, onde um sujeito se vê defrontado com a dificuldade de se posicionar como sexuado. Os fenômenos da rebeldia, da oposição entre gerações marcadas por Freud, assim como as escolhas que no seu fundamento é sempre uma escolha forçada, são pontos onde a dor está implicada.

O termo "adultescência" que tenta nomear um tipo de adulto, não seria uma resposta dos tempos atuais que surge na cultura como um fenômeno da descrença que este final de século porta? Criar este neologismo não estaria velando a dor da impossibilidade de se atingir a maturidade psíquica, como ser acabado, cristalizando-se em um ideal ?

O termo "aborrescente" que tenta nomear um sujeito que estruturalmente questiona o saber, não estaria velando a dor da impossibilidade de saber sobre o sexo, desqualificando este questionamento?

Estes são alguns pontos de partida para uma reflexão sobre o tempo do adolescer concebido como um tempo lógico, onde determinadas questões do ser falante estão mais evidentes.

O adolescente, cuja raiz latina é adolescere, significa crescer e de algum modo porta um mal-estar. Freud reconheceu o mal-estar que o avanço da civilização traz, na medida que o crescimento, o avanço cobra o preço da renúncia pulsional. O corpo médico aponta também um mal-estar ao nomear como dor do crescimento a sensação dolorosa nos membros inferiores decorrente do crescimento dos ossos.

Teríamos enlaçadas no tempo do adolescer três dimensões da dor. O adolescer tem como tarefa, e uma das mais dolorosas segundo Freud, a separação da autoridade dos pais. O processo de separação implica um luto por uma perda. O luto não se faz sem o afeto da dor psíquica, dor da ruptura dos laços libidinais ligadas a imagem do objeto que se perdeu. Outra dimensão da tarefa do adolescer se refere ao corpo e suas transformações que são os mais visíveis neste tempo. Esse corpo, diz Lacan, não é dado de modo simples no espelho. Essa imagem que cremos ter se modifica, e o sentimento de estranheza que é a porta aberta para angústia, vem quando o valor desta imagem começa a mudar. A dor é assinalada por Freud como desempenhando um papel importante na maneira como obtemos conhecimento do nosso corpo. A dor presentifica a materialidade do corpo, apontando para o fato de que corpo não é só imagem, há um desconhecimento nesta imagem revelado pela dor.

Uma terceira dimensão se refere ao posicionamento como desejante. No retorno das pulsões parciais, longe de se alcançar a hegemonia pulsional na genitalidade, o que se encontra é a dimensão do desencontro, do não encaixe. A confluência das pulsões parciais provocam mais o fenômeno da pororoca, da efervescência do que a pretendida homeostase do principio do prazer. O sujeito no tempo do adolescer se depara com o fato de que a maturidade pensada como harmonia genital resta no campo do impossível, pelo fato de que por estrutura a sexualidade humana produz um resto inassimilável, o que faz das pulsões, pulsões parciais e no seu fundamento pulsão de morte. É deste resto inassimilável, produzido no fechamento do circuito pulsional que surge o sujeito do desejo. É neste sentido que Lacan aponta a afinidade entre desejo e dor de existir: "É essa excentricidade do desejo em relação a toda satisfação que nos permite compreender a sua profunda afinidade com a dor. Isto significa que finalmente aquilo com que o desejo confina é com a dor de existir." A dor de existir se refere ao fato de que o sujeito do desejo só tem existência no que a satisfação buscada nunca é a satisfação encontrada, é deste resto de satisfação, desta impossibilidade que consiste a causa do desejo.

O tempo do adolescer implica a dor na relação com o corpo indicando a irrupção do real no imaginário, a dor psíquica onde através do luto a falta real vem coincidir com a falta simbólica e a dor de existir na confluência com o desejo.

No campo antropológico vamos encontrar também, referências a dor ligadas ao tempo do adolescer. Durkheim, no livro "As formas elementares da vida religiosa", cita alguns rituais de iniciação que de maneira geral são rituais negativos. Os rituais negativos são aqueles que se apresentam como sistemas de abstenções, de interdições. As abstinências e as privações são inseparáveis do sofrer dor, porque não podemos nos separar do mundo profano sem violentar nossa natureza, sem machucar dolorosamente nossos instintos. A dor é uma condição necessária dos rituais negativos. Assim acabou por se considerar a própria dor como uma espécie de ritual, onde ela mesma deve ser buscada porque traria poderes e privilégios. Na Austrália, algumas cerimonias de iniciação consiste em infligir dor, tendo em vista modificar o estado atual e fazer o jovem adquirir as qualidades do homem. Cita alguns exemplos onde os iniciantes são batidos de maneira mais ampla no corpo ou é uma parte do corpo que sofre a ação que provoca dor. Entre os Aruntas, os iniciantes são mordidos no couro cabeludo para crescer o cabelo ou no rosto para crescer a barba.

Durkheim observa que o homem jovem só é admitido ao casamento após ter se submetido a uma série de sofrimento, onde a circuncisão é um preâmbulo. Supõe que ao se mutilar dolorosamente um orgão, este adquire o caráter de sagrado e assim é capaz de enfrentar outras forças. A dor é assim o sinal de que se romperam os laços com o mundo profano. A dor é uma escola necessária em que o homem se forma e se tempera.

Nos ritos de iniciação descritos por Durkheim, a dor simbolizaria uma mudança de estado necessária à entrada na cultura cujo alvo são os adolescentes. Nestes ritos há dois níveis de dor: uma que se refere a privação, a abstenção e outra que se refere a sensação de dor causada no corpo. De qualquer forma a dor no ritual está correlacionada a um estado limite: ou de quanto é possível ao humano suportar a privação ou do limite do ferimento no corpo.

A posição de Durkheim de que estes rituais simbolizam que a cultura humana só é possível ao preço da dor, na medida que exige sacrifícios, parece se aproximar da posição freudiana quanto ao mal-estar que o avanço da civilização promove. Entretanto a interpretação sociológica enfatiza a dor como algo do sagrado que deve ser buscado como meio de se obter a grandeza do homem, apagando o fato de que a dor expressa o limite. Poderíamos agregar que a dor está a priori, na entrada do humano na linguagem, na medida em que, apesar da busca de ligação, da busca de representação, há algo que não faz ligação, não há proporção possível. O ritual de iniciação, como o próprio nome diz, vem ritualizar, fazer passar novamente pela entrada no mundo da linguagem, vem consagrar o inicio como ruptura, perda que não se faz sem dor.

Já abordamos o adolescer no discurso da cultura atual, no discurso sociológico, restando a praxis da psicanálise.

Tomaremos um caso clínico de Freud na virada do século, no ano de 1892. Elizabeth, uma jovem, diz Freud, de 24 anos é encaminhada à análise com sintoma de dor nas pernas, que surge como evitação da dor psíquica. A neurose não cria a dor no corpo, intensifica e mantêm a lembrança da dor corporal. Este corpo que no sintoma histérico sofre dores é o corpo enquanto imagem. Na dor histérica o corpo fala a revelia do eu, revelando o seu desconhecimento. Trata-se, diz Freud, de uma conversão por simbolização. A paciente cria ou aumenta uma desordem funcional por meio da simbolização. Ela encontra na expressão somática astasia-abasia a expressão para o fato de não ter uma posição independente e para a sua incapacidade de modificar sua circunstancia.

As frases enunciadas pela paciente "não sou capaz de dar um único passo" e "não tenho nada em que me apoiar" servem de ponte para o ato de conversão. Ela faz da astasia-abasia, uma expressão somática, uma expressão para sua posição de sujeito. Há acasalamento entre corpo e psíquico, entre o moi e o je.

Diz Freud que a histeria não toma o uso da língua como modelo, mas que tanto a histeria como o uso da língua extraem seu material de uma fonte comum. A histeria mostra o corpo tomado na linguagem, não é do organismo que se trata. No sintoma de Elisabeth há um ato de conversão onde é criado uma expressão no corpo para uma idéia, uma imagem de objeto investido, ou seja, no lugar da dor psíquica surge a dor física.

Este sintoma está sustentado pelo fantasma de que era o objeto de gozo do pai que queria um filho e um amigo para trocar idéias. As frases "não sou capaz de dar um único passo" e "não tenho em que me apoiar" expressavam o impedimento de se posicionar com sujeito sexuado. Elisabeth respondia imaginariamente ao pai, fazendo coincidir a demanda com o desejo – meu pai quer um filho e eu sou um filho. Nesta imagem especular não há discordância, não há opacidade. A dor no corpo, vem presentificar o a+ na imagem, a opacidade, o desconhecimento relativo ao eu corporal(moi), fazendo signo do gozo do Outro.

A pulsão sexual está relacionada as zonas erógenas, aos buracos do corpo, às falhas. É na discordância entre o corpo insuficiente e prematuro e a imagem unificante e plena do espelho, que a libido faz emergência. Elisabeth presa n armadilha fantasmática da harmonia totalizante da imagem, está impedida de se posicionar como sexuada, como desejante. A dor por um lado é signo do gozo do Outro, do apagamento da distinção significante/significado, dentro/fora, mas por outro lado prenuncia a angústia. A dor corporal sintomática indica que houve perda objetal, que na imagem há fratura, mas esta perda real não pode ainda coincidir com a falta simbólica.

Daí tiraremos as seguintes consequências: Elisabeth está fixada no ponto onde em termos estruturais todo adolescente deve passar – se posicionar a partir do significante. como sujeito sexuado. O trabalho não realizado é o trabalho do luto, o luto pelo corpo orgânico, este perdido para sempre, um luto cuja especificidade é fazer coincidir a perda real com a falta simbólica.

O sintoma de Elisabeth tem uma certa analogia com os rituais de iniciação da Austrália descritos por Durkheim. Nestes rituais o adolescente era colocado em um sistema de abstenções e privações, sofrendo dor no corpo o que determinariam uma mudança de estado. Elisabeth primeiramente se abstêm das diversões para cuidar do pai doente, se priva de seguir o caminho das mulheres da família – se casar e ter filhos – já que era dito não ser o ideal de moça para arrumar marido, sobrevindo então as dores no corpo, já que o corpo como sexuado era recusado.

Poderíamos também pensar que na época atual, seria incomum que no tempo do adolescer se instituísse um sintoma como o de Elisabeth. A repressão do social em relação a sexualidade se arrefeceu. Entretanto o sexual por estrutura faz sintoma, já que a sexualidade não é o ato sexual e a sua liberação pelo advento da pílula não o resolvem.

O adolescente de hoje, lida não com a repressão do social sobre o sexual mas com a inflação da imagem ideal determinada pela busca do prazer a qualquer preço, gerando uma metonimia incessante. A repressão das práticas sexuais em última instancia também vem a serviço da manutenção do ideal, mas suas consequências sintomáticas são diferentes da conseqüência da manutenção do ideal pela busca do prazer. As depressões, as drogas, a anorexia/bulimia tão frequentes nesta época são produtos do excesso.

Para Elisabeth, a recusa do corpo sexuado mantêm a idealização da totalidade, impossibilitando que a perda do objeto se simbolize, promovendo um excesso de quantidade que toma o corpo, libidinizando-o excessivamente, onde o objeto perdido surge como o corpo orgânico.

Nas depressões a idealização é mantida pela liberação da busca do prazer para que nada falte, impossibilitando que a perda do objeto se simbolize, onde o objeto perdido surge como ausência imaginária do objeto no eu.

No caso descrito por Freud em 1892, no momento do surgimento do desejo, que como tal é excêntrico a satisfação, colocando portanto a dimensão da impossibilidade, produz dor e o sujeito lança mão da recusa do corpo como sexuado, produzindo um sintoma onde por analogia o corpo é depositário da dor psíquica.

O tempo do adolescer com a dor que evoca, busca os recursos próprios da época, para em uma estrutura de ficção, tentar subjetivar a perda constitucional do ser falante. Os significantes "aborrescente" e "adultescência" que surgem na cultura na atualidade velam a dor nos dois sentidos do termo velar – ocultar e vigiar - escondem a dor do ser falante frente ao real do sexo que faz dele um sujeito sempre evanescente, ao mesmo tempo que tomam conta, ficam de vigília, para que a dor do adolescer se mantenha aberta, como uma ferida que não se cicatriza, apontando para um luto difícil de se efetivar. A vigília deste tempo como em um velório que nunca enterra o corpo morto, ao mesmo tempo ocultada pelo ideal da autonomia e da liberdade de escolha, fetichiza a dor do ser falante, dando-lhe uma consistência imaginária.

É da operação da castração, onde o buraco aberto pela privação do objeto é tecido pelo significante, deixando uma cicatriz, que tanto o homem como a mulher partem para o que se convencionou chamar de vida adulta.

Notas Bibliográficas

Lacan, J – Formações do Inconsciente

Astasia – incoordenação motora com incapacidade de manter-se em pé.

Abasia – incapacidade de manter-se em pé ou andar, resultante de incoordenação muscular ou lesão nervosa

 

BIBLIOGRAFIA

FREUD, S. "Os três ensaios sobre a sexualidade" in Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago, 1972, v VII.

FREUD,S. "Organização Sexual Infantil" in Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago, 1972, V XIX

FREUD,S "Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica" in Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago, 1972, v XIX

LACAN, J "Significação do falo" in Escritos, São Paulo, Perspectiva, 1978

GARCIA,A e SARUÉ, S. O despertar da primavera... um tempo lógico in Direção da Cura, revista Letra Freudiana - Han$ n. 1

GARCIA, A "O tempo do Adolescer" in Tempo e Objeto, revista da Letra Freudiana – revista em finalização

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Revista de Psicoanálisis y Cultura
Número 10 - Diciembre 1999
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